Há percursos que parecem só caminhados passo a passo. Eu não posso me postar ao pé dos escadórios do Bom Jesus do Monte, em Braga, e segundos depois, sem ziguezaguear os lanços, ver-me no adro da basílica sem transpor o Pórtico, sem passar pelos Cinco Sentidos, sem cruzar as Três Virtudes. Essa via sacra parece parte daquele que está aqui em baixo para chegar até lá em cima: os 116 metros de desnível e os 581 degraus não se transpõem com uma só passada.
No entanto, há gente que parece conseguir enfrentar a verdade dos continua com incompreensíveis saltos quânticos, tal como ocorre no final da história da cética flecha de Zenão ou com o taco de bilhar de Hume. Esse superar-se cada vez mais sempre serviu para a auto-alabança do bicho-homem, mas a verdade é que seres assim são tão raros quanto incompreensíveis. Oliver Sacks no seu The man who mistook his wife for a hat and another clinical tales apresenta o caso, que beira o limite de qualquer compreensão, dos irmãos "John" e "Michael", gêmeos autistas "savants" que não sabiam ler nem fazer cálculos de multiplicação simples, mas brincavam entre si alternando, em voz alta, números primos em sequências de até 20 dígitos.
Um pouco aquém desse limite, os portentos humanos, quando não ocorrem na nossa família ou na vizinhança, nos são conhecidos somente pelo noticiário, que se torna, nesses casos, vezeiramente, substituto do antigo circo. Podemos achar muito superficial como a espetacularização desses casos é apresentada, mas é verdade também que é a única forma de virmos a conhecer a existência desses casos. E isso é positivo. Não fosse assim, nosso salutar ceticismo se tornaria um canhestro dogmatismo e a sabedoria não se constrói por meio da teima acerca daquilo que já supomos conhecer.
Sem saber, o baiano Estêvão Silva da Conceição, por exemplo, atingiu o mesmo formalismo de Antoni Gaudí i Cornet. Antes mesmo de conhecer aquele com quem foi comparado, a sua residência descoberta em Paraisópolis por acadêmicos não precisou romper paradigmas para existir. Bastou que se rompesse a vida cotidiana de tantos outros milhares de pedreiros e jardineiros como ele. Ainda que se diga que foi involuntariamente embebido por um Zeitgeist modernista extemporâneo, esse saber lhe veio num obscuro letramento estético, cujas vias nos parecem incompreensíveis. Sequer podemos valer-nos de explicações da teleológica funcionalidade que explicam, por exemplo, convergências homoplásticas entre mantídeos e mantispídeos.
Igualmente desconhecidos são os trajetos da genialidade do cearense surdo José Arivelton Ribeiro que reconstruiu - mais de uma vez - seu próprio braço amputado a partir de sucata. Quando vejo cada vez mais aprimorada a sua criação, finalmente entendo surpreso um dos melhores empregos da palavra "reinventar-se" que eu conheço. Um inventor não só vê as coisas como elas são, mas, para além das suas características materiais, atribui-lhes uma função que contribui para finalidades que são de seu interesse ou de sua necessidade. Não foram os chineses que inventaram a porcelana: foi um único chinês. A diferença entre o ser humano médio e o inventor está na pervicácia. É a obstinação de extrair sonhos de sua mente agitada e transformá-los em objetos extramentais que distingue o criador dos milhões de acomodados usuários de suas criações.
Foi o que pensei quando a TV me apresentou recentemente o mineiro Guerzone Sebastião Lopes, que se orgulha de nunca ter pago uma conta de luz na sua vida e há quarenta anos superou a dificuldade de não ter energia elétrica na zona rural por meio de sua própria microusina hidroelétrica. Numa das placas em sua propriedade, lê-se "ESSE, GERADORZINHO FUACIONA, O, RADIO", curioso registro que mescla as funções de blocos de notas e de exposições artísticas. Em sua enorme simplicidade orgulhosa de alguém que teve pouquíssimos estudos formais, encarna o que se espera de um verdadeiro gênio. Com sua barba pré-socrática, o sr. Guerzone confirma a afirmação de Tales de Mileto de que tudo é água. E, de fato, para todas suas simples necessidades tem uma resposta nesse elemento: o liquidificador, o esmeril, a máquina de lavar roupa, a vitrola, a televisão, monjolos, tudo depende da semilendária Roda D´Água, que funciona ininterrupta há quatro décadas. Refuta a hipótese da esposa de que é louco, lembrando o dia em que toda a cidade de Cachoeira de Minas ficou sem energia elétrica, exceto a sua casa, mostrando assim, de maneira igualmente helênica, que um cidadão nem sempre precisa ser escravo do Estado.
Dentre muitas reportagens sobre esse homem que domina a energia de seu lar por meio de cordas e alavancas, uma, particularmente me incomodou, transmitida pelo programa Domingo Espetacular, da Rede Record, pelo modo como foi conduzida. Esse Arquimedes mineiro é um homem simples da zona rural e não consegue explicar de onde vêm suas ideias, por isso, resume simplesmente que elas vêm "de Deus e de sua cabeça". Afirma que consegue realizar seus feitos simplesmente "imaginando e fazendo", no entanto, o repórter Luiz Gustavo, talvez inconscientemente querendo roubar a cena do brilhantismo do Tesla mineiro, gasta inutilmente um tempo enorme da reportagem enfatizando que sr. Guerzone usa uma "espécie de dialeto caipira". A despeito de se tratar de algo óbvio, que não é do desconhecimento do inventor, antes, pelo contrário, fonte de orgulho, o repórter resolve ser um enviado do Monte Sinai da Gramática Normativa. Estranha, logo no início, a palavra "fundura", escrita pelo genial inventor numa pedra, e afirma que na cidade se diz "profundidade", o que reputa ser a única expressão correta. No entanto, a palavra "fundura" existe em documentos do século XV e já é verbete desde o primeiro dicionário da língua portuguesa, o do lamegão Jerônimo Cardoso de 1562-1563, o que prova que o repórter não agiu por conhecimento, mas por preconceito em relação àquilo que considera inusual. Infelizmente não há leis para punir quem faz bullying linguístico publicamente. Na cabeça de vaugelaisianos como ele só há uma forma certa (ou seja, a que ele conhece), premissa falsa donde se conclui rapidamente que todas as demais variantes ou não existem ou são reprováveis. Qual das formas de expressão é a certa só se determina consoante algum decreto divino encerrado na autoridade dos gramáticos, sobretudo nos usados pelos professores que lhe conferiram maior escolaridade e, portanto, maior hegemonia. Por causa desses lamentáveis pressupostos, o repórter sente-se à vontade para humilhar o inventor duas vezes ensinando-lhe a supostamente correta pronúncia "téquinica" (com um i epentético para o qual parece surdo) em vez da variante preferida na zona rural "ténica", que acha deformada e passível de justíssimo extermínio, simplesmente por existir. O pseudoproblema levantado parece não ter sido muito bem entendido pelo inventor, que tem mais o que fazer. Se houvesse alguma irascibilidade no paciente superdotado, faltaria pouco, imagino, para que se transformasse num Diógenes de Sinope e reclamasse da sombra de Alexandre. Sadismos disfarçados de humor me são insuportáveis: "o senhor não fica constrangido da gente ficar pedindo pra repetir as palavras, não, né?", "O senhor se assume como caipira!", "isso não é vergonha nenhuma né?". Gostaria de saber, uma vez que eu também sou caipira, onde está a vergonha de ser caipira. Certa vez, um conhecido me apresentou a um canadense: ele se definia orgulhosamente como gaúcho, mas não me permitiu que eu me definisse como caipira, porque achava que eu estava me autodepreciando. Justamente eu, que acredito que é possível filosofar na minha expressão natal.
Gostaria de saber ainda por que alguém diferente do que narcisisticamente se acha belo, correto e certo conterá necessariamente um "defeito" engraçado aos olhos desses ingênuos cultores do apolíneo, que conseguem abstrair toda a real graça e singularidade do outro, transformando-as num folguedo, num divertido desdouro com deméritos, justo no que deveriam ver maravilha, espanto, fascínio e deslumbramento. O conhecimento do gênio para os que não sabem apreciar conhecimento algum é como a cabeça enorme do anãozinho deformado do cruel conto The birthday of the infanta de Oscar Wilde. Doeu-me no peito ver no vídeo o ancião talentoso fazer o que o repórter lhe exige, retirando inquisitorialmente a fórceps, para roubar-lhe o protagonismo. O mais irônico é que a qualidade da sua própria pergunta não passaria pelo severo crivo de normatividade, pois, inconscientemente, estava eivada de metaplasmos reprováveis por doutos com os mesmos valores do inquisidor. Na inconsciência dos verdugos, nega-se a detectar defeitos na sua própria expressão por não ter espelho para se ver, nem ouvido de foneticista para ouvir sua profusão de apócopes de desinência de infinitivo. Fora isso, tampouco o perdoariam os transcendentais profetas da norma culta pela quantidade de repetições e pela abundância de outras construções reprováveis. Do alto de seu papel de humilhador, mal sabe que sua expressão também difere diametralmente daquilo que está nas gramáticas, embora hipocritamente seja tolerada pelo brasileiro médio urbano, ordinariamente inculto, quando não desrespeitoso com as minorias. Em vez de deixar o palco para o gênio, o penetra do palco lança um "iiissoooo!" no meio do show, quando consegue arrancar do nosso Thomas Edison a expressão que desejava. Fê-lo passar pelo ordálio de falar a tal palavra sobresdrúxula de que não abria mão. Retribui-se o "eureka" com um rincho asnal de quem conseguiu o desejado ovo de ouro da gansa. Paulo Henrique Amorim parece ter percebido que o repórter carregou a mão no seu pretenso humor quando rematou, tentando consertar a reportagem: "mas, cá entre nós, quem precisa de técnica com tanta genialidade assim?".
Prodígios não nascem apenas de uma razão obsessiva. Há outra área para os milagres. Pois o genial não está completo se não for belo. E, segundo meu juízo, sempre ganhará medalha de ouro neste quesito o insuperável sergipano Arthur Bispo do Rosário, que, como todos sabem, subiu aos céus em seu Manto da Apresentação. Não há ciência nem arte se não houver gentileza, já nos disse outro sábio que nos aprisiona em interrogações, a saber, o paulista José Datrino, cuja destruição de seus monumentos fez Marisa Monte desabar em lágrimas. Incrível! Apagaram tudo, cobriram tudo de cinza. Como há carrascos nesse mundo! E o consolo para o Gran Circus Norte-Americano foi insensivelmente sepultado. Não duvido que daqui a pouco até a própria Pedra do Ingá seja dinamitada para virar úteis paralelepípedos. A onipresente burrice humana quer ser mais espantosa do que a inteligência de poucos. Não dá muito espaço para o êxtase. Lamente comigo, leitor.
Na peregrinação à sabedoria, do conhecimento científico à epifania religiosa, o continuum parece-se com uma estrada, onde há grandes hotéis e alojamentos bem definidos, em feroz concorrência com alguns albergues mais baratos, que teimam em brotar como cogumelos, para ganhar visibilidade com suas coloridas luzes ou com megafones dizendo afirmações de mau gosto. Contudo, há cabanas feitas de pau e folhas de bananeira, moradas sem paredes, nem teto, onde se deita no mato um só indivíduo e ele ali, naquela estrada, se sente mais confortável que em qualquer suíte de luxo. Foram alguns desses sem-hospedagem na rota da sabedoria que abobalharam os primeiros românticos e seu discurso de simpatia curiosa ainda está aí hoje, na forma de estupor televisivo e youtúbico.
Caro leitor, não seja ingênuo como o cafelandense que enaltece orgulhosamente o Mestre Gentileza por ter expresso sua cafelandidade, nem como o juparatubense que vê juparatubidade em Bispo do Rosário, tampouco como aquele mineiro narcisista que pensa que o sr. Guerzone só poderia ser mineiro. Entenda-me bem, por Gentileza: esses indivíduos, apesar de serem todos brasileiros neste texto, por pura comodidade argumentativa minha, não foram citados para enaltecer a inteligência do brasileiro nem para dizer que "o melhor do Brasil é o brasileiro". Seja sábio, meu querido que me lê, para entender que existiram, existem e existirão outros Estêvãos da Conceição e Josés Arivelton no Equador, no Mali, no Camboja, em Funafuti, em Lilongwe, entre os lapões, entre os Parkatêjê ou entre os falantes da língua yaqai.
Caro leitor, não seja ingênuo como o cafelandense que enaltece orgulhosamente o Mestre Gentileza por ter expresso sua cafelandidade, nem como o juparatubense que vê juparatubidade em Bispo do Rosário, tampouco como aquele mineiro narcisista que pensa que o sr. Guerzone só poderia ser mineiro. Entenda-me bem, por Gentileza: esses indivíduos, apesar de serem todos brasileiros neste texto, por pura comodidade argumentativa minha, não foram citados para enaltecer a inteligência do brasileiro nem para dizer que "o melhor do Brasil é o brasileiro". Seja sábio, meu querido que me lê, para entender que existiram, existem e existirão outros Estêvãos da Conceição e Josés Arivelton no Equador, no Mali, no Camboja, em Funafuti, em Lilongwe, entre os lapões, entre os Parkatêjê ou entre os falantes da língua yaqai.