Estou agora sem meu Dicionário de filosofia do meu xará iconoclasta, o centenário Mario Bunge, em mãos. Lembro-me disso porque penso que ele bem que gostaria de opinar sobre o assunto que versa esta postagem mensal, valendo-se de sua posição sempre veementemente bem definida. Uma pergunta frequente em minhas antigas aulas de Semântica era: o que é um contexto? Essa palavra sempre me pareceu significar tudo e nada. Se eu enuncio algo, a expressão do meu enunciado não significa nada por si só, mas eu chamo de significado as coisas que evoco, ao mesmo tempo que eu, enunciador, julgo se aquilo está ou não está na cabeça de quem a ouve ou a lê. Se está, concluo que há alguma cumplicidade entre nós; se não está, julgo informar algo. A informação é o oposto da cumplicidade.
Acontece que para enunciar, preciso de palavras, que podem ter, cada uma, digamos, dez significados, todos claramente demarcados e com data de nascimento (como fazem muitos dicionários etimológicos) e às vezes de morte. Se assim é, como posso dizer que uma expressão completa associada a "contextos" têm a capacidade de evocar mais do que esses dez significados? Dizer que uma palavra tem um número fixo de significados seria o mesmo que dizer que não há números entre 1 e 2 e que o 0,5 é inconcebível. Contudo, em alguns momentos podemos acreditar que essa afirmação está certa: não há mesmo nenhum número entre 1 e 2. Quem lê essa afirmação peremptória, para ser meu cúmplice, precisa reconstruir o que se passa na minha cabeça, pois, para ter a certeza do que afirmo, concentro-me nos números naturais e não nos números racionais. Então, em minha defesa, postulo a tese de que essa sentença só pode ser verdadeira, pois se a verdade da afirmação depende de um contexto, nesse caso, o contexto será igual àquilo que está na minha cabeça de enunciador, ou seja, estou falando de números naturais e não de racionais. Se não quiser ser meu cúmplice, achar-me-á (menos racionalmente que eu) um idiota que usa mesóclises. Cumplicidade é questão de vontade.
Acontece que para enunciar, preciso de palavras, que podem ter, cada uma, digamos, dez significados, todos claramente demarcados e com data de nascimento (como fazem muitos dicionários etimológicos) e às vezes de morte. Se assim é, como posso dizer que uma expressão completa associada a "contextos" têm a capacidade de evocar mais do que esses dez significados? Dizer que uma palavra tem um número fixo de significados seria o mesmo que dizer que não há números entre 1 e 2 e que o 0,5 é inconcebível. Contudo, em alguns momentos podemos acreditar que essa afirmação está certa: não há mesmo nenhum número entre 1 e 2. Quem lê essa afirmação peremptória, para ser meu cúmplice, precisa reconstruir o que se passa na minha cabeça, pois, para ter a certeza do que afirmo, concentro-me nos números naturais e não nos números racionais. Então, em minha defesa, postulo a tese de que essa sentença só pode ser verdadeira, pois se a verdade da afirmação depende de um contexto, nesse caso, o contexto será igual àquilo que está na minha cabeça de enunciador, ou seja, estou falando de números naturais e não de racionais. Se não quiser ser meu cúmplice, achar-me-á (menos racionalmente que eu) um idiota que usa mesóclises. Cumplicidade é questão de vontade.
A verdade do que se diz, por conseguinte, seria a soma do que afirmo com a delimitação que teimosamente estipulei na minha cachola, baseado-me no que foi dito ou vivido previamente por mim. Nesse caso, como não disse nada sobre números naturais antes de afirmar que não há números entre 1 e 2, o "contexto" seria quase uma espécie de delimitação obrigatória do meu ouvinte ou leitor. Aquela palavra inicial tinha dez significados? Pois bem, num determinado contexto teria cinco, seis ou - como sonham os cientistas - um só.
Acontece que as palavras estão mais para números racionais do que para naturais ou inteiros. Há significados muito próximos, de modo que eu não tenho certeza se, quando uma pessoa afirma que uma andorinha é uma ave, ela disse tudo, a ponto de eu afirmar que a frase seja verdadeira. Precisaríamos ouvir mais essa pessoa, até concluirmos que a frase é falsa, pois o que ela chama de "ave" inclui não só os pardais e as águias, mas também os morcegos. Se um conjunto como "aves" inclui morcegos e se uma pessoa diz que uma andorinha é uma ave, não posso concordar com ela, pois pela minha autoformação de biólogo, sei que morcegos não são aves: a ave, sobre a qual se baseia a afirmação dela, é diferente da minha ave, que reputo mais correta. Dito de outro modo, segundo meu juízo, a mesmíssima frase "uma andorinha é uma ave", proferida por mim, é verdadeira, mas na boca dessa pessoa, que acha que morcegos são aves, é falsa, simplesmente porque o meu conjunto é diferente do dela e porque eu não abro mão da minha definição de ave, por meio da qual concluí que a outra definição está errada. Por mais que eu veja semelhanças entre uma ave e um morcego, é-me indiscutível que a frase dessa pessoa seja falsa.
O que aconteceu com as orações, que passaram a ser ora verdadeiras, ora falsas, como um gato de Schrödinger? Se as cabeças humanas fazem conjuntos tão diversos com as mesmas palavras, haverá alguma frase que possa ser verdadeira (ou falsa) sempre para todos e ao mesmo tempo não ser um enunciado científico? Pior que isso, se não tenho condições e paciência de vivenciar o suficiente para extrair de todas as pessoas o conjunto total de suas frases expressas, as quais me façam concluir que nossos conjuntos são distintos, como dizer que eu as entendo? Levando-me pelo radicalismo filosófico, aparentemente parece sensato dizer, à la Eric Buyssens, que a comunicação parece ser algo impossível, uma fantasia como qualquer outra. Relativismo à vista! Perigo!!!
O que aconteceu com as orações, que passaram a ser ora verdadeiras, ora falsas, como um gato de Schrödinger? Se as cabeças humanas fazem conjuntos tão diversos com as mesmas palavras, haverá alguma frase que possa ser verdadeira (ou falsa) sempre para todos e ao mesmo tempo não ser um enunciado científico? Pior que isso, se não tenho condições e paciência de vivenciar o suficiente para extrair de todas as pessoas o conjunto total de suas frases expressas, as quais me façam concluir que nossos conjuntos são distintos, como dizer que eu as entendo? Levando-me pelo radicalismo filosófico, aparentemente parece sensato dizer, à la Eric Buyssens, que a comunicação parece ser algo impossível, uma fantasia como qualquer outra. Relativismo à vista! Perigo!!!
Os que têm alergia a relativismo se salvam desse mar bravio também com a boia do contexto. Aquela palavra a que me referi no início teria sim, digamos, dez significados, além de muitos sentidos (alguns diriam "inúmeros"; outros, mais exagerados, "infinitos"), que vêm osmoticamente, graças aos que se apoiam na muleta do contexto, das palavras circundantes, penetrando-lhe a membrana citoplasmática, caso contrário, dizem, não haveria poeticidade numa letra de música, num adágio, numa ode ou numa engórvia.
O que é uma engórvia? Sei lá, deve ser uma palavra que participa de algum gênero artístico ou literário, porque o escritor da afirmação do último parágrafo (no caso, eu) a pôs junto com uma letra de música, um adágio, uma ode e, portanto, concluo, deve ser algo parecido. Está provado: o contexto é algo real e, além disso, é um sematurgo: criaria significados até para palavras que não existem. Atenção, "não existem" não porque não estão dicionarizadas (a mais besta definição de "existência das palavras"), mas porque ninguém tinha incluído uma "engórvia" no Google antes de mim (mas "sematurgo", sim, e, curiosamente, com o mesmo sentido).
O que é uma engórvia? Sei lá, deve ser uma palavra que participa de algum gênero artístico ou literário, porque o escritor da afirmação do último parágrafo (no caso, eu) a pôs junto com uma letra de música, um adágio, uma ode e, portanto, concluo, deve ser algo parecido. Está provado: o contexto é algo real e, além disso, é um sematurgo: criaria significados até para palavras que não existem. Atenção, "não existem" não porque não estão dicionarizadas (a mais besta definição de "existência das palavras"), mas porque ninguém tinha incluído uma "engórvia" no Google antes de mim (mas "sematurgo", sim, e, curiosamente, com o mesmo sentido).
Pois bem, se mesmo palavras que não têm história e tradição nenhuma podem adquirir um sentido contextual, que dizer de palavras que já existem? No caso da "engórvia", seu sentido é bem pouco claro (nem os platônicos deuses da etimologia ajudariam a decifrá-la doutro modo): sem dúvida, quem a leu no final do antepenúltimo parágrafo entendeu-a como espécie do mesmo gênero aristotélico a que pertencem "letra de música", "adágio" e "ode". Se o leitor é linguista e não filósofo, entenderá que "engórvia" tem - pelo contexto - o mesmo hiperônimo que a reúne às palavras anteriores e, ergo, faz parte de um paradigma semântico proposto simultaneamente com a enunciação. Este sentido de contexto como algo que se depreende pelos vizinhos parece muito diferente do primeiro sentido, em que contexto estava oculto nas penumbras cerebrais do enunciador.
Conclusão parcial: a própria palavra "contexto" tem vários significados. E eles são depreensíveis pelo ... contexto (desculpa, não me contive agora). Ok, vamos brincar de atribuir mais sentidos a ela? Para isso preciso mudar de assunto.
Ontem os funcionários do zoológico estavam de cabelo em pé. A jaula do contexto estava aberta. Por toda parte procuraram-no: próximo às árvores e nas imediações de um rio. Até ontem havia pegadas profundas nas imediações lamacentas, mas elas desapareceram às margens do rio. Onde está agora o contexto?
(mesmo o ultracético leitor perceberá que um terceiro sentido está emergindo... ou todos os sentidos estão submergindo?)
Enquanto isso, na Câmara Municipal, um contexto subiu ao palanque e vociferou contra a lei do ano passado que impede que contextos sejam abertos nas imediações das escolas, uma vez que isso atrapalharia os contextos que estão estudando. E, de fato, às vésperas do ENEM, os professores relembraram que a questão "o que é um contexto?" foi exigida ano passado na prova de contexto e quanto mais contextos se aprenderem sobre o tema, menos contextos teriam. O motivo disso é claro: sem contexto não dá para entender o que é um contexto.
Enquanto isso, na Câmara Municipal, um contexto subiu ao palanque e vociferou contra a lei do ano passado que impede que contextos sejam abertos nas imediações das escolas, uma vez que isso atrapalharia os contextos que estão estudando. E, de fato, às vésperas do ENEM, os professores relembraram que a questão "o que é um contexto?" foi exigida ano passado na prova de contexto e quanto mais contextos se aprenderem sobre o tema, menos contextos teriam. O motivo disso é claro: sem contexto não dá para entender o que é um contexto.
Ler-se-á a frase acima, dando vários sentidos à palavra "contexto", inclusive aquele travestido com o heterônimo pessoano de ele mesmo (justamente o que estamos tentando decifrar juntos, se o hipotético leitor já não parou de ler e, portanto, já não é um leitor). Esses sentidos, dirá, são do primeiro tipo, i.e. cacholísticos, como o caso supracitado de "ave", mas têm um ressaibo de "engórvia" também, convenhamos. Estou prestes a declarar que acreditar em contextos antecede sua definição. A fé no contexto parece vir antes da sua racionalização definitória.
Digo mais: afirmando que o contexto de uma palavra é o sentido da enunciação para o enunciador, admito que esse mesmo sentido beira o intangível. Por outro lado, se eu digo que o contexto de uma palavra é o sentido da enunciação para mim, intérprete, independentemente do que quis dizer o enunciador, a coisa piora muito de figura, pois verei contextos até onde o bom senso diria não existir.
Digamos que, por alguma razão qualquer transfreudiana ou metajunguiana, a palavra "melão" me faça explodir de fúria e cometer as mais atrozes barbaridades verbais ao ser ouvida. Uma frase como "eu gosto de melão" seria, ato contínuo, uma ofensa imperdoável para este infeliz que não suporta que as sílabas que denominam a odiosa cucurbitácea atinjam sua membrana timpânica. Decerto, esse louco do melão em que ora me transfigurei à guisa de exemplo é só outro radicalismo filosófico. Contudo, quantas vezes não nos ofendemos ou ficamos alegres ou excitados ou deprimidos por palavras ouvidas que só têm aquele sentido para nós por causa de nossa biografia? O contexto da reação inusitada aí é distinto do que vínhamos falando até agora. Não é algo oculto que poderia ser conhecimento comum, se compartilhado claramente, nem é algo que se depreende pela expressão circunjacente, mas algo que causa muito mais ruído comunicativo, porque está circunscrito à minha vida e aos meus valores, que eu mesmo às vezes tenho dificuldade de discernir, verbalizar ou até de refletir, ainda que em meditação.
No caso do primeiro parágrafo lúdico acima, aquilo que fugiu do zoológico obviamente significava "girafa" (ué, o leitor pensou que fosse o quê? Um crocodilo? Por quê?!). Está provado, sem mais delongas, que toda palavra vem junto com um convite à sua decifração. No caso do melão-bomba, contudo, o contexto é algo profundamente inacessível, porque ninguém o decifraria além de mim (se eu conseguisse de fato decifrá-la). A minha epiderme nunca foi usada por outra pessoa a ponto de ser compreensível para o outro evocar os pesadelos gerados pelo pavoroso dissílabo. Nos primeiros casos, "contexto" era simplesmente a chave de uma charada ou de uma adivinha; agora, "contexto" se transformou num túnel escuro que conduz a um enigma indecifrável.
Pois bem, a palavra "contexto", pelo jeito, é usada como foice quando preciso cortar trigo e como pá, se meu objetivo é colher batatas. Que há em comum entre algo que eu tenho de quebrar a cabeça para decifrar e algo que está para além da minha capacidade cognitiva? Aparentemente nada. Portanto, um contexto não é nada? Que palavra complicada, de cuja sinuca de bico sequer consigo fugir!
O texto deveria terminar aqui. Eu tenho porém um amigo simpático careca que às vezes me catequiza, dançando rumba, com a ideia de que o contexto se distingue sim, de todas as outras abstrações humanas mais comezinhas, pois seu sentido está ancorado em sua essência relevante culturalmente. Isso me faz pensar de fato. Se o mundo é criado a partir da linguagem, também o são não só a semântica, mas também as mais profundas e obscuras obsessões morfológicas. Quando leio textos expressos em línguas sem gênero gramatical, isso fica estupidamente claro: o doctor personagem de um romance que eu, por alguma razão, imaginava ser um homenzarrão bigodudo está operando um paciente, em longa descrição de três parágrafos, mas, de repente, eis que vejo-o travestir-se em Ms. Lucy Johnson. Peraí: será que a mesma informação do romance não se decifraria de outra forma para outras pessoas? Eu, porém, juro que não pensei num ser assexuado até o aparecimento do nome próprio feminino. Não era um doutor, mas uma doutora após três parágrafos. Também depois, surpreendo-me de novo: o patient não era um paciente, mas uma paciente, após dois capítulos. Eu assumo que me equivoquei? Não. Melhor acreditar que não fiz associação nenhuma anterior e que essa informação não era importante ou que a interpretei de uma forma assexuadamente transcendente, somando significados à medida que as ondas das palavras batiam na minha praia mental, tal como o ribossomo desliza ao sintetizar proteínas por cima de um RNAm. Sem dúvida, é menos humilhante para um racionalista pensar assim do que admitir que se esqueceu do caminho tortuoso e entrecruzado por fachos de laser que teve de desviar para evitar ser queimado.
Se eu digo, uma pessoa entrou na sala: era uma criança dando pulos e desembesto falando dessa criança sem dar pistas se é um menino ou menina, será que alguém, até que o sexo dela lhe seja revelado por mim, conseguiria suspender o seu juízo e durante dezenas de frases descritas no meu tagarelar, se poria numa posição de abstração tal, que suspenderia até mesmo um dado cultural tão relevante quanto o sexo até que eu lho revelasse explicitamente? Oscilaria, enquanto não se conclui, entre as duas possibilidades ou será que se convenceria de uma construção qualquer provisória (ou homem ou mulher), enquanto não a argamassa da certeza não lhe dá uma pista indireta, baseada em pequenos indícios que se confirmarão depois? Ou então refaria abruptamente sua construção mental, como aconteceu com a Lucy acima, apagando com a borracha da sua memória recente as imagens que havia feito antes, a ponto de convencer-se que, desde o início, nunca teve dúvidas do que eu pensava? O que ocorre é rápido demais para que eu prove que a última hipótese é a mais correta, mas estou convencido de que o refazimento ocorre, não só quanto ao sexo, como apontam os dois exemplos acima, mas também para muitos outros detalhes. Aposto que essa pessoa havia imaginado, entre suas oscilações de inúmeras experiências com crianças, a sua sobrinha loirinha vestindo amarelo, tal como a viu no último natal, isto é, segurando um cachorro encardido de pelúcia, mas nunca o menino chinês com roupa vermelha de óculos, com a boca suja de macarrão ao qual eu de fato me referia.
Se eu digo, uma pessoa entrou na sala: era uma criança dando pulos e desembesto falando dessa criança sem dar pistas se é um menino ou menina, será que alguém, até que o sexo dela lhe seja revelado por mim, conseguiria suspender o seu juízo e durante dezenas de frases descritas no meu tagarelar, se poria numa posição de abstração tal, que suspenderia até mesmo um dado cultural tão relevante quanto o sexo até que eu lho revelasse explicitamente? Oscilaria, enquanto não se conclui, entre as duas possibilidades ou será que se convenceria de uma construção qualquer provisória (ou homem ou mulher), enquanto não a argamassa da certeza não lhe dá uma pista indireta, baseada em pequenos indícios que se confirmarão depois? Ou então refaria abruptamente sua construção mental, como aconteceu com a Lucy acima, apagando com a borracha da sua memória recente as imagens que havia feito antes, a ponto de convencer-se que, desde o início, nunca teve dúvidas do que eu pensava? O que ocorre é rápido demais para que eu prove que a última hipótese é a mais correta, mas estou convencido de que o refazimento ocorre, não só quanto ao sexo, como apontam os dois exemplos acima, mas também para muitos outros detalhes. Aposto que essa pessoa havia imaginado, entre suas oscilações de inúmeras experiências com crianças, a sua sobrinha loirinha vestindo amarelo, tal como a viu no último natal, isto é, segurando um cachorro encardido de pelúcia, mas nunca o menino chinês com roupa vermelha de óculos, com a boca suja de macarrão ao qual eu de fato me referia.
Pois bem, há tempos eu acredito que "entender totalmente" significa ter dúvidas muito bem disfarçadas. A referência não está ligada às palavras como cabos que amarram a lona de um circo. O contexto não deixa a coisa ereta e firme. Nem um pouco. Aquilo que chamamos de contexto é tão flácido quanto qualquer daquelas muitas cordas meio soltas, que deixam pedaços mal amarrados da lona balangando com o vento, num circo mais real e empoeirado que ideal. O que chamamos de "contexto", na verdade, é uma certeza que temos sobre algumas apostas de referência. Apostas, como sabemos, viciam, entorpecem e nos fazem afirmar ebriamente, com mais certeza do que devíamos: não há quem acerte sempre o número da roleta, convenhamos. Se houver, tiro-lhe meu chapéu e monto-lhe um altar para venerá-lo diariamente.
Ok, uma última chance ao contexto: digamos que ele seja uma associação, seja lá o que isso signifique também. Não seria bem uma charada em que basta trocar uma palavra ou então um enigma que requer uma exegese intangível, nem mesmo algo que se torna claro só porque aquilo a que me refiro seja culturalmente relevante: contexto seria (além de tudo isso) algo que não tem o mesmo gênero (tradução bilíngue: não tem o mesmo hiperônimo, não está no paradigma das coisas que possam ser substituídas), mas emerge do vão das palavras, como uma barata que não quer ser barata, que está na sinapse de dois neurônios, transversalmente, uma espécie de ectoplasma de sentido que vem de um além, algo que se torna sentido por vias imprevisivelmente tortas, assim como o saco de plástico da minha padaria que, por correntes de convecção e/ou por correntes marítimas, alternadamente, foi levado para o meio do Oceano Pacífico. Para ser mais claro, um contexto seria algo, como reza sua etimologia, "tecido junto com" a coisa (con-textus, particípio de con-texere), algo que o acaso fortuito da semelhança entre uma nesga de um significado e um tiquinho de expressão fonética já me fazem discernir com clareza, algo como o acaso de quando caio na minha estação preferida de rádio singrando por chiados de meu dial. O contexto seria o próprio sematurgo, ou um avantesma sematóforo, a luz de um sentido que me conduz a uma referência límpida ou torpe, a qual arrebata minh'alma de deleite, ou de fúria, ou de contentamento; algo como epifania ou simplesmente algo que me faz explodir de risos, por finalmente entender a piada. Pois bem, pensemos nesse contexto mais translúcido do que os anteriores. O que eu estou dizendo é que os sentidos trazidos por esse novo conceito de "contexto", naturalmente tecidos entre as palavras, são números reais ou complexos e não só números racionais. A metáfora parece boa, sobretudo para aquele que aposta no inefável e que acredita no belzebu da indefinibilidade das coisas.
Para aqueles que torceram o nariz para o parágrafo anterior, uma digressão: convenhamos, quem disse que ao definir uma coisa, reduzindo seu contexto a unzinho só, como fazem os cientistas, estarei chegando perto de entender uma afirmação? Aparentemente, a palavra contexto não se traduz em todas as línguas e posso até imaginar que houve um tempo em que nem existisse na nossa língua. Como então se viravam os pajés da enrolação sem ter consciência do que é um contexto? Por pura arte retórica? Empregando sentidos contextuais pura e simplesmente? Ora, se toda palavra ou expressão ou frase está ligada normalmente a muitos sentidos (ou pelo menos a um só significado), que fazer quando não está ligado a nenhum? Para um biólogo a frase "anfioxos são oligolécitos, pois a clivagem de gástrulas resulta em micrômeros e macrômeros" é claríssima, mas para quem não é biólogo, isso é pura sopa de engórvia. Quem não entende essa frase, mas não a esnoba, pelo contrário, admite sofridamente que deve haver um sentido nela, acreditará que lhe sobra ignorância do tema ou falta-lhe dicionário em casa para saber sobre "o que é". Parece que o intelectualismo do século XVII fez de fato as pessoas crerem que quando nenhum homem tinha dicionários, todas as palavras eram claras (e todos sabemos que a culpa de existirem românticos é dos racionalistas e vice versa). Nesse éden de clareza e transparência não era preciso nunca decifrar contextos? Ou será que, falando agora qual a serpente dirigindo-se a Eva, nos deveríamos perguntar se não houve sempre um fumanchu que propositalmente lhes afastava o sentido já consagrado pela rotina por razões nada honrosas? Da mesma forma que é bom ouvir um consolo ou uma distração quando me apagam a fogueira e eu, medroso, fico no meio da selva apenas ouvindo grunhidos sem saber de qual grunhidor é, ou então se o grunhidor, que eu gostaria que não fosse aquele que temo, está perto ou não, a incerteza vem o tempo todo à superfície de nossa mente: se admitimos que não ouvimos tudo (tudo, tudo) com clareza, tampouco entendemos tudo (tudo, tudo) com precisão, conviver com o incognoscível parece a situação natural e não um problema. Para o que é natural não há teoria alguma mais simples que a própria natureza. Quem me dirá qual é o exato momento em que a engórvia deixa de ser gênero literário para ser um legume? Quem afirmará, de cara deslavada, olhando nos meus olhos que conhece e distingue claramente todos os hipônimos de um paradigma?
Leitor, pela primeira vez obedeço ao meu título, pois, afinal de contas, não sou um Montaigne. A teoria geral do contexto reza o seguinte: palavras têm sentidos, às vezes vários. Esterilizados, pelo indivíduo ou pela sociedade, tornam-se significados e, a partir desse ponto em que estamos revirando displicentemente o doce no fogão, enxergaremos contextos como o cozinheiro enxerga as crostas da goiabada. Não podemos viver sem os sentidos, que são imediatos e fortuitos, de uma instabilidade mais quântica que a própria física quântica, mas só acredita em contexto quem acha que há diferença essencial entre sentido e significado. Eu, contudo, acho que são a mesma coisa. O fato de um sentido ter pouca tradição ou não ter tradição alguma depende da minha ignorância; o fato de nunca termos ouvido antes esta conotação e ser estranha ou bonita aquela expressão por ser inusitada e poética não serve para apoiar uma suposta diferença entre o significado congelado e o sentido pronto para ser consumido. Se o peixe cru é essencialmente a mesma referência do peixe cozido, não há tempero que eu separe no paladar que justifique a denominação fantasmagórica de que ali há um "contexto" responsável pela metamorfose. Obviamente o peixe cru me dá uma experiência sensorial distinta do peixe cozido e portanto tem outra referência, mas se não é da infinitude dos referentes que estamos falando, por que é que estamos conversando mesmo?