Há ideias que aparecem na nossa mente e se esvaem, caso sejam interrompidas, pois indicam o credo romântico e a mitologia dos bons escritores que tudo que vem diretamente da alma é bom e, não sendo mau, não deveria ser tolhido, portanto, se eu penso em falar sobre alguma coisa qualquer, esse assunto sobre o qual pretendo versar deve provir diretamente de um fluxo de pensamento que não poderia ser de modo algum censurado por superegos e tradicionalismos que embotem o reluzente brilho da ideia donde provém, já que todas as coisas originais deveriam ter pelo menos alguma pertinência no arrazoado que se pretende demonstrar, além disso, tudo que se sustenta nas premissas daquilo que se pretende demonstrar, caso seja a peroração límpida, advém duma conclusão já contida na mente do orador, a partir da qual ambas as premissas se arranjariam como que segmentadas do próprio conteúdo do resultado da fala, acrescidas de algum elo arbitrário que as sustentem, assim como quando alguém, querendo provar que as tartarugas voam, dirá que as tartarugas são aves e todas as aves voam, até que alguém lhe lembre que entre as aves não constam em nenhuma taxonomia quelônios como os cágados ou as tartarugas, nem é verdade que todas as aves voem, pois nos bastaria recordar dos kiwis, dos emus, das avestruzes e dos casuares, e, ao fim e ao cabo, demonstraremos a esse sofista que uma conclusão errônea só pode ser resultado de pressupostos igualmente errôneos, embora não seja interdito que essa frase em itálico também possa ser uma conclusão errônea, porque não é impossível que haja conclusões errôneas a partir de premissas corretas, senão vejamos, dizer que todo homem é mortal não é errado, tampouco o é dizer que todo mortal está vivo e concluir, a partir dessas irrefutabilíssimas afirmações que todo homem está vivo, sentença na qual estaria contida a afirmação de que Aníbal está vivo, quando todos sabemos (e espero que tu, também, leitor) que o general cartaginês já não está entre nós neste mundo e, tendo ele sido mortal um dia, não o é mais, de modo que entre os mortais a que nos referíamos na segunda premissa não estariam os que já viveram, tampouco os que ainda viverão, outro modo de afirmar que todo mortal está vivo é, mediante tácita cumplicidade, uma espécie de sinônimo impróprio de outra frase, mais específica, a saber, "todo aquele que agora está entre nós e recebe o epíteto do mortal, isto é, todos os seres viventes, animais ou vegetais, mas não pedras, está vivo", contudo, verdade seja dita, jamais alguém entenderia, ao afirmarmos que todo mortal está vivo algo como todo mortal que já viveu e já morreu está vivo, pois isso introduziria desagradável contradição numa oração que nada tinha de contraditória, da mesma forma que também concordaria o leitor que ao afirmarmos que todo mortal está vivo não pretendemos referir-nos aos futuros mortais que ainda não nasceram, por conseguinte, uma oração inegavelmente verdadeira no que tange àquilo que denota inequivocamente sobre seres que vivem hic et nunc seria algo que somente com muita retórica poderia ser contestado, muito embora, conforme dissemos no início de nosso arrazoado, tudo o que vem da nossa alma, inclusive a contestação, seja algo bom e digno de ser analisado e - por que não? - refutado caso nele se detecte algo que não possa sustentar-se mediante a razão ou o sentimento, capacidade raramente utilizada como ferramenta de julgamento, pois, toda vez que algum elemento apaixonado aparece no juízo, alguém dirá que, embora tudo o que se pretende provar seja límpido, conspurcá-lo-ão adjetivos demasiadamente subjetivos, como se os raciocínios não dependessem de uma mente e essa mente não pertencesse a um indivíduo, o qual, com sua vida e modo de ver o mundo singularíssimos, ditará, conforme os seus próprios meandros cognitivos, tudo aquilo que é bom para si, sem deter-se em qualquer ideia universal (se há alguma) para tecer mandamentos próprios de comportamento, ainda que a sociedade e os costumes tenham promulgado outros diametralmente opostos, tal como é o caso daquele que sob os holofotes de uma peça de teatro está para declamar Camões - e assim quer a plateia -, mas naquele momento a vontade do ator é bagunçar o coreto e, improvisadamente, se põe a declamar um pot-pourri de Patativa do Assaré com Hilda Hilst e não só o intenta, mas também o faz ininterruptamente, a despeito dos tomates que zunem e, vez ou outra, atingem seu semblante, provindos de expectadores, que antes de comprar seus bilhetes para ouvir as odes do poeta renascentista, haviam feito a feira em local onde vicejam não só os supracitados tomates mas também gosmentos ovos que macularão a face do perverso declamador, a fim de que com cujos tomates justiça seja feita, pois regras de confiança como a existente entre ingresso e show são uma espécie de acordo tácito pacificador entre os viventes de uma mesma comunidade e se o expectador pagou por um belo e vermelhudo tomate, não esperaria que o feirante tivesse colocado na sacola um insosso chuchu ou quaisquer outros legumes de segundo escalão, se bem que (hipocrisia à vista!) não se teria ofendido, sequer teria reclamado, se o barato tomate fosse substituído pelo louco feirante propositalmente por uma cara e suculenta alcachofra, com as mãos na qual, prestes a arremessá-la no rebelde ator, pensaria duas vezes e, ato contínuo, pô-la-ia de volta na sacola a fim de cozinhá-la em casa em água fervente para comê-la gostosamente, molhando suas folhas na manteiga, com total ausência de culpa perante a doideira do feirante, compensando (talvez por meio da mão de Deus), assim, a agrura de ter pago um caro ingresso e não ter ouvido o amado Camões, antes um arremedo de poema miscigenado que não fazia sentido para si, embora para aquele declamador o tivesse feito, como qualquer um poderia constatar vendo-o após a tomatada em seu camarim, limpando as gemas estateladas do seu rosto, com um sorriso satisfeito, malgrado as maldições, verdadeira trilha sonora provinda da boca espumante do diretor do espetáculo que acabara de demitir o improvisador por julgar aquela a última de suas loucuras que toleraria na sua vida em comum com ele, que exprimia um sorriso de quem solta grilhões de uma existência ditada por outros, tendo feito o seu gosto particularíssimo sublinhar-se perante todos aqueles que surpresos esperariam dele a submissão servil a um roteiro de um cartaz, qual clown alquebrado pela medíocre rotina de sempre superar-se na apresentação do mesmo espetáculo, em suma, uma desejada conclusão automática extraída como resposta a premissas que não foram ditadas por aquele que conclui, antes, pelo contrário, rompendo a expectativa, todos que se mostram pobremente humilhados pelo massacre dos poderosos poderiam concluir que mais fácil do que reagir de forma previsível, agressiva ou mesmo inteligente, no exercício de refutar aquilo que lhe é incômodo e indesejável, antes deveria pensar em como romper completamente a expectativa daquele que persegue seu raciocínio, de modo que em um recôndito inescrutável possa ditar as suas próprias premissas e enfim falar, qual Maupassant quando escreveu Sur l'eau, daquilo que deseja e que não tem conexão alguma com premissas anteriores, chutando a Terra de sua enfadonha órbita ao redor do Sol, pulando num lago repleto de focas com cara de papagaio, saltando desse mesmo lago cachoeira acima num rodopio parafuseante e perceber-se com asas de condor, soltando grasnidos ao conseguir ver o mundo com olhos de hiena e escutar tudo com ouvidos de feneco, em resumo, saber com a mais certa das certezas que do outro lado do rio, há um homem que tem os calções rotos de tanto colher quiquirijones de seu quiquirijonal, mas, obviamente, leitor, se isso não te agrada, se o que há de mais pessoal em ti precisa ser apagado pelo borrachão do bom-senso, imagina-te desalado, descachoeirado, des-hienoculado e desfenecorelhado e voltemos ao palco, para que sigamos novamente o script, mas se reclamares de algo, da plateia, agora eu com tomates na mão, gritar-te-ei "non sequitur!" e aí, quero ver se o que me dirás ao refutar-me, embora na verdade eu já o saiba, porque essa seria a situação mais comum desde que o homem se tornou o bípede senhor das falácias, i.e, dir-me-ás (e eu preferiria que não) que a incapacidade de seguir-te é que me faz ser rebelde, portanto, toda rebeldia é um ressentimento de um recalcado que não entende as regras do jogo ou, entendendo-as, não se conforma de ter perdido a partida, ao que eu te peço vênia e te indago se todas as regras são para ti interessantes, se todas as partidas são necessárias e se todos os jogos, por definição, te dão tesão e, perante a inexorabilíssima resposta negativa a todas essas perguntas, terás de genuflexo dizer-me que tenho razão, não antes de me golpeares, como o lobo de Fedro indagando à ovelha o que ali fazia turvando sua água...