Há perguntas e perguntas. Uma das mais comuns são aquelas que envolvem desconhecimento da parte do indagador e que urge obter uma resposta da parte do indagado. A esse tipo eu chamaria de lacuna desejante de ser preenchida. Então se eu pergunto: "que alemão morto em 1954 criou um modelo para explicar as forças intermoleculares nas substâncias compostas de moléculas apolares?" obviamente a resposta é Fritz Wolfgang London. Pois bem, a combinação entre a pergunta e a resposta é aquilo que chamamos de informação. No caso da pergunta, uma informação requerida e no caso da resposta, uma informação fornecida. Pergunta e resposta se complementam. Se estamos na era da informação, não é possível pensar em fatos a não ser mediante instigantes perguntas e suas respectivas respostas.
No entanto, uma pergunta tem além da semântica das palavras que compõem sua sintaxe também uma intenção. Qual foi a intenção daquele que expôs uma lacuna desejante de ser preenchida? Quis saber de fato quem foi o alemão que criou o tal modelo porque também não sabia ou, na verdade, já a sabia de antemão e só quis ver se aquele que responderia à questão conhecia de fato a resposta, como num exame de um curso de química? Pois bem, vemos que há agora dois tipos bem diferentes de pergunta.
Repetindo: pergunto porque não sei ou pergunto, apesar de saber? No primeiro caso, é sincera a minha ignorância; no segundo, é insincera, porém legítima, uma vez que preciso saber se o indagado também sabe. E para que preciso saber? Para avaliá-lo, obviamente. Dito de outro modo, quando pergunto algo ou quero destruir a minha ignorância ou quero comprovar se o outro é ou não ignorante. E para quê? Obviamente, para segregá-lo na hoste dos ignorantes.
Obviamente, a verdade da resposta, dada como informação ou como resposta à avaliação acerca da ignorância alheia, depende do conhecimento do indagado. Suponhamos que eu, que respondo, esteja convencido de que o alemão perguntado acima seja Johannes Diderik van der Waals. De fato, van der Waals teve participação, ainda que independentemente, no modelo que explicam forças intermoleculares nas moléculas apolares, mas: primeiro, ele não era alemão, mas neerlandês; segundo, ele não morreu em 1954 mas em 1923. Em suma, mesmo que a minha resposta não seja completamente absurda, pois haveria alguma semelhança entre o que fez London e o que van der Waals fez, ela seria julgada como totalmente errada.
Além da resposta tipicamente errada, há uma terceira espécie de resposta, que eu chamaria de manutenção da lacuna a ser preenchida, que não teria necessariamente a ver com questões de falso ou verdadeiro. Em português, essa resposta equivaleria à expressão "eu não sei" ou, na variação diafásica, "sei lá", "não tenho a menor ideia" ou ainda na forma de pergunta-bumerangue "eu vou saber?" ou "e eu lá sei isso aí?". Respostas desse tipo são legítimas para a primeira espécie de pergunta, pois todo mundo tem o direito de ser ignorante, já na segunda, segundo os acordos sociais que nós mesmos criamos, merece punição, pois é sabido que a ignorância deve ser combatida, dizem os representantes dos valores sociais. Essa situação mostra bem o impasse entre o direito privado à ignorância e a vergonha pública do pecado da ignorância. E de fato, não é possível valer-se juridicamente da primeira situação se a pergunta foi proferida numa situação em que sabemos valer a segunda, por exemplo, numa prova de vestibular.
Suponhamos ainda que, nesse mesmo exame, uma pessoa que respondera "van der Waals" e foi julgada como equivocada alegue que a afirmação de que a resposta certa era "London" também está errada. De fato, a informação de que London era alemão é parcial, pois a situação de cidadania desse cientista era bastante complexa: London nascera em Breslau, que pertencia de fato à Alemanha em 1900, ano em que London nasceu, no entanto Breslau não existe mais, uma vez que em 1954, data de falecimento de London, Breslau já havia se tornado Wrocław fazia nove anos e, desde então, é considerada uma cidade pertencente à Polônia. Ou seja, só com mais essas informações adicionais, concluímos que London nasceu alemão e morreu polonês e, do ponto de vista da sua essência, é difícil dizer se a afirmação de que era alemão está certa ou errada, pois ao mesmo tempo que um alemão-polaco não deixa de ser alemão, nem todo alemão é um alemão-polaco. Pior que isso: London em 1939 emigrou para os Estados Unidos e lá se naturalizou norte-americano, de modo que juridicamente, London não era nem alemão nem polaco. Sendo três coisas ao mesmo tempo (com mais opções que o gato vivo e morto de Schrödinger), é muito simples afirmar que nosso caro London era alemão, diria o impetrador da ação jurídica, de modo que a pergunta não tinha sido legítima e, assim sendo, é irrespondível. Não existe tal alemão da pergunta pelo fato de a esperada resposta prever um alemão-estadunidense-polaco.
Alguém dirá que isso é retórico demais e, de fato, que seriam os questionamentos jurídicos, não fosse a retórica? Essa última pergunta também foi retórica, como a do título. Terceira possibilidade de indagação à vista.
Voltando à vaca fria: há aquela pergunta que, quando legítima, oferece-nos um locus que deve ser preenchido ao substituir-se o pronome ou advérbio interrogativo pela resposta (fazendo, obviamente, os devidos rearranjos sintáticos) com a finalidade de suprir o vazio de nossa ignorância ou com a intenção de testar o conhecimento (ou a ignorância: estranho sinônimo!) daquele que vitimamos ao perguntar e há, por fim, tertium datur, aquela pergunta com a qual eu não busco preenchimento nenhum, pois é um imperativo travestido de interrogação e bastaria transformá-la na forma adequada ou então ler a mente daquele que pretende que eu faça o que não desejo.
Ora, se eu devo responder às perguntas retóricas com silêncio, não posso fazer o mesmo com as duas primeiras categorias? Sim, em vez de dizer "London" ou "van der Waals" ou o raio que o parta, eu não posso simplesmente fingir que não ouvi pergunta alguma, ignorando-a com uma cara impassível? Obviamente no primeiro caso, sim; no terceiro é até mesmo o que se deseja (pois assim confirmo a hierarquia daquele que me faz perguntas retóricas do alto de sua superioridade), já no segundo caso, haverá punição, se imagina o esperto vestibulando que, ignorando todas as perguntas, o questionador seria acometido de empática compreensão e não lhe daria um redondíssimo zero. Ou seja, apenas o primeiro tipo de pergunta parece ser tolerante e válido para a manutenção das relações interpessoais, já as duas outras são meras ferramentas de poder e de opressão que o bicho humano inventou para atormentar seu próximo.
Será? Quero dizer: será mesmo que a primeira pergunta é assim tão boazinha e tolera o silêncio? Se eu digo "eu vou lá saber?" é uma coisa, já olhar para quem nos honestamente pergunta algo e ficar com cara de paisagem sem dar-lhe nenhuma resposta não causaria, talvez não na primeira, mas na segunda ou terceira tentativa, pelo insólito da situação, uma vontade doida de o ilibado questionador esganar aquele que nunca responde, passando a julgá-lo como um birrento, uma vez que sabe que o indagado não é surdo, que conhece perfeitamente o código da indagação e deveria entender as boas regras pragmáticas de convívio social. Mesmo aquele que não parte para o estrangulamento, comete alguma espécie de crime na sua mente chamando o mudo de esquisitão. Na melhor das hipóteses, não tentaria entender, preocupado não mais com quem foi que teorizou as forças intermoleculares das moléculas apolares, mas com a razão daquele infernal silêncio injustificado? Suspende-se a primeira lacuna e abre-se uma outra ainda maior. Mesmo que eu não tenha a intenção de julgar a ignorância do meu interlocutor ou não queira impor-lhe um modo de ver as coisas por meio de minha retórica, eu também exerço, ao perguntar honestamente, o meu direito a uma espécie de compromisso do qual o indagado não pode evadir-se sem justificativas razoáveis ou compreensíveis. O silêncio do indagado, em vez do devido preenchimento da lacuna do indagador, pode ser interpretado como uma bizarrice ou como uma ofensa e, nisso há novamente uma boa dose da opressão que vimos, uma vez que ninguém, se indagado, aparentemente, tem o direito de não responder a uma pergunta, de qualquer tipo que ela seja.
Um passarinho pia numa árvore e o outro, longe dali, pia como resposta. Sabe-se lá quais são os códigos das aves e a ornitologia está longe de dar respostas suficientemente claras. Uma vez que a maioria dos bichos é muda, será que se o outro pássaro não se sentir obrigado a piar de volta pelos esquemas de seu instinto, haverá algum dolo, passível de ação pela justiça ornitológica (resolvida, por exemplo, com picadas no olho e em outras partes doloridas)? Ou o pássaro que ouve o piado do companheiro pode sentir-se à vontade para piar de volta ou não? Suponhamos que a evolução tenha adaptado esse comportamento a, por assim dizer, uma espécie de colaboração e que esses dois indivíduos formem uma equipe. Suponhamos ainda que o pio signifique algo equivalente à pergunta "tem algum saboroso besouro aí?" e o retropio signifique "sim" e o não-pio signifique "não". O que ouve o pio indagativo, controlando seu instinto de retropiar, pode furtar-se a dar a resposta ao colega e, sabotando o código, romper com a equipe sem que o outro saiba, comendo gostosamente o besouro que não compartilhou com o indagador, mas comendo outro meio besouro quando for a vez do outro agir assim. O que não segue as regras comeria um besouro e meio e o que segue, só meio. Terá sido espertinho, pois dizem que a evolução favoreceu os cascudos e os sacanas. No caso humano, a não-resposta seria sinal de esperteza e lhe conferiria também vantagem sobre seus genes? Podemos pensar em várias situações, no entanto, acredito que não temos nenhuma resposta absolutamente certa a essa questão. Pelo contrário, o sucesso evolutivo humano parece vir porque ele é incapaz de fechar a boca.
E se todos se calassem? Não digo um voto de silêncio, mas um compromisso de todos os humanos nunca mais nos expressarmos por sons ou por letras, em hipótese alguma? Será que não tendo mais informações ouvidas nem proferidas, conseguiríamos nos mover simplesmente por empatia, como aqueles morcegos jovens e saudáveis recém-chegados à caverna que regurgitam na boca dos morcegos idosos ou doentes, incapazes de sair para fazer sua refeição? Ou será que, em vez dos lindos morcegos. à guisa do pássaro salafrário, definitivamente imersos no mundo diabólico de nossa cabeça individual e uma vez já infectados por signos sociais, daríamos uma banana à empatia e agora, alijados definitivamente da sociedade, como sempre sonhávamos, resolveríamos tudo no muque ou na base da traição, tirando vantagem de tudo, enquanto não somos trapaceados? A ausência de perguntas e respostas, em suma, de informação, se juntaria à nossa vivência, ainda que preteritamente artificial, de modo a, lutando contra nossos instintos tagarelatórios, continuarmos sendo hominídeos, no mau sentido da palavra? E os nascituros do pós-pacto como seriam, uma vez que a evolução, mesmo não nos dispondo de um aparelho biologicamente fonador (como são nosso aparelho respiratório e digestório), equipou-nos com uma mente leitora de formantes sonoros que usamos na época do nosso gugudadá para construir nossos fonemas antes mesmo de entendermos para que servem?
Perguntas retóricas, ou melhor, perguntas poéticas, porque obviamente ninguém sonha em calar sua boca para sempre, mesmo que os mais boquirrotos nos dessem o exemplo. Amamos nossas besteiras proferidas por causa do nosso narcisismo, amamos fazer que os outros preencham nossas lacunas por causa do nosso sadismo e amamos saber que somos ignorantes, por causa do nosso masoquismo.
Ah, ser humano... Acho que não temos emenda não. Não posso, como fez o alemão London declarando-se norte-americano, deixar de ser Homo sapiens por falta de identificação com tua progênie? Estou perguntando à toa. Já sei a resposta.