O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

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Sou um saci sumério de Botucatu.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

METÁFORAS NÃO SALVAM O MUNDO

É estranha, sempre pensei, aquela pessoa que diz amar as borboletas e, ao mesmo tempo, odeia as lagartas. Meu vizinho decerto as louva como criaturas de Deus, mas se empenha diariamente em verificar suas couves para espremer os ovos dos pobres insetos. Segundo ele, a "borboleta" os bota assim que vira as costas. Refere-se assim a elas, no singular, como se fosse uma entidade, um caipora, um saci. A "borboleta" apronta com ele, lançando uma infinidade absurda de ovos, instrumento inesgotável de sua daninha zombetice. Obviamente esse senhor idoso não entenderá se lhe explicarem que se trata dos ovos possíveis da vida inteira de um indivíduo, que, como ele, pretende manter seus genes vivos. Os ovos da "borboleta", tentariam explicar-lhe, não são o produto de uma máquina botadora, mas parte do ciclo da vida. Matar bebês não é algo louvável, concordaria: oras,  não é infanticídio, do ponto de vista do lepidóptero, a espremeção sistemática dos ovos de pierídeos comedores de couve? Consolo-me pensando que se fosse só isso, haveria alguma tolerância no mundo no que diz respeito à inamistosa relação entre homens e insetos. Se fossem só enxadas que derrubam o mato, talvez a convivência com os insetos não seria algo trágico. É verdade que, desde que o homem criou o ancinho e abandonou a caça e a coleta, para criar seus odiosos porcos, suas inglórias vacas, seus infames cães e seus gatos demoníacos, a fauna e a flora selvagens declinaram,  mas havia um limite entre guerra e trégua, mas precisou que alguém inventasse a luz elétrica, o motor dos tratores, os pesticidas e a motosserra para que os nossos companheiros de simetria bilateral corressem risco real de extinção, face ao ingente macaco doido, o hominídeo moderno.

Não falarei da tragédia dos pierídeos assassinados por serem comedores de couve, mas da minha infância. Moleque, andava no terreno baldio do lado de casa, à procura de bizarrias dos escaravelhos, das pernas longas dos opiliões, de manés-magros, de crisopas e de grilos. De chinelo, sem medo de cobras, deparava-me todo dia - e esse dia eu supunha eterno - com uma borboleta laranja, em meio a tantas outras.




Parte do ciclo dessa borboleta, para mim, portentoso na medida da minha insignificância de moleque descalço do interior de São Paulo, já me era conhecido por experiência própria. A lagarta amarelo-esverdeada, com projeções que pareciam chifres na cabeça e na parte posterior, listrada como um tigre, devorava uma planta, que eu conhecia como "leiteira", cuja seiva branca, que lhe fazia jus ao nome, tinha a fama de ser uma substância venenosa e poderosa, a ponto de ser usada pelos mandingueiros, meu avô inclusive, com o fito de secar verrugas. A lagarta, ignorando a toxicicidade da planta, se tornava gorducha de tanto comer aquelas folhas, as quais visitavam, volta e meia via, também uns besourinhos de um verde metálico, que eu conhecia por vaquinhas  (crisomelídeos, hoje eu sei defini-los melhor). Por fim, a lagarta, satisfeita de tanto veneno gostoso, se tornava numa crisálida oblonga, que mudava de cor: de um verde-leiteira até o alaranjado típico de suas asas. Deparei-me com mais de um tipo dessa mesma borboleta, não sei se outras espécies mimetizantes, não sei se espécies do mesmo gênero, mas a que me chamava à atenção era mesmo a grandona, aquela mansa, a ponto de eu conseguir pegá-la nas mãos enquanto estava hipnotizada pelas flores da leiteira. Seu voo era um planar exuberante, inconfundível. Havia outras borboletas alaranjadas, com as quais desde cedo jamais me confundi, cujos nomes hoje eu sei: Dryas julia, Agraulis vanillae, Dione juno, Euptoieta hegesia, mas nenhuma delas tinha a graça da borboleta da leiteira, que mais tarde soube, pela televisão, chamar-se "monarca" e que foi batizada pela entomologia de Danaus flexippus.

Diferentemente dos pierídeos que se empanturram com a couve do meu conhecido, a monarca não era uma "praga", como tão facilmente os medrosos humanos se referem a tudo que teme derrubar a sua posição de usurpador do trono da natureza. Meu vizinho tem medo de teiú porque dá, segundo ele, uma rabada que causaria inveja em tiranossauros, por isso, alveja-os com sua espingarda. Meu vizinho viu uma irara e deduziu que comia suas galinhas e, por isso, há uma irara a menos na terra. Meu vizinho tem medo que os joás e seus espinhos dominem o planeta dele, que consiste num terreninho bem pequeno, mas parecido com o do seu outro vizinho, igualmente medroso, por isso ambos põem venenos nas saúvas e arrancam as dormideiras e os cipós, porque, senão, eles o afogarão enquanto dorme e esganarão a sua progênie. Para meus vizinhos, tudo que não se come merece uma enxadada, um tiro, veneno.

Minha monarca não era uma praga, sob esse ponto de vista tão utilitário. As filhas apenas comiam uma planta venenosa enquanto a mãe dançava para me alegrar. Só alguém muito tosco poderia chamá-la de "borboleta", esse nome insensível que coloca cento e oitenta mil espécies diferentes sob mesmo rótulo. Cada espécie, obviamente, tem sua história, mas meu espaço é pequeno para falar do um milhão e meio de espécies de animais que existem. Dedico-me a um só, a minha monarca.


Estranho o ser humano! Muitos se ofendem quando são  chamados de primatas e colocados junto com os gorilas, orangotangos, gibões e saguis, porque afinal de contas, dizem (na verdade, um homem disse) que somos a imagem de Deus, que não é um primata, mas tanto faz para o mesmo fulano chamar de "borboleta" a Danaus flexippus, que come leiteira, e a Methona themisto, que comia o manacá da minha avó. Pior, nem veem diferença, e chamam tudo de praga. "Leiteira" também é um nome muito genérico para a única planta que come a lagarta da monarca. Aquela planta de troncos roliços e folhas enceradas em forma de lança, com flores amarelas, laranjas e avermelhadas em buquê, que solta painas no formato de aranhas voadoras, tem nome também: Asclepias curassavica, que o noticiário recentemente resolveu chamar de "asclépia", embora haja espécies vinculadas ao mesmo gênero com o aspecto muito diferente. Eu continuarei chamando a minha planta de "leiteira" porque é a única que eu conheci com esse nome até deparar-me com outras plantas que outras pessoas chamavam, por falta de imaginação, com essa mesma denominação. A história é minha e até parece que eu vou chamar a única leiteira da minha infância de asclépia. Eu não vi a fauna e a flora que meus pais viram; meus pais não viram a mata virgem do interior paulista que meus avós desbastaram; meus avós não viram a mata que os índios da região viram. Meus filhos também não verão nada do que vou contar.

Eu cresci e, nos terrenos baldios por onde andava, via leiteiras. E nas leiteiras sempre uma lagarta de monarca. E não muito distante da leiteira e da lagarta voejavam as próprias monarcas, com seu dimorfismo sexual levemente demarcado. Gostava das fêmeas, de um marrom alaranjado menos brilhante que o laranja amarronzado dos machos, com asas mais avantajadas, com um voo quase erótico ao redor da leiteira. Espetáculo único e, ao crescer e criar barba, já adulto e fora da minha cidade natal, cansado das minhas azáfamas, não lhe negava um sorriso quando, sempre de surpresa, a minha monarca aparecia, dava volteios e piruetas no ar. Bom dia, minha amiga, só você para salvar meu dia.

Um dia, quase por acaso, eu percebi que o calorão tinha apagado os colêmbolos de debaixo dos tocos de árvore, que sempre gostei de revirar à cata de meus amigos opiliões, tão queridos quanto fedidos. Tudo que vivia na amada zona úmida das pedras que jaziam no mato estava sumindo, como uma fotografia de infância que amarela e fica com contornos indistintos. Pouco depois, percebi muitas leiteiras sem lagarta e, em seguida, as próprias leiteiras foram sumindo e, com elas, minhas monarcas. No cemitério do lado de casa, teimava em nascer um pé solitário de leiteira, que transplantei egoistamente para um vaso e deixei na sacada do meu prédio, tentando reproduzir o milagre que pouco tempo antes eu havia feito com um maracujá, cujos frutos não comi, pois doei a planta a outra amiga, a já mencionada Agraulis vanillae, que meu filho reconhece e respeita. Foi quando li estarrecido, não faz muito tempo, uma reportagem da National Geographic. A leiteira, confundida com o calorão dos últimos anos, que secara meus proturos, meus diplópodes e meus tatuzinhos, começou a produzir mais veneno, muito mais do que a minha monarca poderia tolerar. As monarcas, que às pencas se congelavam no caminho do México para cá, provenientes do distantíssimo Canadá, só para me alegrar, estavam morrendo, sumindo e nada podia ser feito. Mas toda leiteira ficou hipervenenosa? Não te reconheço mais, querida planta, quase passei a chamá-la de asclépia, de ódio.


O calor, proveniente do nefando aquecimento global ou não, tinha endoidado a leiteira e ela, qual uma Medeia, matou as suas filhas monarcas. Não era justo isso. Percebi que intuitivamente eu já havia feito como sugere o site da National Geographic: "Plante asclépias que sejam nativas da sua região para que as monarcas possam botar ovos e para que as lagartas de monarca possam se alimentar. Apenas um ou dois vasos já ajudam, de acordo com o Monarch Joint Venture, um grupo de organizações sem fins lucrativos, agências governamentais, empresas e instituições acadêmicas".

Eis que, ciente da hecatombe, achei um pé de leiteira outro dia em São Paulo. Visitei-a até que suas vagens pontudas como lança se abrissem e soltassem a alva paina voadora. Enchi um, dois, três potes com as sementes. Vindo ao interior, não segui à risca o preceito de que as leiteiras deviam ser da região: enterrei-as perto das orelhas-de-urso, que tanto lembram minha mãe, e dos manacás e ipezinhos de jardim, que fazem lembrar-me de minha avó. Rezaria, se ainda soubesse como fazê-lo. O calor torrou o solo, nasceu mato, nada. Cheguei à conclusão que a leiteira era difícil de nascer se não quisesse, tal qual as flores de São João que ainda proliferam nos pastos mas não nascem de jeito nenhum em meu jardim, assim como tudo que é do cerrado. Resignei-me. Não seria dessa vez que eu teria uma leiteira só minha. Isso foi no final de setembro, começo de outubro. 

Em dezembro era época de podar a odiosa grama que engole as plantas queridas: maldita gramínea, só mesmo de tua progênie calculista teria vindo o trigo que, na argumentação harariana, domesticaria o homem. Trigo, parente dessa grama que invade tudo, avô da propriedade e das cidades, pensei injustamente, quase como meu vizinho esmagador de ovos de pierídeos. Mais eis que vejo despontarem por entre a grama umas folhas diferentes. Era ela: a leiteira brotou e meu coração bateu  mais forte. Entusiasmadamente, fiz uma verdadeira proteção, como se fosse uma hortênsia ou uma calêndula, para que essa erva daninha prosperasse e viajei. Em janeiro, abro o portão e vejo as leiteiras floridas. Se fosse só isso, seria apenas alegria, mas era mais, o que me fez chegar ao júbilo: as flores da leiteira estavam ali no meu jardim, em penca, os frutos rachados já lançavam painas e - mais que isso! - as folhas estavam comidas e se estavam comidas, só poderiam estar por aquele único ser que come leiteiras, deduzi. Olhei melhor e vi, ali, amarela e preta, a minha lagarta-tigre, filha da monarca,comendo furiosamente as folhas. E outra, e outra. Umas quatro ou cinco. Fotos, fotos, fotos. O coração latejava. A minha monarca, vinda lá da América do Norte, passando por apuros indescritíveis, encontrou a única leiteira em quilômetros quadrados de puro canavial, de sem-gracice de pastos e hortas, para deparar-se, como se tivesse um miraculoso radar, com a minha leiteira. Obviamente, esses insetos amantíssimos devem ter algum detector de carinho. Essa é a maior prova de todas. Para completar minha alegria, anteontem, ontem, hoje, uma monarca sobrevoa diariamente a minha leiteira e bota novos ovos nela. Há décadas não sentia essa intimidade tão de perto. Obrigado pelo retorno tão carinhoso das brumas da minha infância, querido lepidóptero!

As lagartas comeram, comeram e amalucadamente, fartas e arrotando as folhas de leiteira, sairam marchando para todos os lados. Novo desespero. Para onde vão? Uma delas foi picada por formigas, mas consegui salvá-la, acho. Outra não teve a mesma sorte, pois a encontrei pela metade, sendo devorada pelos mesmos himenópteros, o que me fez sangrar o coração. Outra se pendurou na cadeira da sala e encruou-se. Outra chegou a virar crisálida e está dependurada na porta, ainda com uma cor muito esquisita. A mais gulosa abandonou seu repasto hoje de manhã e estava subindo um muro de mais de quatro metros. Não sabia o que fazer. A natureza segue seu curso, diz o pensamento razoável, mas eu queria ajudar e muros de quatro metros, com seu concreto abjeto, não fazem parte da natureza. Ora, tendo passado as agruras do Canadá até o interior de São Paulo, não é possível que a lagarta não saiba se virar, quis pensar. Mas também é verdade que aquela é a única e mais viçosa da meia-dúzia de filhotes da minha única leiteira. Não, tive de intervir. Retirei-a de lá e pu-la em lugar com um pouco mais de verde. Acompanhei-a mais um pouco e ela inventou de subir em um coqueiro, onde há umas formigonas terríveis. Não. Mil perdões aos himenópteros sociais: há muito bicho para comerem, nada de comida importada hoje! Retirei-a de lá novamente. Por fim, acabei deixando-a num pé de buganvílea. Queria ter visto todo o ciclo, mas o bichinho estava impaciente e não queria estressá-la mais. Pena não ter previsto essa migração toda. Não sei como é esse momentoso preparativo para a metamorfose: resignei-me. Deixei-a lá, confiante que os outros ovos gerarão outras saudáveis lagartas e que a monarca com a exuberância que conheço voltará a tomar conta da situação.



Olho agora para fora. Há minutos estava lá a minha monarca (será a última que verei?). Agora dança lá por sobre a leiteira uma Battus polydamas, que é bonita também e igualmente lembra minha infância, tal como a Heliconius erato,  razão por ter adquirido esta quinta (além dos opiliões, claro), mas há algo no amor pela monarca que a Battus polydamas não substitui. A monarca me enche de esperança, algo raro em mim. Queria que não houvesse metáfora alguma no meu desejo que ora expresso: que o meu leitor também tivesse um vasinho de leiteira e que deixasse as lagartas que lá surgissem devorá-la à vontade.