Já mencionei em outra postagem que há, na filmografia de David Cronenberg, um fio-condutor que não se confunde simplesmente com o horror evidente e saliente. Nesses filmes, qualificados, sobretudo pelos vendedores, como trash, há a temática da fusão e do ser transformado. O elemento do horrível tem a estranha função estilística de despistar a mensagem básica do filme e seu fio-condutor.
Talvez dizer isso não convença muita gente, portanto, precisarei ser novamente spoiler, comparando duas obras, que estão mais estreitamente ligadas entre si: Videodrome (1983) e eXistenZ (1999). A minha descrição está mais detalhada, de longe, e mais correta do que o resumo apressado da Wikipedia. Conto o enredo todo, porque aposto que o leitor não verá esses filmes (deixará para vê-los num futuro que nunca se concretizará ou então não quererá ver o filme, cujas cenas grotescas e roteiro fragmentado requerem, de fato, estômago). Minha atitude pretende ser norteador: caso queira ler e depois assistir a ambos, verá que não se trata de um texto estraga-prazer (se a palavra "prazer" se pode aplicar-se de fato a Cronenberg). No fundo, foi um exercício meu de decifração do famoso maneirismo cronenberguiano. Parto da ideia de que nesses dois filmes há uma tese paralela ao enredo, que aponta de forma acusatória para os meios de comunicação, entendidos não como os macluhanianos meios de extensão que nos levarão a um Homo deus harariano, mas como uma espécie de droga, na qual o ser humano se dissolve, se despersonifica e se destrói. A mensagem cronenberguiana só se obtém parando em cada linha de diálogo, como eu fiz, e de modo algum assistindo relaxadamente a esses filmes propositalmente difíceis e feitos para ser odiados. Se a acusação da desintegração humana em máquinas não é novidade alguma hoje, época em que temos a redentora internet e suas filhas, as redes sociais, no bolso de nossas calças, junto com nossas carteiras, os WhatsApp, os Instagrams, os Facebooks, os Twitters e os Telegrams, verdadeiros redimensionadores das relações humanas, pois redistribuíram as nossas relações sociais (da mesma forma grotesca com que a Europa recortou a África em países quadrados, em desrespeito da história dos povos que lá habitavam), não podemos nos esquecer, antes de fazermos nossas caretas vendo esses dois filmes, que se tratava de uma mensagem profética. E é isso que eu percebo, depois de vomitar com as cenas do filme: acabei de ouvir um profeta. Mas de que adianta ouvir profetas? Profetiza-se o aquecimento global e o destino do microplástico nos oceanos, mas continuamos conduzindo nosso presente para o apocalipse. O ser humano só dará razão aos profetas não quando se transformar no Homo deus, mas quando se transformar em Semihomo, única chance de continuar evoluindo. A outra opção será desaparecer da face da Terra, deixando que os vermes e bactérias resistentes nos façam o favor de se alimentar de nosso lixo num ambiente futuro inóspito.
O primeiro filme trata da Civic TV, canal 83, curiosamente o ano do filme, ou seja, o presente. Max Renn é acordado com uma fita de videocassete programada para funcionar como despertador, na qual sua secretária Bridey James diz I'm not a dream, although I've been told I'm a vision of loveliness. E, de fato, o mundo das imagens deixará, como sabemos, de ser um sonho. Max abandona seu sonho e ruma à consciência da realidade (time to slowly, painfully get back into consciousness). Saberemos que Max se interessa por filmes de pornografia e violência por causa de seu canal de TV e que se empolga cada vez menos com eles, pois não os acha mais tacky o suficiente, não o fazem turn on, concluindo que a boa qualidade dos filmes prejudica o sexo que expõe em rede nacional. Procura algo que seja tough e que realmente consiga break through. E esse desejo de superação dos limites e de insatisfação o levará a Harlan, que consegue piratear um satélite e apresenta uma cena de tortura de 53 segundos, provinda, segundo ele, da Malásia. Max considera que essas cenas de tortura chegam a ser insultantes por ser tão curtas e por serem "melhores" do que tudo que já pôde oferecer ao público. Max não sabe, mas nesse exato momento se lançou no Videodrome, que em português, não se traduz como "videódrome" (como se fosse uma "síndrome do vídeo", subtítulo erradamente atribuído à tradução brasileira do filme, pois em momento algum se associa o tema a uma síndrome ou a alguma doença aditiva), mas como "videódromo", ou seja, a uma arena em que os telespectadores são lançados para participar do jogo, como mais tarde será explicado pelo professor O'Blivion. Max quer negociar e comprar os direitos do Videodrome.
Max oferece um cigarro a uma imagem, que é na verdade a mulher que está ao seu lado e será entrevistada juntamente com ele. Essa mulher é Nicki Brand. Max representa a TV, é a tevê cívica, Nicki é o rádio, a Personality. O rádio perde terreno para a TV, a personalidade perde terreno para o que é considerado cívico. Não é com a mulher que Max interage, é com a sua imagem, oferecendo-lhe um cigarro, mesmo que ela, de carne e osso, esteja de seu lado. Max oferece violência e pornografia aos que assistem a seu canal, o programa de Nicki (Emotional Rescue) ajuda pessoas desesperadas. Para uma delas, dirá "consigo ouvir você se desintegrando" e aconselhará que procure ajuda profissional. No programa de TV em que ambos estão sendo entrevistados (Rina King Show), juntamentes com o professor O´Blivion, Max se defende, dizendo que as pessoas querem violência e pornografia, mas nega que isso contribua para o mal-estar social; pelo contrário, é apenas um outlet inofensivo para suas fantasias e suas frustrações. A palavra outlet é uma palavra ambígua em inglês e significa metaforicamente "válvula de escape". Mas pode ser, menos metaforicamente, uma "tomada", como é o bioport, presente no corpo das pessoas no filme futurista eXistenZ, sobre o qual trataremos abaixo. Enquanto Max imagina que seu canal de filmes violentos e pornográficos seja um ato social positivo, Nicki discorda, pois para ela vivemos em tempos de superestimulação: we crave stimulation for its own sake, we gorge ourselves on it. Nesse debate, a posição de O'Blivion tem os ares do conhecimento sedimentado na postura catedrática. Para ele, não se trata de um desejo de autoestimulação crescente, mas vivemos numa época de insensibilidade e de desumanização: a tela nada mais é que a retina dos olhos de nossa mente. O seu nome O'Blivion é falso, obviamente, porque o professor em si não é o esquecimento: trata-se apenas de um nome criado para sua imagem. Como ele, contudo, todos nós teremos nomes especiais em breve, nomes que farão os tubos catódicos ressoarem. Não sei como, mas Cronenberg profetizou na imagem do Esquecimento que ensina, a existência futura do Second Life. Daqui a pouco elegeremos representantes do governo que só existem nessa segunda forma de vida.
Max e seu canal são uma ameaça ao rádio. No entanto, ele deseja Nicki e ela parece receptiva com seu vestido vermelho e seu discurso de overstimulation, segundo a análise freudiana de Max. Nicki também deseja Max, por causa de seu masoquismo. Cada vez mais, Max se vê convencido que o Videodrome é o que ele procura, pois não tem custos: é apenas tortura, assassinato, mutilação. Harlan o conscientiza disso: Videodrome é apenas para pervertidos, é absolutely sicko. Max confessa que não consegue tirar os olhos das cenas do Videodrome, por serem incrivelmente realistas. Nesse momento, todos, inclusive nós, os espectadores do filme, sabemos que as cenas são de tortura real, mas Max não acredita nisso, apesar de achá-las incredibly realistic. Harlan acena que descobriu que aquelas cenas captadas pelo satélite não são da Malásia, mas de Pittsburgh. Na casa de Max, Nicki assiste também ao Videodrome e se excita e quer mais do que tudo ser participante do show dessa arena. Cedendo ao sadomasoquismo de Vicki, perante a TV ligada e durante as cenas do Videodrome, Max tem sua primeira alucinação, pois imagina estar dentro da arena onde as pessoas são torturadas. É momentoso, de fato, quando pela primeira vez a imagem se transpôs para a realidade. Vicki decide ir a Pittsburgh pois diz ter nascido para aquele programa, mas Max teme por ela: those mondo weirdo video guys they've got unsavory connections, they play rough, rougher than even Nicki Brand wants to play. Para Nicki, essas palavras são um desafio. Max imagina distinguir perfeitamente entre a violência que empurra para os telespectadores e a violência do mundo real; imagina não pactuar com a segunda; imagina que Videodrome é uma encenação, mas na verdade encobre para si mesmo que é um sádico e que sabe que Videodrome é um snuff movie, como tenta alertar-lhe a amiga Masha Borowczyk. Quantos Maxes não há hoje? E o número só aumenta cada vez mais.
Masha descobre quem está por trás de Videodrome. Não quer dizer nomes, pois parece muito perigoso envolver-se com assassinos, mas ele a suborna prometendo aceitar os filmes dela, que há pouco havia rejeitado por serem ingênuos demais. World is a shithole, diz Masha, e cede: quem está por trás disso tudo é O'Blivion. Cronenberg é coerente: só poderia mesmo ser ele. Que seria o esquecimento senão o superego que reprime os desejos do ego, desviando sua atenção? Max vai procurar O'Blivion em sua igreja, a Cathode Ray Mission, que salva a alma das pessoas sem-teto, oferecendo-lhes TV e comida: to watch TV will help patch them back into the world's mixing board. Não encontra o professor O'Blivion, mas apenas sua filha, Bianca, a qual lhe diz que o modo preferido do pai para conversar é o monólogo: ele não conversa com ninguém há 20 anos. Dá a Max uma fita de videocassete. Em casa, Max manuseia uma arma quando sua secretária Bridey bate à porta com sua fita-despertador. Max se enfurece com o modo que ela invade sua intimidade e espanca seu rosto. Enquanto bate, o rosto de Bridey se transforma no de Nicki. É a segunda alucinação. Max pede desculpas a Bridey e ela não sabe do que ele está falando, afinal de contas, ele não bateu nela de verdade. Quando sai, pega a fita dada por Bianca e novamente alucina, pois a fita parece ter vida e pulsa.
Na gravação da fita, O'Blivion afirma que, no futuro, o bem mais disputado do planeta será a mente das pessoas e que isso ocorrerá na arena dos vídeos, o Videodrome. A tela, a retina dos olhos da mente, é parte da estrutura física do cérebro, portanto, aquilo que emerge da tela de TV é a experiência nua e crua para o telespectador. Ou seja, as imagens são a realidade e a realidade passa a ser muito menos que a imagem. Isso soa moralista para Max, que ri. Mas O'Blivion continua, dessa vez, dirigindo-se ao próprio Max, numa nova alucinação, dizendo-se feliz que Max tivesse vindo até ele, pois até agora estava lidando com tudo isso sozinho. Informa que a realidade de Max já é metade realidade e metade alucinação. Max deverá tomar cuidado doravante para não se tornar uma alucinação completa. Por isso, precisará acostumar-se vivendo num novo mundo, muito estranho. A tese de O'Blivion é que as visões causaram um tumor no cérebro e não o contrário. São estranhas visões que coalescem e se transformam em uma carne incômoda. Retirado o tumor, ele foi chamado de Videodrome. Ele, O'Blivion, foi a primeira vítima do Videodrome. Enquanto fala, O'Blivion é morto diante dos olhos de Max. O algoz retira a máscara. É Nicki. Ela diz que o deseja: Come to me, come to Nicki, don´t make me wait, please. A TV parece viva, com veias, entumecida, arfando, Max parece fascinado, mais do que assustado. Os lábios de Nicki aumentam, projetam-se para fora da tela e ele parece estar sendo devorado. A cena é tremendamente bizarra e se assemelha a um filme da mesma época, Poltergeist (1982).
Max continua cético e diz a Bianca que o filme desencadeia uma série de alucinações. Bianca diz que o tipo da alucinação é determinado individualmente pelo tumor provocado por assistir ao Videodrome pela primeira vez. Diz que o pai já está morto há 20 anos. Videodrome é a próxima fase da evolução humana como um animal tecnológico (o Homo deus de Harari?). Como o pai, a certa altura, foi contra utilizá-lo, acabou sendo eliminado pelos parceiros. Como a vida nas telas é mais real que a vida privada de carne, ele não se importou com o perecimento de seu próprio corpo e sobrevive nas suas fitas de videocassete. O'Blivion ensinará a Max a entender que esse tumor não é de fato uma pequena porção de carne, incontrolável e sem direção, mas um novo órgão, uma nova porção do cérebro, um novo outgrowth, que teleologicamente produz e controla as alucinações, capaz de mudar a realidade humana. There is nothing real outside our perception of reality. Nesse momento, começa o horror propriamente dito. Max, ao ouvir essas palavras, se transforma na própria máquina que produz imagens: está com a arma na mão ouvindo O'Blivion, sua barriga tem uma cicatriz que coça e ela se abre horrendamente. Ele guarda a arma dentro de si mesmo por meio desse novo orifício em sua carne.
A partir daí, nada mais do que acontecerá é possível de ser plenamente acompanhado pela razão do telespectador. Toca o interfone. Lá embaixo o espera o motorista de Barry Convex, um dos companheiros de O'Blivion, supostamente um dos que o eliminaram. Max ouve o que Convex tem a dizer por meio de uma TV em sua limusine (o fetiche por limusines também aparecerá noutro filme de Cronenberg, Cosmopolis, de 2012). Convex dirige uma ótica (Spectacular Optical), cujo lema é Keeping an eye on the world e que oferece inexpensive glasses for the Third World. Convex diz a Max que parte dos testes da máquina gigante de alucinações em que o Videodrome está envolvida foi captada por Harlan e agora Max está a par de tudo. Metido nessa imensa encrenca, Max sabe que Convex é poderoso, pois também oferece orientação de mísseis para a OTAN. O telespectador, nesse momento, coalucinando com Max, não sabe mais se o enredo do filme é algo que Max de fato vivencia ou faz parte das suas alucinações. Max não sabe se Convex quer ajudá-lo ou se deve ter medo dele. Diz que quer gravar as alucinações de Max em óculos especiais de realidade virtual. Max diz querer os copyrights de suas alucinações, mas Convex entende como uma piada e o ignora. Max coloca o equipamento em sua cabeça e Convex sai: you'll forgive me if I don´t stay around to watch. I just can't cope with the freaky stuff.
Por meio desses óculos de realidade virtual, Max vê Nicki e ambos estão na sala de torturas. Max está no Videodrome com Nicki. What are you waiting for, love? Let´s perform. Let´s open those neural floodgates. Com os óculos de Convex, Max chicoteia um televisor e o espectador vê que a pessoa chicoteada é, na verdade, Masha e não Nicki. Max acorda e imagina estar sonhando. Do seu lado, na cama, vê Masha morta. Chama Harlan, mas quando ele entra no quarto de Max, informa que não há ninguém ali. O espectador começa a desconfiar que Harlan está envolvido com Convex e Max aparentemente também, mas Max desconfia ainda mais do que ele próprio pensa. Após uma briga com Harlan (I'm not some servomechanism you switch on), despedem-se e, no dia seguinte, vai ao seu estúdio, para ver as últimas transmissões do Videodrome, porque teme que o conteúdo de sua mente captado nos óculos de realidade virtual esteja sendo transmitido, e lá encontra Convex. Descobre que foi Convex quem proporcionara que ele construísse o seu canal anos atrás, com a finalidade de expô-lo ao sinal do Videodrome, por causa do sadismo que sempre negara para si mesmo: why would anybody watch a scum show like Videodrome? Why deny you get your kicks out of watching torture and murder? Num discurso, que parece ser pura alucinação, revela-se o plano: Convex quer tornar os norteamericanos mais durões do que o resto do mundo, pois têm de ser puros, diretos e fortes e ele usará Max para isso: nesse momento, o ventre de Max se rasga novamente e Convex enfia a fita em seu corpo, como se Max fosse o próprio instrumento em que rodaria o Videodrome.
A partir desse momento, uma voz ecoa na mente de Max, dizendo ser urgente que ele mate os parceiros do seu canal. Max tenta retirar a fita de dentro de seu corpo, mas extrai de dentro de si é a arma que estava lá guardada. Seu corpo e a arma se tornam uma coisa só: cabos ligam sua mão e seu braço à arma e tudo se cobre de carne. Max vai até o canal e mata seus colegas. Em vários momentos o espectador vê que seu braço está normal e que tudo na verdade é fruto da loucura de Max, mas essa imagem oscila com a da arma colada à mão deteriorada, não sendo possível afirmar racionalmente nada mais daí em diante sobre o que é real e o que é imaginário. Quando a voz lhe manda matar Bianca, sua mão está ainda mais disforme: You´re an assassin now for Videodrome, they can program you. Bianca foge dele e consegue mostrar-lhe por meio de uma filmagem que eles o estão enganando, pois eles mataram Nicki. Isso faz Max voltar a ter um pouco de consciência do que fez. Videodrome is death. Uma arma se projeta na tela e atira nele. Bianca diz que seria doloroso demais retirar a fita de videocassete e modificar a programação. You've become the video word made flesh (parafraseando o versículo bíblico de João 1:14), mas que há uma salvação: voltar-se contra o Videodrome, usando as armas que lhe deram. Death to Videodrome. Long live the New Flesh. Cronenberg retomará o tema da Nova Carne três anos depois, no seu filme The Fly.
No noticiário da TV de um mendigo, o telespectador sabe que de fato alguém matou os produtores do canal 86. Este é o único pé na realidade que podemos ter. Max vai à Spectacular Optical e encontra Harlan empacotando algo. Pergunta o que há na caixa. E Harlan responde: "sua cabeça". O telespectador fica confuso, porque o diálogo que se segue entre Harlan e Max pode ser pura alucinação. Ao enfiar novamente uma fita de videocassete na ferida de Max, a mão de Harlan é despedaçada e se torna um cabeçote; as cenas trash não param aí, pois, aos gritos, Harlan explode. Para completar o maneirismo quase hilário da cena, uma criança que passa na rua diz à mãe que quer ver o grande ka-boom. Tendo eliminado Harlan, Max entra num show, onde Convex discursa. A mão de Max está agora ainda mais deformada. Convex é baleado e, de uma forma desproporcional aos ferimentos que recebe, morre com muito sofrimento, totalmente destroçado de dentro para fora (lembrando uma acusação de Max contra Convex: you're rotting us from the inside) de onde emerge uma espécie de criatura semelhante a um tumor vivo e pulsante. A cena deve ser uma das mais trash do cinema internacional e com certeza propositalmente expulsa loas da maioria dos intelectuais. É assim que Cronenberg marca seu estilo.
Max vai até um barco abandonado e lá há uma TV onde a imagem de Nicki o guiará para o que deverá ser feito. Convence-o que aprendeu muito com Max desde a primeira vez que o viu, que a morte não é o fim. Max confessa que não sabe onde está agora, que teve problemas procurando o seu rumo. Nicki o consola: that's because you've gone as far as you can with the way things are. Videodrome não terminou com a morte de Convex: ainda existe, é muito grande e complexo. Max foi um mártir ferindo alguns dos responsáveis pelo Videodrome, mas não os destruiu. Para fazer isso, é preciso seguir a próxima fase: matar-se. Nicki argumenta: your body has already done a lot of changing, but that is only the beginning of the New Flesh e, segundo ela, Max terá de percorrer agora todo o caminho até o fim, ou seja, realizar uma total transformação em seu corpo, matando a Antiga Carne. Ela lhe mostra exatamente como deve proceder e Max vê na TV a sua imagem futura, atirando-se na cabeça. A TV explode e lança para fora vísceras. Max repete a mesmíssima cena e se mata.
A ingerência das máquinas e de quem as manipula sobre os espectadores é um tema sensível há muito tempo. Mas que isso conduzirá à transformação do corpo biológico na New Flesh é uma tese cara a Cronenberg e, recentemente, a Harari. O filme foi esquecido há muito, mas isso não o impediu que, no mesmo ano em que foi lançado Matrix (1999), o tema da alienação do homem pelas máquinas tenha sido repetido em eXistenZ. O filme das irmãs transgêneras Lilly e Lana Wachowski, segundo o parecer anônimo na capa do DVD que comprei, seria uma brincadeira de crianças perto desse novo filme de Cronenberg.
Desde o início, a fala dos atores de eXistenZ parece artificial, exigindo paciência de seus espectadores. Os atores, para o espectador ingênuo, parecem canastrões, mas tudo isso é proposital, como se verá, e só fica parcialmente evidente com o desenrolar da trama. Não temos mais a Civic TV, mas um futuro próximo, totalmente alterado, no qual a New Antenna Research desenvolve jogos de videogame. O lema da Antenna é we are a team, Antenna and you. Para o lançamento do jogo eXistenZ, da Antenna, foi convidada a maior designer de jogos do mundo, Allegra Geller, segundo a qual as pessoas estão programada para aceitar tão pouco, enquanto as possibilidades são enormes. O jogo é acessado por meio dos chamados slave-pods (que são definidos como metaflesh gamepods), que têm um estranho aspecto de órgão de ser vivo (o fio lembra um cordão umbilical e é chamado de umby-cord) e se plugam em uma tomada que todas as pessoas têm, o bioport, a qual está diretamente ligada à coluna vertebral. Nesse mundo distópico, as pessoas preferem games de esqui a esquiar de verdade. O ato de entrar nos mundos virtuais se chama port-in. Durante a apresentação, Noel Dichter entra, atrasado, em plena sessão de port-in, com um pod obsoleto. Allegra promete que todos serão transportados para o mundo de eXistenZ e estarão de volta num instante e que, durante isso, não devem entrar em pânico, não importando o que acontecesse. Allegra, a deusa dos jogos, é muito tímida, não tem vida social, fica a maior parte do tempo fazendo designs de jogos e talvez preferisse não mostrá-los a ninguém. Noel oculta em seu pod uma estranha arma, levanta-se aponta para Allegra durante a sessão e grita death to the demoness Allegra Geller. Atinge-a no ombro e é brutalmente fuzilado.
Temendo haver mais terroristas na sala, Ted Pikul é solicitado a retirar Allegra do recinto. Ted pega a arma de Noel e sai com ela. Allegra parece excitada e orgulhosa com o atentado, em vez de assustada; ainda dentro do carro, em fuga, pergunta a Ted como ele se sentiria se alguém chegasse até ele gritando death do Ted Pikul. Ted estranha que ela saiba seu nome, mas ela esclarece que está escrito no crachá. Detalhe que só faz sentido depois. Allegra parece aborrecida porque está correndo perigo e lhe mandaram um pk-nerd para salvá-la: de fato Ted parece extraordinariamente ingênuo para a idade. Ted arranca do ombro ferido de Allegra o que supunham ser uma bala. Espantam-se, porque, na verdade, é um dente humano e eles percebem que a estranha arma de Noel é feita de ossos e seu carregador é um maxilar humano. The tooth fairy could go into the arms business, é a piada feita no momento. A salvo, Allegra se deita na cama e se entedia, dizendo-se wandering through eXistenZ. Ela gostaria de estar jogando, mas sem um parceiro é como se frustantemente fosse apenas um turista no mundo de eXistenZ. Nesse momento, Allegra se surpreende com o fato de Ted não ter um bioport. Ted é "virgem", porque ainda não foi fitted. Não será a única vez em que o ato de jogar videogame adquire conotação sexual no filme. Ted tem muita vontade de jogar os jogos de Allegra, mas diz entrar em pânico com a ideia de ter seu corpo perfurado cirurgicamente, algo que nessa distopia se faz em qualquer lugar, com risco infinitésimo de ter paralisia, segundo ela. É estranho para Ted que ela queira jogar enquanto está sendo perseguida por loucos. Allegra diz que o atentado ocorreu bem no momento do download do jogo e o único jeito de saber se está danificado é jogando com um amigo. Isso o convence a fazer um bioport em seu corpo num posto de gasolina.
O dono do posto tem o curioso nome de Gas (que muito espectador, sem ver o final do filme, lamentaria como algo de mau gosto), o qual reconhece Allegra, ajoelha-se a seus pés e diz que ela mudou a sua vida com seu jogo ArtGod, no qual ele é Deus, o artista, o mecânico. Ted pergunta como era a vida dele antes de ArtGod e Gas diz: I operated a gas station, e isso, para ele, agora, é apenas o seu nível de realidade mais patético. Enquanto Gas tenta instalar o bioport em Ted, Allegra vê um estranho animal de duas cabeças, algo que parece completamente irreal ao espectador, mas também fará sentido ao final do filme. Ted tem medo da instalação do bioport, mas Allegra violentamente o convence, dizendo que o corpo dele é a gaiola de sua fabricação, a qual o mantém preso e andando no menor espaço possível. Break out your cage, Pikul! Ted cede e Gas instala uma bioport em sua coluna vertebral. Allegra está ansiosa, não espera desinchar e conexa-se a Ted, o qual filosofa como é possível haver um orifício no corpo diretamente ligado ao meio externo sem haver infecções. Allegra ri: don´t be ludicrous, Ted e mostra, pondo a língua para fora, que a boca também é algo assim.
No entanto, algo dá errado e o pod de Allegra explode. Ela se enfurece, mas Ted garante que não foi culpa dele, pois teve nenhum surto, nem entrou em pânico. O pod continha a versão original de eXistenZ e custara uma fortuna. Allegra se sente trancada do lado de fora de seu próprio jogo; era a única coisa que dava sentido à sua vida. Gas reaparece armado e quer matar Allegra, como tentara fazer Noel, em troca de recompensa, pois sua cabeça está a prêmio. Novamente, Allegra parece excitada com a situação e fantasia como será sua morte e decomposição. Ted o mata.
Fogem novamente e tentam consertar o pod. Ted também vê sem grande espanto o pequeno monstro de duas cabeças. Encontram Kiri Vinokur, conhecido de Allegra, que faz uma operação no pod. Ted se maravilha, pois o pod é, na verdade, feito de carne e ossos. Kiri explica: the eXistenZ game-pod is basically an animal; it's grown from fertilized amphibian eggs stuffed with synthetic DNA. Boa definição para a existência humana, pensa o espectador atento a cada frase do filme. O pod não tem baterias: as pessoas são a sua fonte de energia, seu corpo, seu sistema nervoso, seu metabolismo. Se você se cansa, ele perde qualidade e não funciona adequadamente. É de se pensar que tanto o pod do filme eXistenZ, quanto o tumor do Videodrome são órgãos projetados pelo Homo deus que visam à condução do homem ao Übermensch.
Mas para o jogo da existência é preciso de um parceiro amigo e Ted is humming along already. Ted, contudo, é uma pessoa insegura: como jogar com a designer do jogo? Allegra diz que é perfeitamente possível vencer, numa partida de poker, a pessoa que inventou o poker. Nesse momento, entram em eXistenZ. Ted está encantado quando a realidade se modifica: I feel just like me. Aparentemente não há como distinguir a realidade desse mundo virtual (como em Matrix a experiência virtual está acima da experiência real das pessoas conectadas), mas Allegra mostra que ele consegue manter algum distanciamento e que poderá perceber alguns cortes brutais, algumas desaparecimentos lentos e alguns morphs pequenos e cintilantes. Conhecem D'Arcy Nader, que lhes quer passar um jogo da Cortical Systematics que terão de jogar para descobrir por que estão jogando. A personalidade de Ted se modifica e ele é rude com D'Arcy. Espantado com a modificação súbita de sua personalidade, Allegra esclarece que não foi Ted quem foi rude com D'Arcy, mas seu personagem e que há coisas que precisam ser ditas, a despeito da vontade de Ted, para haver avanço no enredo do jogo. A realidade virtual, segundo Cronenberg, tem uma teleologia. Allegra concorda que é uma espécie de sensação esquizofrênica, mas que Ted se acostumará com isso. Ser um personagem dessa falsa existência, segundo Cronenberg, parece ser um retorno ao conceito de destino, um cancelamento total do livre-arbítrio. Quem luta contra isso, não joga. Allegra parece sempre manter um distanciamento do jogo, criticando o sotaque que foi implementado na personagem de D'Arcy e a qualidade dos diálogos. Essa Entfremdung de Allegra faz Ted perceber que a personagem de D'Arcy está em loop e que ele não sairá dessa situação enquanto não lhe disserem a frase correta, como se fosse uma deixa de teatro. Allegra lhe dá a dica de que é preciso mencionar o nome das personagens com que fala.
D'Arcy lhes diz que é preciso que entrem num novo jogo, dentro de eXistenZ, para continuarem a história. Essa nova entrada num segundo mundo virtual, dentro de outro mundo virtual, confunde o espectador e ocorre de um modo distinto do da entrada anterior: não há umbycords e o pod inteiro é sugado através do orifício do bioport de suas personagens. Quando isso acontece, eles se excitam e se beijam, mas Allegra entende que aquilo é apenas uma tentativa patética e mecânica de aumentar a tensão emocional para a próxima sequência do jogo. Ted começa a se preocupar com seu corpo real abandonado numa cama: não sabe se estão bem, pois podem estar famintos ou em perigo e não se darem conta disso, tamanha a alienação causada por eXistenZ. Ted se sente desencarnado e vulnerável. Allegra o tranquiliza, dizendo que estão bem e que sabem tomar conta de si sozinhos: they´re just where we left them. Segundo ela, todos os sentidos ainda estão operando e eles poderão sair do jogo quando bem quiserem.
O jogo da Cortical Systematics, dentro de eXistenZ, tem um cenário bizarro: Ted agora se chama Larry Ashen e está na Trout Farm, abrindo estranhos anfíbios e lançando-os numa esteira. Ao lado dele está Yevgeny Nourish. De fora, ninguém diria que é uma fábrica de pods. Aliás, quase tudo ali parece ser outra coisa. Larry automaticamente empacota as vísceras do anfíbio e põe o pacote numa esteira. A personagem Yevgeny é programada para dizer a Ted que há um restaurante chinês na floresta; Larry deverá pedir o prato especial e não deve aceitar um "não" como resposta. Entregando pacotes, Larry (ou Ted) encontra a personagem de Allegra, que se chama Barb Bricken, que já parece agir como as demais personagens, esperando a fala correta de Larry para interagir com ele, enquanto Larry, nesse momento, parece manter um certo nível de consciência achando o novo jogo pouco convincente, sujo, absurdo e grotesco.
No restaurante, o garçom chinês sugere um prato, mas Larry quer o prato especial, como o instruiu Yevgeny. O garçom se recusa, mas Larry insiste, dizendo ser o aniversário de Barb. O garçom é convencido e todos os demais à mesa se retiram, num ato de protesto. Nesse momento, Larry (ou Ted) diz que quer pausar o jogo, pois se sente desconectado demais da sua vida real, pois parece haver algum elemento psicótico por trás disso tudo. Ao gritar: eXistenZ is paused! acorda no quarto, ao lado de Allegra. A vida real, aquela para qual se pode voltar quando bem quiser, parece-lhes completamente irreal e entediante. Allegra lhe mostra que precisam voltar àquele restaurante, pois não está acontecendo ali. Ted concorda, dizendo não tem mais certeza de nada, pois começa a se sentir um pouco como a personagem Larry. Decidem voltar ao jogo.
O prato especial é servido e é asqueroso, com aspecto podre. Entre os ingredientes do prato está o animal de duas cabeças que ambos haviam visto. Segundo o garçom, anfíbios e répteis mutantes proporcionam novas e anteriormente inimagináveis experiências de sabor. A personagem Larry começa a comer com as mãos e Ted não ter controle sobre o que Larry faz: I find it disgusting, but I can´t help myself. Novamente, como em Videodrome, há um destino programado contra o qual o homem infectado pela máquina não consegue lutar. Com os ossos da carne apodrecida que devora, a despeito de seu mal estar, Larry constrói a mesma arma que foi usada por Noel no atentado contra Allegra, no início do filme. This looks awfully familiar. Retira uma ponte dentária, que está em Larry mas inexiste em Ted, carrega a arma de dentes, engatilha e aponta para a cabeça de Allegra, repetindo a fala de Noel: death to the demoness Allegra Geller. Mas se contém, como se tivesse sido uma brincadeira. No entanto, Larry está sentindo uma necessidade premente de matar alguém e sabe que a pessoa que deve morrer nessa cena é o garçom, mesmo achando-o extremamente simpático. Allegra incentiva-o, lembrando que Larry já que não consegue evitar o homicídio e, portanto, deve curtir o que está prestes a fazer. Everything in the game is so realistic, I don´t think I really could. E, de fato, ao voltar, o garçom é macabramente trucidado, bem no momento em que pergunta o que pode fazer para que o almoço deles seja mais prazeroso. Os clientes não reagem à altura e atendem ao comando de não se importarem com a cena. Um cão captura a arma de ossos. Ao sair do restaurante, encontram Yevgeny, que havia preparado o prato especial e, didaticamente, explica que o garçom teve de morrer porque ouviu coisas demais quando os clientes estão comendo relaxadamente: era um traidor em potencial. Levando-os à criação de anfíbios que servem não só para a refeição, mas também para a confecção dos pods e de componentes para armas indetectáveis e hipoalergênicas, explica que a Trout Farm pertence à Cortical Systematics, mas um dia Yevgeny e outros participantes do movimento realista destruirão todos os pods de dentro deles mesmos. Matando o garçom, Larry e Barb provaram estar do lado dos realistas e serem confiáveis.
Em seguida, o caixa Hugo Carlaw conta que Yevgeny é um agente duplo e que o chinês morto era um contato na Trout Farm. A partir de então, as relações se tornam muito confusas. Larry diz não sabe mais o que estão fazendo ali naquele mundo deformado, cujas regras e objetivos são em grande parte desconhecidos, aparentemente indecifráveis e possivelmente inexistentes. Sentem que forças que não entendem desejam matá-los. Apesar de tudo isso, trata-se de um jogo que todos estão jogando. Indo ao local de trabalho de Barb, encontram um novo pod, que está doente. Barb tem um desejo incontrolável de se juntar àquele novo objeto e entrar em um novo jogo e mesmo com o péssimo aspecto do pod, ela faz isso, mas imediatamente se sente mal. Larry (ou Ted) corta o umby-cord e Barb (ou Allegra) começa a sangrar, convulsionando, prestes a morrer. Yevgeny incinera o pod e toda a cena se converte numa guerra declarada entre realistas e Allegra. Todo o cenário pega fogo e eles acordam no quarto em que haviam entrado na eXistenZ.
No entanto, percebem que o pod original também está infectado. Mas isso não é possível. Como um evento de um jogo poderia mesclar-se à vida real? Está ocorrendo, sem dúvida, um estranho sangramento da realidade e Allegra desconfia que o real traidor foi Kiri, que deve ter modificado o bioport de Ted ao tentar "corrigir" a cirurgia feita por Gas, com o intuito de matar o pod e destruir todo o sistema da eXistenZ. Seguindo esse raciocínio, enfia um ressonador de biosporos na espinha de Ted, de modo que a infecção não atinja o seu cérebro. Lamenta que não poderão jogar enquanto isso.
No entanto, o pod não reage aos cuidados de Allegra e começa a morrer. Nesse momento, há uma súbita explosão e entra Hugo Carlaw, vestido como um soldado, que informa que a revolta está iniciando e que o mundo todo está em chamas. A cena é tão surreal que eles percebem que ainda estão dentro do jogo. O soldado grita, dizendo que têm de sair dali, mas Allegra não quer abandonar seu pod moribundo. O soldado metralha-o. Observam que se trata da morte da eXistenZ e da vitória do realismo. Allegra tenta salvar-se, dizendo que estão do lado de Hugo, mas como poderia a designer dos jogos estar do lado dos realistas? O soldado afirma que sabe quem são eles e que não se esconderão dentro de um jogo para sempre. Kiri reaparece e mata Hugo com a arma de ossos. Allegra está revoltada por causa da morte de seu pod, mas Kiri afirma que ele está a salvo e que há uma cópia da eXistenZ. Kiri informa que está desertando, juntamente com os mais importantes de Antenna e migrando para Cortical Systematics. Convida-a para ir com ele, mas Allegra mata Kiri.
Ted fica assustado: como ela pôde fazer isso? Quem ela matará em seguida? A ele? Allegra o tranquiliza, dizendo que Kiri se tratava apenas de uma personagem de um jogo que estava bagunçando a cabeça dela. Mas Ted pondera se, de fato, eles ainda estão num jogo: se não estiverem, ela acaba de matar alguém de verdade. Allegra, porém, desconfia que não é um acidente que ambos, Ted e Allegra, ainda estejam juntos. Ao dizer isso, Ted aponta a arma para Allegra e ela entende por que Ted não tinha um bioport: Ted também é um realista, que quer matá-la. Ted confessa que, de fato, fez o sacrifício de ter um bioport para ganhar a confiança dela e conseguir aproximar-se dela. Allegra disse que desconfiara disso quando ele lhe apontara a arma no restaurante chinês e, por isso, estava precavida: aperta um botão e Ted explode. Ela não havia inserido um ressonador de esporos no corpo dele, mas uma bomba. Death to the demon Ted Pikul! Allegra excitada, imagina que ganhou o jogo e, de fato, aparecem adereços e uma coroa em sua cabeça. O jogo termina.
Há um circulo em que todos estão ali: Allegra, Ted, Noel, D´Arcy, Hugo, Kiri, Gas, Yevgeny e o garçom. O telespectador por fim entende que estavam jogando tranScendenZ, da empresa PilgrImage, há apenas vinte minutos, apesar de parecer estarem vivendo a história há dias. Isso explica finalmente o tom patético e canastrão dos atores do filme: representavam na verdade personagens da tranScendenZ. Isso explica como a "realidade" poderia comportar um bicho de duas cabeças, como uma pessoa que trabalhava num posto de gasolina se chamava Gas e tantos outros pontos soltos. A existência simplesmente não era real: a transcendência é. Merle, que conduzia o jogo, pergunta: imaginem só se vocês ficassem a vida toda em um jogo! Consola os que estavam insatisfeitos com suas personagens ruins, dizendo que não importa quão aborrecidas elas eram, pois todos ganhariam um certificado. No mundo real, agora, Allegra e Ted são namorados que gostam de jogar juntos, e o cão que pegou a arma logo depois que mataram o garçom, é seu animal de estimação. O designer de tranScendenZ é, na verdade, Yevgeny Nourish.
Na saída, Yevgeny confessa a Merle que estava um pouco perturbado com o jogo que acabaram de jogar, pois havia um forte tom anti-jogo nele advindo de um dos participantes, e que criou o enredo do assassinato de uma designer. Ted e Allegra se aproximam, dizendo ter algumas perguntas para Yevgeny. Allegra pergunta se ele não acha que deveria sofrer por causar tanto dano à raça humana e se não concordaria que o maior artista de jogos do mundo devesse ser punido por ter criado a mais efetiva deformação da realidade. Armados, Ted e Allegra matam Yevgeny e Merle. Death to the demon Yevgeny Nourish! Death to PilgrImage! Death to tranScendenZ. Os demais não reagem, como na cena da morte do garçom. Avançam agora sobre um dos participantes, o chinês, que, acuado, pergunta: "vocês não precisam atirar em mim! Digam-me: será que ainda estamos dentro do jogo?". Cronenberg decerto ficou, como muitos, eu inclusive, surpreso com o malin génie cartesiano e com a noção de realidade de Berkeley. O resto é estilo particularíssimo.
Tanto na realidade deformada, causada ou não por uma enfermidade, vinda ou não de mecanismos que invadem nossa alma, em Videodrome, quanto na peregrinação alienada para a existência com volta a uma transcendência, supostamente falsa, em eXistenZ, o espectador de Cronenberg precisa de um abracadabra, ou seja, de uma chave teórica com a qual semidecifra os enredos, assim como um biólogo tem à sua mão a chave teórica da evolução, valendo-se de dados suficientes para converter-se a um credo mais razoável que qualquer outro, mas ainda em busca de mais evidências e conexões perdidas e inexplicadas, as quais nunca serão suficientes, com deleitosos mistérios e espantos que o motivarão a continuar sua investigação. O pré-requisito de uma mente científica do espectador de Cronenberg é, portanto, uma exigência diferente da de quem assiste ao enredo de um artista que não seja cientista: o espectador de David Lynch, por exemplo, depois de muito racionalizar, não consegue retornar do desvario, acaba por desistir, entregar-se ao filme, embevecido de ceticismo. Se a realidade é algo que comanda a transcendência, a qual controla a existência, dentro da qual se vive a fantasia, Cronenberg decerto quer mostrar que, ao nos perdermos nos labirintos da ficção, desejada ou causada pelo Videodrome ou por eXistenZ, o ser humano desconhece, de fato, quem é e com quem interage. "Cuidado", diz Cronenberg nas entrelinhas, "eu mesmo posso ser um Barry Convex ou um Yevgeny Nourish". Nessa postura de diretor agressor, Cronenberg, se assemelha às vezes a Lars von Trier. Sendo algoz, Max se supõe vítima, ou sendo manipulada, Allegra supõe que controla tudo. A consciência, nessa perspectiva filosófica, se dilui invariavelmente toda vez que o homem se alia à máquina: não há como exigir controle dos atos do ser humano, se ele mesmo desejou que sua vida transcorresse de maneira cômoda, abdicou seu livre-arbítrio, caminhando inconsciente em sua vida parcialmente programada (porque cada ser humano, desejando realizar seus planos, impôs-se uma teleologia e ruma a um objetivo vago, por mais enlouquecido que pareça, à distância ao outros ou para si mesmo). Falava-se na década de 80 que a TV teria esse poder alienante, e na década de 90 que eram os jogos que confundiriam a realidade (não é sobre isso que fala a trilogia de Matrix?): que pensará hoje o profeta Cronenberg (que ainda vive) acerca do poder absoluto atual da internet e das redes sociais sobre a mente de tantos humanos? Confesso não saber, mas em alguma entrevista que não vi decerto ele confirmará minhas hipóteses. Terá sido completada a transformação do homem-mosca-máquina ou o inimaginável ainda está por vir? As letras maiúsculas não-iniciais de McIntosh, iPad, iPhone, WhatsApp não são as mesmas de eXistenZ e de tranScendenZ? Que resta ao ser humano, aliado a tantas criaturas feitas à sua imagem e semelhança, senão o oblivion, isto é, o mais profundo dos esquecimentos? Esquecimento daquilo que um dia já foi ou conseguiu ser um pouco, hoje rumo à total irracionalidade, lutando por água, como em Mad Max, ao mesmo tempo que corre sem parar por desertos em busca de ideais sem sentido?