Avizinhando-se meu meio século de existência, no ano passado, quando da visita de minha irmã à minha casa na selva paulistana, surgiu o tema da aposentadoria. Vinte anos atrás eu ingressara no meu atual emprego, mas, como se sabia nos pressupostos da conversa, eu trabalho desde os dezessete anos e passei por muitos lugares. Foi nesse contexto informal que surgiu o tema da incorporação desse tempo todo para a contagem de minha aposentadoria. Como sempre fui desleixadamente pouco pragmático, ouvi atento de minha mana como deveria ser esse procedimento justíssimo, afinal, se trabalho há mais de trinta anos, por que não informar as instâncias responsáveis pela minha aposentadoria? Meu cunhado, um ser pragmático, como todos os que não perdem tempo com questões filosóficas como eu, fez as contas e ficou espantado (com razão) por que eu ainda não tinha feito isso. Foi em meados de julho de 2017. Mal saíram as visitas, fui correndo ao computador agendar e, na confiança dos relatos, tinha certeza de que tudo seria muito simples: "você chega lá, pede a contagem, eles puxam um papel do computador e pronto: só não perca esse documento pois você deve levá-lo ao seu RH e, no mês seguinte, já incorpora o tempo e está tudo certo". Foi com essas palavras na mente que agendei. Havia vaga apenas para dois meses depois. "Normal", pensei. Falavam tanto de reforma da previdência, que não estranhei o fato de não haver agendamento para a semana seguinte.
Chega enfim o dia. No papel do agendamento dizia-se que eu deveria chegar com meia hora de antecedência. Surpresa: o agendamento não queria dizer nada. Era preciso tirar outra senha e esperar. O número não era muito alto, então lá estava eu, disposto a tudo, sem reclamar. Nova surpresa: os números que apareciam no telão não estavam na ordem e verifiquei que o comportamento da numeração era um tanto aleatório. Confirmei com um segurança: de fato, era aleatório. Previsão para atendimento? Nenhuma. Foram duas horas de espera. Curiosamente no papelzinho amarelo dizia-se que eu esperaria apenas dezessete minutos.
Fui até a mesa com meu "bom dia" à funcionária, que parecia um tanto distraída, pois, salvo melhor juízo, não me ouviu. Contei-lhe a razão da minha ida e ela, sempre olhando de lado, com cara de muito cansada, irritada ou desgostosa da vida, apenas esticou a mão, sem me dizer nada. Interpretei seu gesto como uma solicitação de que devia dar-lhe os documentos exigidos. A partir daí, foi um grampear e um descontentar-se com as espécies de comprovantes oferecidos, numa iminência crescente de negativa de recebimento, que me deixou apreensivo. Ela, porém, levantou-se, pegou uma pastinha branca e puxou um papel que acabara de imprimir, o qual folheei em silêncio enquanto ela me dava as costas. Fez isso tudo sem dirigir-me nem a palavra nem o olhar, rodava a cadeira e abria gavetas à busca de carimbos, sem responder nenhuma pergunta que eu fazia, a essa altura já gaguejante e constrangido. No tal papel impresso, eu vi, com admiração, que constavam muitos lugares, praticamente todos, sem exceção, onde fiz algum tipo de atividade remunerada e aí tive a certeza, muito mais do que eu poderia lembrar-me, de que já trabalhei pacas. Até então, não saberia dizer se ela era muda, cega ou surda, pois me pareceu o tempo todo que eu não estava ali na frente dela. Concluí benevolentemente que, depois de anos de atendimento ao público, é tristemente natural que se desenvolvam algumas defesas, mesmo quando não era o caso, pois eu parecia, naquele momento, completamente inofensivo. Por fim grunhiu algo que entendi como constatação da falta de um documento que, se bem entendi, talvez fosse posteriormente solicitado pelo correio, no momento certo, sei lá. Como ela não tinha a menor intenção de repetir o que havia dito, julguei que tudo estava encerrado. Estiquei-lhe a mão com cordialidade para despedir-me e ela completou, dessa vez com voz bem clara: "a carteira de trabalho fica". Apatetado e sem outra opção, tirei-a do bolso e deixei lá o documento original, do qual eu não tinha cópias e no qual se comprovavam todos os meus trabalhos pregressos em escolas, muitas das quais sequer existem mais hoje. Uma delas, por exemplo, foi demolida e hoje é uma farmácia. Não foi sem uma dor no coração que vi a caderneta azul ser enfiada num envelope pardo, grampeada, anexada ao formulário branco e jogada num canto. "É só isso?". A resposta foi o desviar do rosto já entediado no início do expediente e o apertar de um botão chamando o próximo. Mas, para meu espanto, ela ainda, nesse momento, me consolou: "Está demorando, viu?". Arrisquei ainda perguntar quanto tempo, mas ficou claro, pelo seu levantar de ombros que não fazia a menor ideia.
Fui até a mesa com meu "bom dia" à funcionária, que parecia um tanto distraída, pois, salvo melhor juízo, não me ouviu. Contei-lhe a razão da minha ida e ela, sempre olhando de lado, com cara de muito cansada, irritada ou desgostosa da vida, apenas esticou a mão, sem me dizer nada. Interpretei seu gesto como uma solicitação de que devia dar-lhe os documentos exigidos. A partir daí, foi um grampear e um descontentar-se com as espécies de comprovantes oferecidos, numa iminência crescente de negativa de recebimento, que me deixou apreensivo. Ela, porém, levantou-se, pegou uma pastinha branca e puxou um papel que acabara de imprimir, o qual folheei em silêncio enquanto ela me dava as costas. Fez isso tudo sem dirigir-me nem a palavra nem o olhar, rodava a cadeira e abria gavetas à busca de carimbos, sem responder nenhuma pergunta que eu fazia, a essa altura já gaguejante e constrangido. No tal papel impresso, eu vi, com admiração, que constavam muitos lugares, praticamente todos, sem exceção, onde fiz algum tipo de atividade remunerada e aí tive a certeza, muito mais do que eu poderia lembrar-me, de que já trabalhei pacas. Até então, não saberia dizer se ela era muda, cega ou surda, pois me pareceu o tempo todo que eu não estava ali na frente dela. Concluí benevolentemente que, depois de anos de atendimento ao público, é tristemente natural que se desenvolvam algumas defesas, mesmo quando não era o caso, pois eu parecia, naquele momento, completamente inofensivo. Por fim grunhiu algo que entendi como constatação da falta de um documento que, se bem entendi, talvez fosse posteriormente solicitado pelo correio, no momento certo, sei lá. Como ela não tinha a menor intenção de repetir o que havia dito, julguei que tudo estava encerrado. Estiquei-lhe a mão com cordialidade para despedir-me e ela completou, dessa vez com voz bem clara: "a carteira de trabalho fica". Apatetado e sem outra opção, tirei-a do bolso e deixei lá o documento original, do qual eu não tinha cópias e no qual se comprovavam todos os meus trabalhos pregressos em escolas, muitas das quais sequer existem mais hoje. Uma delas, por exemplo, foi demolida e hoje é uma farmácia. Não foi sem uma dor no coração que vi a caderneta azul ser enfiada num envelope pardo, grampeada, anexada ao formulário branco e jogada num canto. "É só isso?". A resposta foi o desviar do rosto já entediado no início do expediente e o apertar de um botão chamando o próximo. Mas, para meu espanto, ela ainda, nesse momento, me consolou: "Está demorando, viu?". Arrisquei ainda perguntar quanto tempo, mas ficou claro, pelo seu levantar de ombros que não fazia a menor ideia.
O Brasil deve ser um país maravilhoso mesmo: não consigo imaginar nada mais kafkianamente formal que fóruns, cartórios ou institutos de seguro social como esses, mas o informalismo nas tratativas, bem ao sabor edulcorado dos nossos autoencômios, se mescla em tudo que depende de outrem. Por exemplo, nesse processo desde o momento do agendamento até o atendimento e não para por aí. A primeira imagem que me vem à cabeça é o de soldados nazistas também agindo assim, de forma despiciente, com cozinheiros, donas de casa, pianistas, professores e escritores, dirigindo-lhes apenas suas ordens para desnudar-se. Para uma Polliana, tratar igualmente mal tanto uma pobre diarista mancando por sofrer de gota e que só tem comprovação dos cinquenta anos de trabalho informal por meio de cartas de patroa, quanto um professor livre-docente de uma consagrada universidade nacional, talvez seja algo de que devemos nos gabar em nossa sociedade livre e democrática. Mas há um serzinho irritante dentro de mim, que odeia essa Polliana, e diz: "Que nada! É falta de educação mesmo!". E esse serzinho às vezes tem vontade de dizer verdades a ponto de só parar quando fosse arrastado de lá por dois seguranças, cada um em um braço. Ainda bem que esse serzinho é covarde o suficiente para sabe ler aquele quadro em que reza o artigo 331 do Código Penal "desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela: pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa".
Não só Polliana, mas também Pangloss: "bom, como estamos no melhor dos mundos, deve ser assim mesmo e não vou me preocupar". Mas, não teve jeito. Eu me preocupei porque me pareceu tudo muito anômalo. Na semana seguinte, após narrar o ocorrido à minha irmã, que estranhou a retenção do documento, fui ao site e vi algo ainda mais estranho. Depois de decifrar um infernal novelo emaranhado de instruções crípticas, consegui a informação que queria: "certidão de tempo de contribuição não concedida". A primeira coisa que me ocorreu foi a careta da bruaca e seu grunhido: faltou algum documento. Não havia como interpretar de outro modo. Mas havia.
Fui lá novamente e passei por todas as mesmas agruras. Dessa vez fui atendido por uma funcionária gentil e menos lacônica, embora com a mesma pressa, justificada pela fila infernalmente longa dos que estavam atrás de mim. A explicação foi simples: não é que o pedido foi analisado e não me foi concedido. Não, veja bem. Faltavam três palavrinhas óbvias e desambiguizadoras essenciais ali: o artigo "a", o advérbio "ainda" e o verbo "foi". Interprete-se qualquer um a expressão "certidão de tempo de contribuição não concedida" como "A certidão de tempo de contribuição AINDA não FOI concedida", donde se conclui, por conseguinte, que o será, uma vez que não seria negada, caso contrário, a bruaca nem o teria aceitado. Ou seja, eu havia tido sorte e era questão de ter paciência e esperar. Humilhado, eu, que leio Kant e entendo, por ter sido vencido por uma ambiguidade que esta segunda funcionária dizia não haver, saí com o rabo entre as pernas e resolvi resignar-me e fazer o que ela disse: esperar, pois ela ainda me esclarecera que nem precisaria ir ao site e checar a toda hora se a certidão estaria pronta. De maneira eficaz eu seria informado pelo correio. Bom, se é assim, fazer o quê? Não tenho por que duvidar... esperemos!
Pois bem, passaram-se a Semana da Pátria, o Natal, Ano Novo, o Carnaval e a Páscoa, mesmo assim, nenhuma carta chegava do correio. Mas eu estava ciente de que iria demorar. Um semestre depois recebia informações do meu RH sobre a data da minha possível aposentadoria. Impossível não se lembrar do fato que, com a tal certidão, que tardava e não chegava nunca, essa data poderia ser antecipada. Mais que isso: surgiu uma angústia ao imaginar o prédio em chamas, ao me lembrar do processo ser jogado sobre uma pilha e muitas teorias conspirativas começaram a me cercar. Temia o extravio do documento. Todos diziam que era "só ir lá e pegar o negócio" ou caprichavam no espanto: "nossa, comigo foi rapidinho: saiu na hora". Foi quando comentei com uma amiga advogada, que não disfarçou em mostrar-se chocada e usou termos como "retenção indevida" e, se não me engano, "ilegal". Foi o bastante para ficar com azia de tanto nervosismo e fazer nova visita.
Mas as regras mudaram: atendimento sem agendamento agora só de manhã. O guardinha barrava a entrada e um senhor, furioso, dava azo à verve de seu serzinho irritante particular e, quando prestei atenção no que falava, verifiquei tratar-se do mesmíssimo caso, com uma diferença: o documento dele havia sido retido ainda há mais tempo que o meu. No dia seguinte, estava eu lá bem cedo de novo e fui atendido pela mesma segunda funcionária, que não se lembrou de mim, obviamente. Foi aí que ela puxou a ficha do andamento de meu processo no computador e lá apenas constava que em 25 de setembro de 2017 a papelada tinha "subido" para análise e só: nada havia sido feito ainda naquele dia 10 de abril de 2018. Pegou meu telefone, que anotou gentilmente, rasgando um pedaço de papel e enfiando num bolo de outros papéis. Assegurou-me que falaria com uma superior e que ela entraria em contato comigo por telefone. Perguntei se não poderia retirar meu documento para levá-lo a outra unidade e ela lamentou, dizendo que, sim, eu podia, mas apenas mediante ofício solicitando o desarquivamento do processo etc. e apertou a campainha. Do meu lado já estava o próximo a ser atendido. Despedi-me. Recebi um "até logo". Muito bom. Informações claras.
E foi o que fiz: passadas algumas semanas muito atribuladas, no dia de hoje passei por toda a agrura novamente e desci os círculos todinhos novamente: o Limbo, o Vale dos Ventos, o Lago da Lama, o Rio Estige, o Vale do Flegetonte e o Lago Cocite. Acordei às 5h30 da manhã pensando que pegaria uma boa colocação na fila, pois ainda não estava acreditando na total aleatoridade das chamadas. Típico de uma mente teimosa. Cheguei lá às 7h05; o posto já estava aberto e a fila era ainda mais monstruosa do que das outras vezes, porque terminava na estação do metrô, serpeava pelas calçadas e adentrava a Caina, a Antenora, a Ptolomeia.... Andava lenta e uma senhora, não encontrando receptividade num casal de orientais atrás dela, começou a narrar a essa distância intercalada, com riqueza de detalhes, o seu dia-a-dia, ou seja, as coisas normais de uma metrópole: vivia no que hoje se chama "comunidade", mataram o vizinho dela ontem, o corpo estava lá no chão, perto do ponto de ônibus, aliás, ela mesma já teve revólver na boca, mas olhou bem valente pro bandido sem medo nenhum - garantia - o bandido, aliás, que ela conhece e desafia, apertou três vezes o gatilho, mas a arma não disparou, afinal de contas, ela não tem medo nunca, pois quem ora para o Senhor não tem medo de nada, amém etc etc essas coisas de sempre, que a gente hoje entediantemente ouve toda hora na fila da padaria e parece bem apropriadas para começar o dia... Consegui minha senha uma hora depois de ouvir essa longa narrativa de minha companheira de fila e, já disposto a esperar mais duas horas, comecei a conversar, de pé, obviamente com um outro senhorzinho, que agendara pelo computador (como eu fizera da primeira vez) e que tinha numeração bem mais baixa que a minha, por ter madrugado na fila para pegar o primeiro horário e não precisar faltar do emprego. Parênteses: a minha senha era de número 171, "número ridiculamente trágico", me cochichava o serzinho insuportável da minha mente. Nem preciso falar que fui injustamente atendido antes desse senhor. que se queixava de dor nas pernas. Sorry, estamos na selva. Adentrei a Esfera da Judeca, rezando para não ver a bruaca.
Atendeu-me um moço, que entendeu minha solicitação, pediu o tal ofício e como nele eu tinha mencionado tudo o que te digo aqui nesta postagem (obviamente sem a riqueza de julgamentos, mas com uma profusão de números de protocolos e datas), após lê-lo por alto, esse novo funcionário informou-me que não podia ser daquele jeito. Eu deveria redigi-lo novamente, mais objetivo. Consolou-me que não teria de voltar, estendeu-me a esferográfica e uma folha de papel para que eu o fizesse de próprio punho. Enquanto isso, foi buscar o processo e minha CTPS. Eu apenas queria sair de lá, mas, diferentemente dos anteriores, esse funcionário desabafou enquanto desgrampeava as folhas. Estava lá há 11 anos e a muvuca do atendimento sempre foi assim infernal, desmentindo todos os relatos de meus amigos acerca da facilidade de obtenção do documento. Sem pedir desculpas, mas com um resquício de empatia, afinal de contas, via que que eu era apenas uma pessoa comum com vontade de garantir seus direitos prometidos pela sociedade, vaticinou realisticamente que nos demais postos da capital eu enfrentaria a mesma divina comédia, arrazoou resignadamente a falta de funcionários, constatou que havia os que não faziam as funções direito, ponderou que havia uns que eram realmente difíceis, enfim, confessou que se estivesse na minha pele, faria a mesma coisa. Agradeci. Finalmente consegui apertar uma mão e despedir-me de um ser humano, enquanto acotovelava-me suavemente entre uma multidão de velhinhos com bengala em pé, prontos para embarcar na nave de Caronte, gente hipnotizada pelo quadro de números sorteados, rezando para que o trespasse fosse rápido e indolor.
Saí de lá, tal como Orfeu sem Eurídice, mas pior até do que ele, porque não infringi nenhuma regra que justificasse minha punição. Zanzei pelas ruas do centro da cidade, como que recém-liberto de uma prisão, como que redivivo depois de desenganado por um médico. Uma única coisa povoava meus pensamentos e não era meu serzinho irritante: era a vontade de sentar-me, no mês de meu aniversário de cinquenta anos, e desabafar neste blog isso tudo, não para vingar-me da sociedade de que faço parte, mas para comprovar a mais perfeita inutilidade de ser eu perante o outro. Voltei de lá com minha carteira da mesma forma que fui com ela para lá há quase um ano. Nada aconteceu nesse interregno a não ser descaso e, na melhor das hipóteses, ineficiência. Ainda ecoavam as palavras do último funcionário na minha mente: "se o cara der o azar de pegar alguém que não manda a coisa para a frente...". Sempre me espantei com frases incompletas. Há algo de ameaçador nelas. Parecem os olhos de uma onça surgindo na escuridão de um bambuzal.
Leitor, sabes pelos outros relatos meus que me custou muito admitir-me como ateu. Não foi sem dor. Ter assumido isso em nada se equipara com a gabolice dos neoateus que acham que têm espíritos com o nome de "lógica" ou "bom-senso" a seu favor, do seu lado da peleja ilíada. Sim, foi terrível assumir meu ateísmo. Mas parece que foi ainda mais demorado assumir meu lado apolítico. Seria feio em meu meio universitário de Humanidades - onde se transpõem abismos segurando-se nos cipós de Hegel e onde, assoviando, se tateia a obscuridade das matas do relativismo - falar com todas as letras que não acredita mais em governos, sem ser rotulado injustamente como anarquista ou algo que não sou. Não. A esperança de que não há um ser transcendental com corpo humano e cabeça de elefante num panteão de deuses ou mesmo com uma força colossal justificadora de causas finais inexistentes parece ser mais fácil de superar do que acreditar que não há ninguém nunca em lugar algum por nós mesmos e que somos devorados por parasitas que alardeiam bravatas e gastam meu dinheiro em pinga, cocaína ou orgias representando quer uma sigla partidária que se diz pró-trabalhador (mas que mantém o status quo do opressor de forma igual e tão eficiente quanto o próprio opressor), quer idealizando uma tirania detentora de um chinelo para estalar na bunda dos malvados, mas que na verdade anuncia (apenas para os atentos e pouco ingênuos) um horrível rio de sangue.
Enquanto o pior não acontece, somos crianças soltas numa selva ou algo como que bestas: somos uma vara faminta e grunhidora ao lado do cocho com lavagem, somos uma manada pisando resignadamente com nosso passo de proboscídeo, somos uma cáfila com pouca corcova, somos serpentes que se contorcem como skatistas, desviando-se da choldra, enfim, nada mais somos que uma caravana cansada de atravessar um deserto, rumo a coisa alguma. Atualmente e, não só em países de Terceiro Mundo, um projeto é algo que só existe na esfera da individualidade e somente dentro dela faz algum sentido. Como dizia o pessimista: a luz no fim do túnel é o trem que vem ao nosso encontro.