Um grupo de animais chamado cnidários desenvolveu, em priscas eras, um mecanismo engenhoso. Trata-se de células altamente especializadas chamadas cnidoblastos, que têm um pequeno cílio, o qual, levemente tocado, abre um alçapão e projeta uma seta pontiaguda serrilhada e embebida em veneno. Como são frágeis, muitas vezes muitas dessas células se perdem com uma única presa, no entanto, tais seres têm a capacidade de regenerá-las em algumas horas. Existem animais, porém, que têm a habilidade de comer essas células, como algumas lesmas do mar, e, por cleptoplastia, usa-as como se a evolução lhes tivesse dado essa arma.
A morte é tão antiga quanto a vida: é tão difícil imaginar o primeiro conjunto de células replicantes que se organizou em um indivíduo vivo, quanto o primeiro insucesso de sobrevivência que resultou na primeira morte. Antes da vida, tudo era morte (isto é, física ou química), mas uma vez havendo vida, a morte passou a ser não mais uma condição eterna, mas um momentoso segundo na biografia de um indivíduo. Nesse segundo, o ser antes vivo está agora morto, tenha ele vivido muito ou pouco. Tudo que é vivo um dia morrerá, tautologia e contradição que nos atormenta. E nesse mundo atual de vetustos silício e alumínio e moderno plástico, envenenado pelo oxigênio das fotossínteses, que aprendemos a respirar embora nos corroa, conferindo-nos vantagem de sobrevida para os não-imortais que somos por não suportarmos o sulfeto ferroso e o gás sulfídrico da quimiossíntese dos autótrofos, nem a fermentação alcoólica dos heterótrofos primevos, com seu etanol e gás carbônico, rastejamos expulsos do ventre da nossa mãe que desaprendeu a pôr ovos e da sua carne que lhe escondeu o esqueleto, ramelentos, chorando, sem entender nada até o último dia de nossa vida, amaldiçoados pela consciência. Nascemos sem nematocistos.
Nascemos sem acúleos, nascemos sem quelíceras, esses órgãos que trazem a dor e a morte, tão belamente esculpidos pela evolução nos corpos dos artrópodes, nascemos sem o mimetismo dos polvos e dos camaleões para fugirmos, nossa tez nua, negra, amarela ou rosada, se destaca do verde da mata à vista da harpia e à vista do leopardo, sem a velocidade de uma gazela para correr, sem a habilidade de escalar as árvores de nossos primos de primeiro grau, sem rabo de anquilossauro, na verdade, sem rabo algum. Pelados, corremos e ficamos atrás de pedras, dentro das covas. Medrosíssimos nascemos, interpretando um urro acolá, um chacoalhar de cascavel aqui, descalços pisávamos sem cascos as pedras pontudas e a mata que escondia seres proteróglifos e solenóglifos diversos. Como fazer?
Sim, nus, sem couro, sem espinhos, sem cascos, nem nematocistos, sem rabo, sem acúleos, sem quelíceras, lentos, com o esqueleto dentro da carne: um mero tropeção (pois não somos cabras monteses) e despencamos para a morte, levamos nossa prole desajeitadamente no colo, não em marsúpios, nem nas costas como os pipídeos, morrendo com o frio demasiado, morrendo com o calor demasiado, sem dentes caninos decentes para rasgar a carne de nossas vítimas, sem unhas pontiagudas, mas quebradiças e inúteis, com um pelame que crescia incomoda e infinitamente do nosso rosto e da nossa cabeça, expostos aos vermes que penetram pelos pés, aos infinitos protozoários que fazem do nosso corpo o seu lar por meio das picadas dos mosquitos, volta e meia mortalmente ferroados por abelhas que apareciam tão logo uma folha era puxada para passarmos. A generosidade da natureza com nossa espécie parece que foi nula. Nosso olfato é o pior de todos, não enxergamos à noite e, durante o dia, só vemos e ouvimos a uma pequena distância, nossos músculos são franzinos e sequer temos vomerolfação. Como o ruminante, que parece existir apenas para alimentar o leopardo, nossa missão nesse mundo, aparentemente, era ser repasto de feras. Éramos sem dúvida a mais frágil das criaturas, muito mais do que os moles insetos que esmagamos com os pés ao caminhar sobre a relva, sequer percebendo que lhes tiramos a vida.
Será possível que há alguma vantagem de termos perdido o tórax de um gorila, de termos dispensado o rabo de um macaco-prego? Que vantagem é essa que nos fez como somos? Será que o nosso cérebro chupou, como fofocam por aí, todas as nossas forças primevas, arrancando-nos pêlos tão úteis, músculos tão importantes, caudas tão oportunas, para converter em mais mielina para nosso encéfalo, num plano a tão longo prazo? O cérebro pensou que, para nós, seria melhor um Leonardo Da Vinci do que uma gorila Koko? Que vantagem o cérebro viu em nos alijar de todas as nossas armas preciosas dadas pela natureza, de nossos venenos corpóreos, de nossas carapaças de tatu, deixando-nos indefesíssimos enquanto nosso cérebro não parava de crescer, e crescia lentamente? Havia um plano sádico de matar milhares de gerações para, no fim, sermos a glória que somos, o mais arrogante dos animais, que se imagina a imagem do Deus que imaginamos para nós e para os outros?
O leitor biólogo estará meneando a cabeça num conspícuo "Não" face à ignorância que se esconde nessa minha última pergunta. Dirá ele, explicando: "ora, seu hegeliano, não há causa final alguma, não há plano, não há nada: tudo é acaso. Tudo somente sempre foi e será acaso. O DNA enlouqueceu um certo dia e multiplicou os anéis do corpo das minhocas; o DNA enlouqueceu um outro dia e tornou o teu lado direito igual ao teu lado esquerdo; o DNA enlouqueceu novamente e aglutinou todo o teu sistema nervoso perto da boca no plano transversal e não perto do ânus; o DNA mais uma vez enlouqueceu e te pôs de pé, ó hominídeo, para que andasses ereto, equilibrando o peso da tua cabeça, porque isso é de algum modo muito vantajoso. O acaso te põe em apuros, ó verme: ou aguentas o que ele inventa ou o teu nascituro morre. E se aguentas e disso tiras vantagem, haverá um parceiro que assegure que o teu acaso te eternize e, de tua prole, nascerá um comportamento novo, com o qual o mundo de silício e de alumínio terá de se adaptar. Tudo é acaso e sorte de teres tido alguma consciência da vantagem que o acaso te proporcionara no seu sádico enlouquecer".
Não há plano, tudo é acaso. Verdade. Mas vermos vantagem num órgão nascido por acaso não é um acaso. É hora de nos defender da sabedoria do que nos humilha em nossa inocente reflexão. Olhos se formam sem que conseguíssemos ver vantagem quando ainda eram simples células fotorreceptoras. O acaso vê necessidade de construir ropálios nos cubozoários que não estão integrados num sistema nervoso centralizado, mas mesmo assim têm cristalino, córnea e retina. O acaso gosta de jogar dados e gargalha quando o dado cai numa vala e fica na transversal, mas Deus não joga dados, segundo Einstein: de que acaso estamos falando? Falo do acaso que conduziu ao pódio, como campeão, um ser esquisito e complicadíssimo como um briozoário, cujos indivíduos ou caçam, ou procriam, ou sustentam os demais. Esse mesmo acaso conduziu outro campeão, que parece um cuspe que anda, que é um placozoário. Se não há plano (e creio que não haja), qual é o critério desse acaso ao eleger os campeões da sobrevivência, se cada forma de vida, séssil ou vágil, autótrofa ou heterótrofa, bilateral ou radial, é um campeão? O acaso não sabe o que quer e é preciso que um novo Zaratustra proclame que Hegel está morto. Cada encruzilhada que permite a antítese é, na verdade, um caminho já trilhado pelo sucesso de outro ancestral. E há poucos bons caminhos, porque muitíssimos nos conduzem a sendas na escuridão que terminam em despenhadeiros que nos sacrificam. A esperteza do hominídeo foi anotar (primeiro na cachola, depois nos incunábulos e agora digitalmente) todos os caminhos que nos conduzem a uma fria. É uma pena que o bicho homem só sabe anotar e raramente volta a ler o que escreveu. E quase nunca reflete sobre tudo que escreveu à luz de alguma coerência que de fato faria jus à sua autoimagem comtiana de bicho que sempre progride. Se assim fizesse, não morreria afogado, não com gás sulfídrico natural, mas com todos os produtos residuais dos quais foi artífice.
Enquanto o mundo se entulha no plástico hominídeo, a evolução está ali, matando muitos e dando chance a criaturas inimagináveis que nos sepultarão. Custo a acreditar que quando cair o próximo asteroide haja nesse mundo apenas tardígrados e arqueas. Custo a acreditar que um bicho que teve a esperteza de deixar seu esqueleto do lado de fora sucumba antes de nós. O veneno em que nossa cnida maledicente se encontra não será suficiente para nos redimir: é metafórica demais.