É possível abrir os olhos e não querer nada? Se o olhar teleológico do mundo está presente na mente rudimentar, a despeito de sua existência, é porque, no dia anterior ao nosso sono, fomos bem-sucedidos em algo. Mas é falso que o bom sucesso seja a regra, já nos disseram dias anteriores a esse. Ou seja, estamos em guerra contra um mundo desde o momento em que abrimos os olhos pela primeira vez e, em vez de líquido amniótico, vimos a luz. Não foi o insucesso que nos fez chorar, nem ele que nos traumatizou, mas sim a indiferença do mundo, que caminhou por cima de nós como um rolo compressor. Sair de baixo dele às pressas quotidianamente já é um sucesso. Assim, apegar-se à vida é fácil, mas melhor mesmo é apegar-se a uma vida boa. E nossos pequenos sucessos já não nos bastam desde que tínhamos quatro anos. Precisamos manter nossos grandes sucessos, para não termos uma sobrevida fugindo de rolos compressores ameaçadores. Por isso, quando acordamos, já queremos. Queremos manter nossos grandes sucessos e, nesses momentos, buscamos por mais pequenos sucessos imediatamente. Acontece que nem sempre os encontramos e fechamos os olhos no final desse novo dia em que nossa bateia não pegou nenhuma pepita, não frustrados, mas entediados. Em meio às buscas, apenas gozamos a sobrevida garantida pelos grandes sucessos anteriores e eis que, vez ou outra, um vento conduz uma flor cheirosa ao nosso rosto. Não buscávamos flor alguma nesse dia, mas a surpresa foi agradável; não é um grande sucesso, nem mesmo um pequeno, é apenas algo agradável que nem procurávamos, é apenas - interpretamos assim - uma mensagem da traiçoeira esperança de que o mundo não é tão ruim assim. A flor cheirosa que agradavelmente pousa no nosso rosto, conduzida pelos volteios do vento, sem que quiséssemos flor alguma, é a visão de Serendip. Não é apenas acaso, é um acaso que sem querer nos agrada, pois flores não evoluíram para ser admiradas por humanos, mas coevoluíram com abelhas polinizadoras e para elas não fará diferença alguma - e até um certo prejuízo - se as acolhermos em nossa casa e as pusermos risonhos num vaso para egoistamente nos alegrarmos. Lá ela murchará e lá será esquecida pelas abelhas e por nós mesmos e, logo irá para o lixo.
Cruelmente falando, leitor, não houve destino preocupado com nosso alegramento. Houve apenas vento e toda infernal soma vetorial que gera algo que para nós seja uma direção. A flor não tinha culpa de não ter o peso do Morro da Urca. Se o vento fosse mais forte e conduzisse uma placa arrancada, a qual estatelasse na nossa cara, não haveria serendipidade alguma, apesar de ser um acaso como o anterior. Não colocarias a placa num altar e te alegrarias com ela. O julgamento do acaso, se é bom ou se é mau, vem daquele que é atropelado pelo acaso e não do que nos atropela. Não há ser vivo ou não-vivo que não seja atropelado pelo acaso o tempo todo.
Se há leis físicas, o acaso não deveria existir. E de fato, se não há teleologia no acaso e nem propriamente acaso algum, aparentemente tudo está em movimento, tudo pode chocar-se com tudo, basta ser material, basta ter massa, basta que trajetos se cruzem, trajetos claramente determinados, se houvesse o demônio de Laplace prevendo o momento seguinte. Com isso, conclui-se de fato, que nem livre arbítrios há? Chega de determinismos! Parece que o século XVIII já foi superado em algum momento da loucura do XIX. Mas onde?
Se não há a Grande Fórmula do Mundo, o vento, além de todos os vetores, que conduziram a flor, teria algo mais, diz a mente paranoica. Um sensato, contudo, diria que não: tudo seria exatamente igual se o vento passasse por uma outra planta na mesma posição, com uma flor de espécie diferente, mas com um cheiro não tão agradável, mas com mesmo peso e com as mesmas dimensões. Peso é importante para a física, cheiro não, nesse caso. Só há um problema: essa planta é hipotética e não aconteceu isso. A ciência quer prever o futuro sobre coisas que nunca existiram? O que houve foi aquela planta, com aquela flor, levada por aquele vento, em direção ao rosto daquela pessoa. Isso é o fato. O resto é teoria robusta, mas inodora. Uma flor idêntica à flor que voou não é algo que exista, mas é tão simplesmente a mesma flor de que falávamos até então. X=X só faz sentido no raciocínio, mas nenhum sentido no mundo. Se o cheiro depende de substâncias químicas compostas de átomos com pesos diferentes, a fórmula do mundo já não seria a mesma. Seria preciso que a hipotética flor de cheiro desagradável mas mesmo peso tivesse uma substância que não afetasse em nada a rota entre o despegamento do caule e a nossa fuça. Mas duas substâncias assim, tão diferentes e tão iguais, não existem. Então deixemos as coisas hipotéticas no seu rincão da lógica e vejamos o mundo, com os seus ventos e relâmpagos.
Seja como for, isso tudo nos conduziria a algo bem terrível: se tudo é acaso e nossa felicidade, motivada pela flor, malgrado os planos de sobrevivência da mesma flor, também foi um acaso, a serendipidade não vem de deuses que nos querem alegrar. Os deuses não pensam na alegria de ninguém, porque deuses sequer existem. A felicidade, para o demônio de Laplace, seria apenas o nome para uma, dentre muitas matrizes, embutidas numa transformada integral gigantesca.
Se tivéssemos morrido à noite, sem sentir nada, de uma morte súbita qualquer, porém tranquila, nem sequer teríamos aberto os olhos e nos preocupado com nossos pequenos e grandes sucessos, nem sequer teríamos gozado da felicidade serendípica e, mesmo assim, o acaso de termos morrido teria atuado. Basta isso e não conjecturas racionais para mostrar que há um acaso mais profundo por trás daquilo que chamamos "acaso".
Quando admitimos que tudo é acaso, haverá de fato alguma ação? Houve de fato um momento de não-ser, um anatta cósmico, um pré-big Bang, uma não-causa, um nada que criou a singularidade do universo, ou até isso foi um acaso, como quando uma membrana, cheia de moléculas replicantes, lançou no mundo as primeiras arqueias e protistas? Será que a palavra "acaso" tem mais de um sentido ou, por acaso, estamos usando-a de forma ambígua? Sim. O demônio de Laplace se curvará à nossa pergunta: se não há acasos, houve pelo menos um, profundissimamente singular, e é esse paradoxo que justifica não haver acasos mais, pois a máquina foi posta para funcionar. Máquinas? Pensei que estivéssemos falando do Mundo.
Vênia concedida! Contudo, vejamos: a máquina da Física é bem diferente da máquina da Biologia, pois na Física não há escolhas e, salvo engano, mesmo conduzidos por forças do inconsciente, hormônios, fungos ou vírus programadores, é possível que eu, diferente do Morro da Urca, me arraste até a janela aberta e a feche ou não a feche. Independentemente do que eu fizer, parece-me que um ser vivo é algo muito similar ao que está agora circulando no mundo quântico e se eu, complexíssimo, com minhas milhões de células e tendões, sou igual aos sub-átomos no limiar entre a existência e a inexistência, posso chamar sim de "vontade" o que bem quiser e não posso deixar de ver partículas subatômicas querendo algo e bagunçando a cabeça do demônio de Laplace. Se o termo "acaso" é ambíguo, nada me impede de chamar de "vontade" algo muito mais profundo do que aquilo com que Schopenhauer sonhou. E não há definição de "vontade" sem uma pitada de tempero teleológico, prato cheio para não só ficar perplexo, mas também me arrogar na mauvaise foi de criatura humana estúpida e ocidental, que o mundo se iluminou e eu sei os ingredientes do mingau do universo e, pior que isso, em vez de contemplar, quererei ensinar e punirei severamente quem não aprendeu a minha mensagem particularíssima, verborrágica e desarrazoada.
Confesso, leitor, que fico feliz que, de mãos dadas comigo, finalmente quando contemplo as coisas junto contigo, vejas que este meu texto fez algum sentido e se tornou também momentaneamene serendípico. Se por acaso voou contra teu rosto, como a flor que não só hipoteticamente, mas realmente voou, fazes-me contente. Se abri uma pequena janela na tua azáfama, rumo à manutenção de tuas grandes conquistas e à tua lide em direção a pequenas conquistas, fica sabendo que também me alegraste. Podes fechar os teus olhos agora e dormir, porque amanhã tudo continuará igual. Não é necessário sonhar comigo. Nem a mula de sua Alteza, o príncipe de Serendip, com seu olho direito cego me teria ensinado tanto quanto um sorriso teu. E é de conhecimento que minha alma sempre gostou de ser repleta. Se não fiz isso, larga minha mão e desvia teu rosto daquela flor que vem voando ali.