Aos poucos a história da Humanidade viu que a etnia e o gênero dos indivíduos não são elementos que devam entrar no julgamento dos seus comportamentos, a ponto de haver leis que amparem a tolerância e o respeito pela essência individual. Inclui-se aí também a religião: é feio imaginar, por exemplo, que um físico não seja um bom físico por ser teísta. Ele tem o direito de sê-lo ainda que nos pareça contraditório. Assim, pouco a pouco, foram detectados e tornados legisláveis a xenofobia, racismo, o sexismo, o machismo, a homofobia, a transfobia, o antissemitismo, o elitismo, o bairrismo e o especismo.
Mas por que essa tolerância não é geral e irrestrita? Paradoxalmente também por causa das leis e das regras de comportamento. Ninguém é dependente de drogas ou adúltero impunemente, sem julgamentos morais ou legais. Não é a mesma coisa de gostar de amarelo ou de azul. Por causa dessa zona entre o crime e o permitido, uma esposa abnegada esconderá de todos seu fascínio por vídeos pornô; um líder religioso só contará piadas politicamente incorretas longe dos microfones; muitos, como a personagem de Rubens Fonseca, terão seu Passeio Noturno até serem investigados pela polícia. Assim sendo, há regras sociais para o que é e o que não é correto. O Direito legisla sobre a complexa etologia humana.
Mas há zonas mais profundas naquilo que chamamos ético. Hoje em dia ainda não é feio declarar que alguém seja indigno da nossa confiança por reproduzir um discurso que odiamos. A essa postura intolerante costuma-se dar até mesmo alguns nomes positivos. Talvez porque todos acreditemos, cada um em sua tribo, na fábula do Homem Integral, advinda de uma mitologia em nós arraigada, a despeito de a vivência nos demostrar diariamente a sua inexistência.
Qual a importância se um ator famoso não tiver a mesma convicção política que a minha? Deixará de ser um bom ator? Posso avaliar a capacidade de um jogador de futebol pela sua religião? Deixará de ser um bom biólogo alguém que tem práticas sexuais que me são estranhas? Isso, de fato, não é um julgamento ético: é apenas um non sequitur.
Deem um microfone ao cantor pop e ele só falará asnidades sobre política: deixará, por isso, de ser um bom cantor? Flagrem o ganhador do Prêmio Nobel de Matemática com uma espingarda matando passarinhos e sua racionalidade será questionada. Cairão em desgraça, esmagados pela opinião pública após descobertos pelos jornais, mas onde está a contradição? Decerto, um padre que prega o "não matarás" não pode ser acusado de assassinato, pois se ninguém pode assassinar, muito menos ele deveria fazê-lo e isso, de fato, seria escandaloso. Mas onde está a contradição ética do professor de literatura Immanuel Rath ao apaixonar-se por Lola Lola, der blaue Engel?
Essa ética fumacenta é algo que cobramos do outro para destruí-lo. Se o que se cobra é cobrado de todos, a destruição moral do indivíduo é corroborada por algum tipo de justiça, mas e quando todos se julgam iguais nas suas sentenças morais distintas? A justiça pode intervir sempre, mas que acontece quando permanece calada?
Enfim, se escuto um saxofonista maravilhado e para ele projeto os meus melhores sentimentos até o momento em que ele começa a falar de criacionismo, em franca oposição ao que penso, deixará de ser um bom músico? Tornam-se imediatamente suas composições odiosas pelo simples fato de não concordarmos com algo que não seja a especialidade que o define como saxofonista? Simples: o chamado raciocínio acerca dos valores humanos não merece o nome de raciocínio. É uma fera com dentes sangrando que pula sobre qualquer um que lhe roube uma rosa. Fera que ataca, mesmo saciada.
Tenho o direito a ficar indisposto e parar de meu geneticista favorito por causa de seus comentários sexistas num canal de TV; posso desapaixonar-me de um pintor quando leio no jornal sobre a sua crueldade contra algum parente; posso parar de procurar os filmes de um cineasta que amava quando vejo um vídeo em que externa opiniões políticas lamentáveis a um repórter, mas todas essas pessoas deixaram de ser, de fato, bons profissionais depois que a decepção tomou conta de mim? Fizeram realmente algo que me desagradou na sua profissão e na sua obra? Se o geneticista mescla sexismo nas suas teorias, se o pintor promove a violência em seus quadros, se o cineasta faz de sua obra um palanque ideológico, meu descontentamento parecerá razoável, mas e se nada daquilo que me é abjeto conspurcar o seu trabalho, terei o direito de desapontar-me? Algo evitará que eu enxergue máculas de sua índole na mensagem de sua obra? Se usássemos corretamente o juízo, veríamos muitas vezes que tais pessoas não poderiam ser criticadas pelo ofício que exercem nem pela obra que produziram. Mesmo assim, justifica-se o meu desprezo subsequente ao meu desapontamento?
Mais absurdo ocorre quando a crítica injusta é anacrônica ou quando promove uma injustiça ainda maior. Incensado o acadêmico durante décadas, uma vez feita uma declaração que se reputa infeliz, seu passado se anulará e deixará de ter sido um bom profissional se nada do que escreveu tem a ver com a atual declaração odiosa? Pior ainda, se a declaração é polêmica e gera ódio em uns e admiração em outros, não há dúvida que será ainda menos ético o ofendido que detém algum poder e o usa para impedir a reimpressão das obras do agora ex-excelente acadêmico ou para tirá-las do mercado, ainda que nelas não se encontre uma única linha compatível com a declaração infeliz que fizera. Mesmo que o tenha feito por justificada senilidade.
O mito do Homem Integral é gerado pelo non sequitur da disposição daquele que recebe a mensagem e a julga com seus valores permeados de amnésia seletiva, numa afrontosa violência à lógica e à razão. Cadê tu, Homo sapiens, que te vanglorias de teu raciocinar?
Será o poeta que eu tanto gostava de ouvir agora insuportável por ter-se declarado leitor de uma obra que abomino? Será o psicólogo que me analisava brilhantemente agora o epígono da incompetência só porque assiste a uma novela pavorosa e porque torce pelo meu time rival? Serão os laços de longa amizade esfacelados porque meu amigo aderiu a uma seita alternativa que me é desprezível ainda que eu, como seu amigo, entenda conscientemente que assim o fez para amenizar alguma angústia existencial que não desconheço? Não levarei mais a sério aquele competentíssimo professor de geografia porque foi flagrado numa festa de sexo grupal? Será o pintor que eu amava agora um idiota conceitual porque se declarou fã de um conjunto musical de péssimo gosto? Será a cantora de ópera uma incompetente por não saber dar a opinião ecologicamente correta sobre casacos de pele? Será o médico que me atende agora uma pessoa indigna de confiança porque foi preso junto com um traficante num baile funk? Será meu marceneiro alguém que nunca mais contratarei por estar respondendo a um processo judicial que me escandaliza? Por mais que odeie a atitude de alguém, convenhamos que não há razão na passionalidade.
Alguma razão do escândalo, do desprezo e da punição só existiria se a atitude fosse contraditória, mas a contradição não está entre a função da pessoa que julgo e a atitude lamentável que cometeu. A contradição, se há, encontra-se entre a imagem equivocada do Homem Integral (competente, belo e ético) idealizada a partir do nada e a atitude individual incomum que incomoda. É aí que nasce o que supra-individualmente chamamos de "errado". Talvez haja mesmo uma diferença entre ética e moral. Não houve violação por contradição com o instituído, apenas uma espécie de desvio de conduta inesperada para a minha visão pessoal daquilo que se configuraria como uma pessoa boa.
Ninguém achará imoral se o leão devorar o funcionário do zoológico, mas acharia estranho se um urso panda o tivesse feito. A atitude do panda nos pareceria imoral, por trair as nossas expectativas advindas de sua pretensa fofura, ainda que saibamos que tenha tamanho, garras e dentição para agir como o leão. A surpreendente ferocidade do panda romperia o nosso status quo, porque ele nos parece consciente de sua força e, ao mesmo tempo, equilibrado em não a usar para nosso mal. Mereçamos essa deferência ou não, o panda é-nos mais confiável que o leão. Pelo mesmo motivo, ninguém ficaria admirado se o funcionário saísse ileso da jaula do urso-panda mas sim da do leão.
Nossa moral humana é uma espécie de etologia do Homem Integral, um ser ideal, um Sócrates ou um Cristo. Mesmo no plano das ideias, não nos cansamos de nos decepcionar e, mesmo assim, diariamente rompemos relações, riscamos nomes de nossa agenda, paramos de ler livros, de ver filmes, de apreciar o que nos dava prazer e nos causava admiração. Em nome desse Homem Integral, restrinjo minha vida, paro de ousar, paro de conversar, paro de expor o que penso e, paradoxalmente, torno-me mais convicto, mais feroz. O mundo é o culpado. O mundo está tornando-me assim. Sou uma vítima! Será?
Será que a imensa massa de informação nos tornará milhões de seres ferozes? Um dia será normal esperar que devoremos quem entre na nossa jaula? Pior: um dia se admirarão porque não devoramos quem entrou na nossa jaula? É essa a etologia que criamos, protegendo-nos do mundo que nos ameaça e que lamentamos existir? Serão nossos ídolos todos quebrados pela decepção? Serão todos nossos amigos e parentes afastados por impossível convivência e por divergência de opinião? Será que, enfim, a tolerância se tornará palavra arcaica, mito do passado, algo que só supostos idiotas pregaram? Enfim, será desfeita a comunicação, as línguas deixarão de existir e as pessoas sobreviverão emitindo grunhidos óbvios, num apocalipse à la Mad Max? Um pensamento paralelo enviesa nossa lógica para a área de nossas fobias e alavanca nossa paixão e nosso ódio, nosso instinto animal e nossas defesas de sobrevivência.
Não conseguimos desenvolver a razão pura que imaginamos ter, quando fingimos ser setecentistas. Quem justifica o que faz mediante essa razão contaminada e enviesada, esconde a vontade de fazer calar, de impor, de destruir o outro. E quanto mais alguém for inconsciente de que sua razão é espúria, maior será a sua má-fé: com mais convicção chegará ao termo de seus objetivos, mandando matar ou aniquilando com as próprias mãos. Para chegar a esse ponto, basta desconhecer que tudo aquilo em que crê é apenas um ídolo construído a partir do medo daquilo que não aprecia. Todo julgamento negativo é assim.
Será parecido o julgamento positivo? Infelizmente sim. Se amo, defenderei, custe o que custar. Tenho medo de perder. Novamente, aguçarei minhas garras de animal e prepararei minhas presas. O bicho mais feroz é o acuado que se defende. E só se defende aquilo que se ama demais.
A lógica não ama nem odeia porque, como mostra John Stuart Mill, tem um defeito intrínseco em seus silogismos:a conclusão faz parte da premissa maior. É inútil: mero brinquedo para passar tempo. Por que o homem seria lógico? A vida dele é preciosa. Não tem tempo para brincar de coerência. A maior parte do tempo do homem é preocupação com sobrevivência, o resto é carência. Só o fanático perde o pé da realidade e se imagina numa trincheira eterna. O que mais quer o fanático é a paz para sempre. Por isso explodiria o planeta.
A passionalidade é tida como oposto da racionalidade, mas isso não precisaria ser assim. Da mesma forma que é possível a sandice fria e apática, também pode haver lógica inflamada e rigorosa. Se há loucos para todos os gostos, verifica-se que a genialidade convicta tampouco precisa ser necessariamente aloprada. Talvez o que dificulte o entendimento disso seja o cacoete mental ocidental que associa o herói ao embaixador do ético. A nossa encarquilhada visão repetitiva será a maior causa de nossa destruição. O mito do bom velho que aprendeu e serenou-se confunde razão com impotência. Mas a razão, para ser eficiente, precisa ser vigorosa, caso contrário, dá margem às bacantes do non sequitur e à sua orgia irrefreável. Se não queremos que dominem, não lhe deem microfone, nem caneta, nem teclados. O alucinado faz sua função de alucinar. Não podemos cobrar-lhe razão. Isso é função de quem se diz não ser alucinado ou não quer ser alucinado por não achar graça na violência contra a lógica e por não sentir prazer nos abusos do non sequitur.