Hoje, qualquer pessoa, armada de smartphone, consegue informar-se sobre algo de que não sabia nada cinco minutos atrás. Uma palavra deixa de ser apenas um nome e se torna conceito após uma consulta ao oráculo Google. Nossa até então ignorância se torna luminosa sapiência fugaz, que deve ser ruminada no atropelar-se ininterrupto por manadas de informações. Em vez de sabermos apenas soletrar o nome de uma palavra, agora nos inteiramos rapidamente de seu conteúdo e esse neoconhecimento - se assim podemos chamá-lo - tem a semelhança de um finíssimo véu de seda que pomos um sobre o outro, numa pilha sem fim, onde jamais o reencontraremos. Ao lado do antigo conhecimento enciclopédico de poucos, erigiu-se o conhecimento wikipédico de muitos, que sequer leem o verbete completo: apenas o suficiente para reforçar aquilo que já sabem, pondo um pouco de rejunte no seu pequeno e vaguíssimo conhecimento real. Eis o ser mais notável nos dias de hoje: o ignorante orgulhoso de sua ignorância. Para atingirmos esse nível, sem dúvida alguma, é desejável uma boa dose de autoengano.
A abundância de informações de hoje em dia nos permite ser críticos. Nunca houve tanta facilidade em questionar. Se essa facilidade advém de alguma capacidade lógica, ninguém negará que é preciso uma boa dose da nossa conhecida eterna falta de saciedade. Ora, desde que o cérebro inchou e o homem se pôs a raciocinar em cima de construções mentais, a falta de saciedade é a ordem do dia, da hora, do minuto. Até aí, morreu o Neves. Mas a pergunta que nos cabe fazer aqui só pode ser uma: é possível questionar, sem querer destruir? Alguém dirá que destruir faz parte da etapa seguinte ao questionar. Senão, vejamos.
Se concluo que algo não é bom - e, suponhamos, isso é inegável - que faço com essa conclusão?
Serei conservador? Porque concordo que não é bom mas - dane-se! - herdei-o de alguém de quem gosto.
Serei revolucionário? Já que me parece óbvio, uma vez detectado que algo não é bom, devemos riscá-lo da face da Terra.
Serei alienado? Mesmo vendo que não é bom, direi a mim mesmo que é bom, sim e chamo para a briga quem discordar de mim.
Enfim, o fato de alguém questionar, vendo que algo não é bom, não significa nada. A reação seguinte dependerá de como lidará com aquilo que deixou de ser bom. A crítica, portanto, levantará multidões de conservadores, revolucionários e alienados, que, em seguida, passam a engalfinhar-se e pulam uns nos cangotes dos outros. Nada de novo está sendo dito.
Se concluo que algo não é bom - e, suponhamos, isso é inegável - que faço com essa conclusão?
Serei conservador? Porque concordo que não é bom mas - dane-se! - herdei-o de alguém de quem gosto.
Serei revolucionário? Já que me parece óbvio, uma vez detectado que algo não é bom, devemos riscá-lo da face da Terra.
Serei alienado? Mesmo vendo que não é bom, direi a mim mesmo que é bom, sim e chamo para a briga quem discordar de mim.
Enfim, o fato de alguém questionar, vendo que algo não é bom, não significa nada. A reação seguinte dependerá de como lidará com aquilo que deixou de ser bom. A crítica, portanto, levantará multidões de conservadores, revolucionários e alienados, que, em seguida, passam a engalfinhar-se e pulam uns nos cangotes dos outros. Nada de novo está sendo dito.
Ora, uma crítica incita, gera ou sugere a mudança da imagem do criticado, independente da reação escolhida. Nesse grande momento, o criticado não tem mais o direito de ter a sua essência da mesma forma que sempre foi e ainda era, momentos antes.
O criticado pode, por exemplo, permanecer sob urros dos que detectam a sua mudança de imagem. Mas a destruição é, necessariamente, o ato contínuo à crítica? É a destruição que o conservador e o alienado devem temer? É à destruição que o revolucionário deve almejar? Não há uma outra via? Decerto há, além do mero deixar como está. Se a solução mais comum, banal e imediata do pós-crítica é a destruição, nada impede que o oposto também possa ocorrer. E o oposto da destruição não só é a manutenção do status quo, mas também a construção.
O criticado pode, por exemplo, permanecer sob urros dos que detectam a sua mudança de imagem. Mas a destruição é, necessariamente, o ato contínuo à crítica? É a destruição que o conservador e o alienado devem temer? É à destruição que o revolucionário deve almejar? Não há uma outra via? Decerto há, além do mero deixar como está. Se a solução mais comum, banal e imediata do pós-crítica é a destruição, nada impede que o oposto também possa ocorrer. E o oposto da destruição não só é a manutenção do status quo, mas também a construção.
A construção, porém, alerto, é algo raro, raríssimo no mundo atabalhoado do símio racional. Por quê? Se formos atentos ao mundo, essa resposta é quase óbvia. Acima de qualquer coisa, construir requer engenho. Falemos seriamente agora, quem não percebe que a inteligência é a mais fugaz de todas as manifestações dos milênios de humanidade? Sem esse engenho, não há construção nenhuma, apenas repetições de fórmulas que já não deram certo e foram esquecidas. A nova tentativa de algo que já sofreu crítica é uma lamentável forma de demonstração de que a espécie humana é tão inteligente quanto qualquer sapo, qualquer pelicano, qualquer quadrúpede que vagueia babando pela terra. Para mim, não há novidade nenhuma nesse fato, mas algumas pessoas ainda podem se escandalizar com a comparação do semidivino homem com torpes animais.
Repensando um pouco, percebemos que criticar significa romper a inteireza de algo que funcionava, bem ou mal. Ora, o primeiro passo após a ruptura da inteireza é geração de polos abstratos, extremamente maniqueístas, que facilitam o nosso questionar. Portanto, não se constrói nada logo após a crítica. Quando o rei percebe que está nu, só lhe cabe tapar as vergonhas. Nenhuma outra solução poderia ocorrer-lhe no momento. Quem não concordar, observe melhor doravante: é essa a regra.
Conclui-se, de forma quase tautológica, que é mais fácil destruir que construir. A crítica alavanca destruição apenas por vicioso hábito e é sobre a fedentina do ser desintegrado que demorará para surgir algo de fato novo. Eis a regra de ouro: é mais fácil substituir o ruim pelo pior do que criar algo absolutamente novo. Os românticos, nesse ponto, foram os mais equivocados dos homens.
Conclui-se, de forma quase tautológica, que é mais fácil destruir que construir. A crítica alavanca destruição apenas por vicioso hábito e é sobre a fedentina do ser desintegrado que demorará para surgir algo de fato novo. Eis a regra de ouro: é mais fácil substituir o ruim pelo pior do que criar algo absolutamente novo. Os românticos, nesse ponto, foram os mais equivocados dos homens.
Quando a metade boa, a esquerda (onde está o coração), do visconde Medardo de Terralba planejava sua máquina, no maravilhoso conto Il visconte dimezzato, de Italo Calvino, não conseguia pensar em nada simples, que pudesse trazer felicidade a todos, e, por isso, visando à mais útil das construções, construiu a máquina mutante mais inútil de todas. Mestre Pietrochiodo, sempre a serviço da utilidade, só consegue ser um eficaz servo da vontade de poder e do sadismo da outra metade má, a direita, do mesmo visconde, que havia sido partido ao meio numa guerra. Será que Calvino detectou que o bem é inábil como a mão esquerda de um destro e só constrói coisas inúteis que não saem do esquemático mundo das ideias dos projetos, enquanto ao mal se atende muito prontamente e até com certa criatividade, pois, de alguma forma, tem mais a ver com nossos hábitos?
Mas o homem não está fadado ao mal. A prática do mal é tão insuportável quanto a teoria do bem. I nostri sentimenti si facevano incolori e ottusi, poiché ci sentivamo come perduti tra malvagità e virtù ugualmente disumane. Se destruir é algo corriqueiro, mas não é o ideal, construir parece ser a solução.
Mas há uma diferença enorme entre destruir e construir para além dos prefixos que os distinguem como meros opostos. Construir requer paz, construir requer tempo. Da amalucada tabula rasa só sai fumaça, cinza, monturos de cascalho. Derruba-se uma edificação em tempo dez mil vezes menor do que o utilizado para erguê-la. Prova disso é que a história da humanidade vê claras mudanças após o surgimento do machadinho de pedra, do bronze, da pólvora e da bomba atômica. Essas invenções, marcos da revolução paleolítica, do domínio mesopotâmico, da ascensão europeia e do mundo pós-moderno, são pontos históricos importantes, contudo muito distantes de qualquer construção, pelo contrário: foram alavancas da destruição. Pensar não é, de modo algum, construir e, como vimos, questionar, ao contrário, é praticamente o botão destinado à destruição. A construção não vem nem do raciocínio nem do questionamento: vem do cansaço demoradíssimo que beira o desespero entre uma guerra e outra.
Cadê, ó otimista Nietzsche, o teu super-homem do outro lado da corda? Cadê, ó Marx, o teu paraíso após a revolução do proletariado? Cadê, ó Comte, o teu pensamento positivo que nos abraçará depois de tudo? Cadê, ó Hegel, os valores da tua amada Prússia, objetivo do espírito da humanidade após dez mil sínteses e antíteses? Nada mais que boas ideias. Nada mais que frutos do questionamento. Esperamos eternamente algo que nunca virá. Tudo ruiu.
Toda construção, observem, é gerada por outro caminho: toda construção vem do cansaço. E aparentemente não estamos ainda fartos de sangue e corpos eviscerados para dizer que o tempo da bonança eterna chegou. Ainda conseguimos suportar muita tristeza, ainda gostamos que muita loucura rompa nosso tédio. E eis que o bando está de novo em convulsão, pela infinitésima vez, batendo no peito de maneira exibicionista, como gorilas machos prestes a se enfrentar. Gritam esses gorilas: eu questiono! Eu sei questionar! Aprendi agora mesmo!
Mas o homem não está fadado ao mal. A prática do mal é tão insuportável quanto a teoria do bem. I nostri sentimenti si facevano incolori e ottusi, poiché ci sentivamo come perduti tra malvagità e virtù ugualmente disumane. Se destruir é algo corriqueiro, mas não é o ideal, construir parece ser a solução.
Mas há uma diferença enorme entre destruir e construir para além dos prefixos que os distinguem como meros opostos. Construir requer paz, construir requer tempo. Da amalucada tabula rasa só sai fumaça, cinza, monturos de cascalho. Derruba-se uma edificação em tempo dez mil vezes menor do que o utilizado para erguê-la. Prova disso é que a história da humanidade vê claras mudanças após o surgimento do machadinho de pedra, do bronze, da pólvora e da bomba atômica. Essas invenções, marcos da revolução paleolítica, do domínio mesopotâmico, da ascensão europeia e do mundo pós-moderno, são pontos históricos importantes, contudo muito distantes de qualquer construção, pelo contrário: foram alavancas da destruição. Pensar não é, de modo algum, construir e, como vimos, questionar, ao contrário, é praticamente o botão destinado à destruição. A construção não vem nem do raciocínio nem do questionamento: vem do cansaço demoradíssimo que beira o desespero entre uma guerra e outra.
Cadê, ó otimista Nietzsche, o teu super-homem do outro lado da corda? Cadê, ó Marx, o teu paraíso após a revolução do proletariado? Cadê, ó Comte, o teu pensamento positivo que nos abraçará depois de tudo? Cadê, ó Hegel, os valores da tua amada Prússia, objetivo do espírito da humanidade após dez mil sínteses e antíteses? Nada mais que boas ideias. Nada mais que frutos do questionamento. Esperamos eternamente algo que nunca virá. Tudo ruiu.
Toda construção, observem, é gerada por outro caminho: toda construção vem do cansaço. E aparentemente não estamos ainda fartos de sangue e corpos eviscerados para dizer que o tempo da bonança eterna chegou. Ainda conseguimos suportar muita tristeza, ainda gostamos que muita loucura rompa nosso tédio. E eis que o bando está de novo em convulsão, pela infinitésima vez, batendo no peito de maneira exibicionista, como gorilas machos prestes a se enfrentar. Gritam esses gorilas: eu questiono! Eu sei questionar! Aprendi agora mesmo!
Retomemos: construir, ao contrário, requer paz e tempo. Paz que só vem quando tudo está ruim demais depois de ter estado péssimo. Tempo que anda lento e demorado enquanto nossa mente cozinha o angu da invenção realmente útil que nos tirará do sufoco. Pior: nem todo mundo pode construir, nem todo mundo tem essa capacidade. Infelizmente. Somos todos racionais? No atacado? Uma ova. A minoria da minoria da minoria conseguiria dar um primeiro passo em direção à construção, isso se tiver a sorte de não morrer de fome no meio do caminho, ou de loucura. Não se constrói nada em convulsão e com impaciência. Todo discurso de um mundo melhor imediatamente após uma revolução é balela. Esse discurso, porém, nos pega por dentro, nós, sedentos de justiça e de espólios. Há uma Mutter Courage dentro de cada um de nós. Construir para quê, se é possível viver como abutre? Pensa o raciocínio estreito, o da maciça maioria.
"Mas para construir é preciso destruir", diz o que pensa fazer algo com seu cérebro distinto de ser submetido a ele. Do yin nasce o yang, diz a sabedoria oriental. Balela! A destruição é ímpeto, é força inata do australopiteco pós-moderno. Vem nos genes, é brinde, junto com a sua cognição e tantas outras coisas do destino, de onde não fugirá, A criança mói o chocalho e ri. Destruição nada mais é que o modus operandi do primata humano. A construção é outra coisa. Não se deixe levar pelos prefixos que, na sua oposição, só refletem uma nesga da onipresente burrice das tradições e das culturas. Construir é quase um acaso. Construir significa: estou farto mas não vou esperar ninguém. Construir significa: eu sou meu líder, eu sou meu deus, eu sou a pessoa que vai tirar-nos desse enrosco por um caminho que ninguém enxergou. Quem constrói não segue lampiões no escuro, aventura-se sozinho, às vezes cai em buracos e morre. Por isso não se constrói tanto. É preciso coragem para construir sem destruir. É preciso mais do que um cérebro herdado de peixes e lagartos. É preciso ter uma obsessão inútil, com alguma ligação misteriosa com o Mundo das Ideias, prestes a ser usada no momento limítrofe da loucura. É preciso ser beijado pelo acaso.
O construtor não é um usurpador, não é um líder, não é um gênio. É apenas uma pessoa cansada. Alguém que não quer seguir, não quer compartilhar, não quer nada além do que sempre quis. E o que queria não era importante para ninguém até então, até a situação ficar crítica. É alguém que faz prevalecer a sua vontade, de maneira natural, por necessidade de todos. O construtor é o único que consegue parir algo que seja relevante de fato. Todos o agradecerão, embora raros sejam os que deixam seus nomes registrados. É o inventor da porcelana, dos calendários, do arado, da escrita, do quinino, das abluções rituais, de tantas soluções úteis, com as quais séculos de ciência culta não conseguem comparar-se. Que falta faz a presença de um único construtor no mundo arrogante e maluco de hoje! Há mais de dois séculos não surge um digno desse nome!