Ao evocarmos a razão humana, surge um bom momento para distinguirmos racionalidade de razoabilidade. Aparentemente há uma intersecção entre os dois conceitos, mas nem sempre o que os une é claro, seja nos arrazoados acadêmicos, seja nos extra-acadêmicos. Como saber que tipo de razão se evoca como exclusiva da espécie humana (ou, menos pretensiosamente, de uma ideologia ocidental que se confunde com a suposta sapiência hominídea)?
Falar de algo racional nos remete aos séculos XVII e XVIII, assassinados pela Revolução Francesa e pelos tresloucados fichteanos, hegelianos, comtianos, marxistas, nietzscheanos, schoppenhauerianos, spencerianos, freudianos, heideggerianos, junguianos, gramscianos, lacanianos et alii. O que se diz racional parece ter algo de Aristóteles, de Newton ou um híbrido de ambos, isto é, quando esses cultos representantes dos hominídeos também não se põem a falar de coisas intangíveis. O modelo de linguagem do racional é a lógica clássica. Foi a usurpação dessa racionalidade pelo bonapartismo que criou o mostrengo da burocracia e em nome de uma inatingível razão vestem os magistrados suas togas. A verdade, segundo a mente embevecida pela racionalidade, traduziria o que supomos real, pelo julgamento dos nossos sentidos por algo, de fato real, latente, sentado e sorridente, no mundo das ideias. É em nome dessa verdade que clama o racional.
Mas falar do razoável é algo completamente diferente. Para a razoabilidade, dane-se Platão. O razoável compara-se a uma gambiarra funcional. É uma exceção necessária, obviamente com o apoio de uma boa parte dos interlocutores. O razoável não constitui religiões, filosofias ou ciências, pois não responde à pergunta O que é?, mas à questão Como resolvo isso?. Se, por um lado, pelo racional clamam os sistemas, os quais nos armam verbal e belicamente contra nossos inimigos irracionais, por outro, é pelo razoável que toda teoria é abandonada, pensando-se no agora e no amanhã. Razoável, para ser sucinto, é toda solução prática.
Mas estaremos preparados para o razoável compartilhado, uma vez que o meme do racional infestou o planeta desde que as grandes navegações europeias proclamaram haver um só modo de resolver as coisas para qualquer tipo de problema? Hoje distinguir entre o racional e o irracional parece tão óbvio que poderíamos ver nessa certeza algo de fanatismo e, de fato, que é o fanatismo senão uma pressuposição inconsciente? Concordarás comigo que não há nada mais óbvio hoje do que o conselho de que devemos ser racionais. Talvez fosse melhor se pensássemos que deveríamos ser razoáveis.
A racionalidade requer palavras muito especiais, claramente definidas, sem julgamento de valor a não ser o valor da verdade (e a sua negação, a falsidade). Requer regras muito claras e uma progressão de raciocínio que impede voltarmos atrás, a não ser pelas próprias regras. Por exemplo: os governantes numa democracia são eleitos pela maioria, mediante um ritual específico, para representar-nos, durante um determinado número de anos e exercer suas funções num sistema em que leis, decretos, regras entre os poderes estão claramente definidos em uma constituição, cuja alteração requer novamente aprovação da maioria representativa, seguindo um ritual previamente estabelecido pela constituição anterior. Se o governante é uma grande besta, se a maioria é corrompida, se leis que baguncem as regras são votadas e se o ritual é completamente invertido mediante esses mesmíssimos processos, tanto faz: essas gambiarras que descaracterizam a máquina são tão bem engendradas que equivalem à situação de duas pessoas que iniciam uma partida de xadrez e terminam com um mão de straight flush. Nesse sentido, algo racional, modificado lentamente em nome da razoabilidade, se converte numa barafunda entontecedora.
Outro exemplo: uma avenida importante da cidade é fechada para o lazer dos cidadãos todo final de semana. Mas num determinado final de semana venta e chove o dia todo e a chuvarada é entrecortada por granizos intermitentes, gerando um trânsito caótico. Como o fechamento da avenida foi decidido por lei, após movimentos populares e discursos de seus representantes, e essa lei foi taquigrafada, digitada, apreciada em diversas instâncias, votada, promulgada e divulgada em órgãos oficiais, comunicada aos órgãos responsáveis, que contrataram servidores e/ou acionaram seus recursos e por fim concretizada, todo o percurso burocrático não suporta, em nome da racionalidade, o seu não-cumprimento por causa de um ad hoc tão concreto quanto uns granizinhos, a menos (talvez) em caso de súbita emergência de uma calamidade pública. A rua, fechada para o lazer mesmo num dia em que lazer algum pode ser proporcionado, obstruirá o trânsito, segundo o silogismo indefectível da burocracia, pois não poderá prejudicar o direito de uma ou duas pessoas andarem sob uma chuva insuportavelmente torrencial, as quais processarão o Estado alegando não se importarem de alguns granizos furarem seu guarda-chuva e acertarem-lhe a cachimônia. Como podes ver, a racionalidade produz coisas muito estranhas. Só um defensor extremado da racionalidade achará perfeitamente ponderado que até mesmo em água mineral haja a indicação "não contém glúten" ou que embalagens de lenços de papel umedecido advirtam "não ingerir": possíveis ingestoras são crianças, que não sabem ler; se souberem e, mesmo assim, fizerem essa maluquice, ou são muito desobedientes ou não sabiam que "ingerir" queria dizer "comer". Outra possível casta de ingestores de lenços umedecidos são loucos, que, mesmo conhecendo a palavra, não darão bola para a recomendação, porque, convenhamos, não é fácil acompanhar o raciocínio de um louco. Em suma, não é prevendo o razoável que se constrói o racional e sua jurisprudência, ó crente dos pressupostos setecentistas!
Se valesse a razoabilidade, ninguém ficaria esperando ficar verde um semáforo que não está num cruzamento, se não houver pedestres. Mas é o que se vê: o sinal fecha, fica vermelho, os carros param diante de faixas de segurança que não estão em cruzamentos e nas quais não há pedestres. Esses mesmos adestrados behavioristicamente pela multa são capazes de atropelar ou pelo menos dar um susto em alguém que atravesse a faixa de segurança só porque não há semáforos e, segundo sua razão razoável, na luta carne versus lata, o mais forte sairá com o melhor bônus - e dane-se a empatia com o pedestre, o amor ao próximo e outras coisas razoáveis. Ou seja, quem segue a razão racional pode ser o mesmo que não segue a razão razoável e vice versa.
Não é possível criar leis a partir do bom-senso, daí o sucesso inegável da burocracia estúpida, produto de uma mente acéfala, a qual ganha mundo afora e já está traduzida até na língua dos tasaday. Quem leva a sério o que digo entenderá que o bom-senso depende da comunicação, outro mito do mundo platônico, pois estamos por demais imersos na incomunicabilidade, no medo, na indiferença, na desconfiança do outro e na confiança daquilo que nos é apresentado como racional, misto terrível de paradoxos que nos torna verdadeiramente irresponsáveis. Não me lembro de ter visto uma síntese melhor desse problema do que no filme The square, de Ruben Östlund.
A racionalidade nos diz, por exemplo, que há esquimós sobre a terra e que eles têm vários nomes para neve. A confiança nessa informação nos deixa irresponsáveis e, batendo no peito como gorilas, racionais, destemidos e confiantes, embora incomunicáveis. Essa confiança chega ao cúmulo de representarmos Chilly Willy morando num iglu, embora pinguins não existam no Polo Norte, único local em que existem iglus stricto sensu. A racionalidade, alertada de sua burrice, percebe que vacilou, mas isso é pouco. Iglus são feitos por esquimós, certo? Mas... existem mesmo esquimós? Não estou perguntando se os habitantes do Ártico existem, nem estou dando a entender que hoje não existam mais pessoas vivendo em iglus, pois os esquimós os abandonaram para morar em casas, com caleifação e outras as comodidades do mundo moderno. Quando pergunto se há mesmo esquimós, não estou insinuando que os esquimós não são mais esquimós porque não sabem mais orientar-se na neve ou distinguir a que afunda da que é firme, a perene da recentemente depositada... não! Não é disso que estou falando. O leitor, atordoado com a minha pergunta, talvez a interprete de um segundo modo bizarro, imaginando que eu pergunte sobre a inexistência dos esquimós, por saber que esses nativos do Ártico já não gostam de ser chamados assim e alguém, sempre atento ao politicamente correto, substituirá a anatemática palavra "esquimó" por "inuíte", sem saber direito a bobagem que está fazendo, como explicarei a seguir. Eu te digo, leitor: com medo de generalizar, generalizas também. Antes de solucionar o enigma de minha pergunta, analisemo-la: existem mesmo esquimós? Não é uma pergunta que requer as minudências das sutilezas acima. É uma pergunta direta, do tipo "sim ou não". Pois bem, eu estou mais propenso a dizer "não", embora não te culpe por pensares o contrário. Antes lamento, pois a tua resposta afirmativa se deve à nefanda racionalidade.
Explico-me, leitor, pois vejo-te boquiaberto. A entidade que chamas de "esquimó" ou "inuíte" é uma abstração muito estranha e comigo estaria concorde Duns Scotus. Tu, porém, defenderás, com raciocínio escolástico, argumentando com um ad hoc, por exemplo, que Chilly Willy, na verdade, esteve, desde sempre, visitando seu amigo, o urso polar Maxie, e portanto está no Polo Norte e não no Polo Sul, como o incauto telespectador não imaginara, e foi acima do Equador que aprendeu a fazer iglus, donde se conclui que esteja mais precisamente no Ártico Central do Canadá ou na região groenlandesa de Thule, onde se fazem ou faziam iglus tais como conhecemos pelos meios de comunicação: não com peles e ossos de baleia, mas minimalistamente com blocos de gelo. Data venia, insisto na questão: o mesmo exegeta das loucuras dos estúdios Walter Lantz defenderá ainda a existência de esquimós? Vejamos.
Distingam-se os esquimós dos aleutas. Olhando um mapa, o leitor reconhecerá as Ilhas Aleutas entre a Ásia e a América, onde moram os aleutas ou aleútes ou, como eles mesmos querem ser chamados, os unangax. Do ponto de vista linguístico, a língua aleuta é bem distinta de como os esquimós propriamente ditos se exprimem. Mesmo assim, a fala aleuta difere bastante, dependendo da tribo a que pertence: há os sasignan (ou sasxinan ou sasxinas) em Attu, Agattu e Semichi; há também os kasakam unangangis em Copper Island. Esses grupos diferem bastante do naahmigus das ilhas Delarof e Andreanof e do niigugis falados em Kanaga, Adak, Atka, Amlia e Seguam. Por outro lado, esses dois grupos ainda diferem do akuugun (Four Mountains), do qawalangin (Fox Islands), do qigiigun (Krenitzin), do qagaan tayagungin (Sanak Islands), do taxtamam tunuu (Belkofski) e do qagiigun (Shumagin). Somando tudo isso, não temos nem 500 falantes. O monolinguismo, em nome da razão, é totalmente excepcional, lembremos. Imagina, leitor, quantos outros grupos não existiram e quanta expressão linguística foi engolida pela bruma dos tempos, pela sevícia dos ditos civilizados e pelo orgulho/medo etnocêntrico.
Mas dirá alguém que aleuta não é esquimó, embora a expressão de todos eles dê azo à construção de uma família linguística comum (chamada esquimó-aleuta, nome de uma pré-histórica língua, ainda que com tons eternamente provisórios, cheia de asteriscos). A expressão esquimó estaria dividida em dois grupos: os yupik e os inuit. Vê, leitor, a ironia das soluções racionais: trocar o nome "esquimó" por "inuíte" não resolve nada e, ainda por cima, pode ofender algum yupik. Os yupik, são na verdade, um grupo, com 11.000 falantes de línguas como o yugtun, o chevak cup'ik, o nunivak cup'ik, o koniag alutiiq, o chugach alutiiq, o yuit e o sivuqaghmiistun. Os inuit propriamente ditos, formam outro grupo, ainda mais heterogêneo, que somam 98.000 falantes de alguma língua esquimó-aleuta que não é nem aleuta nem yupik. No norte do Alasca vivem os inupiaq que falam ou qawiaraq ou inupiatun (se incluirmos também entre esses últimos os falantes de uumarmiutun, isto é, os falantes de aklavik e os inuvik). No oeste do Canadá há os inuvialuktun, que falam siglitun, inuinnaqtun (ou kangiriyuarmiutun, se o leitor achar mais fácil de pronunciar) e os natsilingmiutut. Por fim, no leste do Canadá, junto com os inuinnaqtun, há os falantes de nunatsiavummiututut, de nunavimmiutit, de qikiqtaaluk uannangani, de aivilimmiutut e de kivallirmiutut. Por fim o nome "groenlandês" é dado à língua oficialmente reconhecida pela Dinamarca, isto é, o kalaallisut (só ela com 50000 falantes), mas também pode referir-se ao tunumiisut e ao inuktun. Portanto, não há esquimó algum. Há povos distintos que nossa pequena capacidade de apreciar a diversidade chama de esquimó ou de inuíte. E para quem acha isso demais, saiba que não detalhamos as expressões consideradas "dialetos", isto é, as formas linguísticas mais tímidas, engolidas pela expressão majoritária. Um falante de inuktun tem de se comunicar não só com sua família: quando sai do seu círculo familiar, tem de usar o kalaallisut,o dinamarquês ou o inglês e, quando sai do círculo polar, terá de aprender outras línguas.
Nossa mente não suporta tanta coisa. O raciocínio quer simplificação, daí a lógica, que não é esqueleto da linguagem, como queria Port Royal, mas uma linguagem platônica. Nunca se encontrará um centro da lógica na mente humana: melhor procurá-la na área dos costumes adquiridos, como o de pôr sal na manga verde. Daí a racionalidade com sua promessa canaânica de que nos salvará da loucura nada mais é que uma lanterna pra andarmos na escuridão ou um facão para desbastar matas muito densas e fazermos uma picada. O previsível é apenas uma regra de que se vale nossa mente atrapalhada e nosso remédio atordoado, como nos mostram ilusionistas como Apollo Robins e Eric Leclerc na série Brain Games. Sofremos por termos nascido primatas com cérebros de hominídeos. Pagamos por isso uma pena muito dura. E cumprimo-la não numa colônia penal, mas numa colônia mental. Como alento, qualquer fuga dessa racionalidade parece extremamente razoável, embora tenha seus riscos e consequências.