Certo dia, alguém disse que teus
dias na ágora estavam contados. Um rei forte juntou alhos e bugalhos que mal
entendeste e alguém, do outro canto do mundo, resolveu dizer que a vida real, a
vida para valer, não era aqui, mas depois de tua morte. No começo isso soava
loucura, mas o dia-a-dia fez que percebesses que teus sonhos não valiam mais a
pena e que aqueles que não se sentissem subjugados pelo rei aclamado ou morriam
ou deviam calar-se. Então, tu te calaste. Teus filhos, já nascidos sob jugos
similares, tornaram-se tão calados quanto tu, educados na prudência do
silêncio, até que teus netos e bisnetos ficaram totalmente mudos, vivendo por
falta de escolha, acordando para começar o trabalho no campo de um proprietário
que nunca mostrava as caras, a não ser na forma de capangas, que vinham
buscar sua parte. No máximo sentias-te bem quando tuas terras eram assaltadas e
o ataque era reprimido, pois, nesse momento, lembravas-te que não eram tuas,
mas dele e ele as protegeria e, indiretamente, te protegia. Passaste a amar
aquele que conseguia manter tua servidão, pois só havia outra opção: a morte,
que vinha cedo, devido à tua exaustão e à tua debilidade física. Mas enquanto
não vinha, louvarias aqueles que estavam acima de ti. E eis que não foi uma
doença comum que te matou, mas uma outra, que subitamente também levou teus
filhos, teus pais e teus amigos. Levou também aquele que dizia que a morte era
melhor que a vida, em plena contradição agonizante, além do teu protetor,
que tão forte parecia.
Desamparado, correste e encontraste outro sítio para viver.
Nesse lugar, aprendeste um ofício e depois o ensinaste. Diziam-te “mestre”.
Enfim, não eras mais uma célula de um tecido, mas um ser unicelular
independente. E trabalhaste e ensinaste teus filhos que não deviam mais se
subjugar. E vendeste, com eles, aquilo que ninguém conhecia e mantiveste em
segredo a sua manufatura. Mas livre não eras. Porque o senhor que morrera tinha
outro senhor, que, por sua vez, tinha outro senhor e, ao final, havia um rei. E
foi a esse rei que te ligaste diretamente para proteger-se e foi a esse rei que
pagavas tributo e foi ele quem ainda te garantia proteção.
Teu destino, contudo, era não precisar de proteção alguma. Por isso, saíste num barco rumo ao tão falado precipício do outro lado do oceano, disposto a te jogares lá. Mas precipício algum havia. Percebeste que no novo sítio não tinhas senhor. Lá, ao contrário, tu eras o senhor. E, com aquela crueldade que desenvolvemos às vezes, na esperança de que nos compreendam e que Deus nos perdoe, os pobres que lá viviam tiveram de submeter-se à tua violência e ao teu senhorio. E te enriqueceste. O rei sabia disso. Não tinha nada a perder se teu barco caísse no precipício, de tão insignificante que eras, mas agora, de olhos famintos, o rei te olhava como seu filho querido e, salivando, cobrava a porcentagem que lhe devia, que era muito maior do que antes e agora vinha na forma de prata.
Depois de algum tempo, ambos éreis ricos, tu e teu rei, mas
tu eras ainda mais. E tu agora podias negociar com a avidez de teu rei e ele,
temendo que o abandonasses, cedia, até que já não mais se sabia quem era o
senhor de quem. Pedias casas para teus filhos, junto aos castelos, e uma
segunda muralha que protegesse todos os teus apaniguados. Tinhas títulos à
disposição para distribuir a teus filhos e querias mantê-los eternamente como
se fossem reis, por isso te insubordinavas, aliando-se àqueles que há muito
estavam insatisfeitos. Por fim, todos vós matastes o rei. Agora tu tentavas ressubordinar
os coinsubordinados e, obviamente, conseguiste, pois as boas armas estavam
contigo e fizeste-o sem pena, sem lembrares-te um segundo sequer daqueles
tempos antigos em que finalmente havias deixado de ser livre.
Nesse momento, éreis como reis. Tu e teus iguais. Mas reis
já não havia, diziam. Aqueles que vos ajudaram, de cuja existência ingratamente
vos esquecêsseis, serviam-vos. Cada um, ilhado no seu solipsismo, pensava em
meios de controlar a vontade daqueles que um dia poderiam subordinar-se, pois
temíeis que dessem uma machadada nos vossos pescoços, como tu mesmo fizeste com
teu rei. O que vos unia era a justiça de um Deus, mediante a qual tu não podias
mais negociar com os insatisfeitos, pois te tornaras injustíssimo, embora
dormisses sossegado. Deste-lhes então um salário. Saindo dos campos, eles foram
para tuas fábricas e morriam nas tuas engrenagens e isso foi bom para ti. Impune vivias em tua injustiça: a vida após a morte os esperava, continuava-lhes como consolo, igualzinho
quando o primeiro egípcio ou o primeiro persa, olhando o céu estrelado, a prometera ao seu ouvinte.
Deixando o campo, outro coitado, como tu o eras, estava em seu quarto insalubre, preparando a dura cama, a fim de deitar-se cedo e acordar de madrugada para trabalhar em teus teares. Sentia saudade da laranja chupada no pé, do cogumelo, dos ovos de suas aves, do leite da sua cabra. Sozinho, malpensando em seu dialeto incompreensível, sequer podia contar com aquela vizinha prometida pelos pais desde a infância, visando à ampliação de suas terras para a aragem. Sujo de fuligem, esse coitado via os dias serem iguais, um após o outro. Esgotado de tédio, no limiar da fome, agradecia de novo a Deus apenas o estar vivo e, para isso, juntar-se-ia com outra coitada e deles nasceriam milhares de coitados. Tu te engordavas, nesse ínterim, criavas teus filhos no estrangeiro, discutias as últimas modas, fazias teus exercícios saudáveis, lias os últimos artigos filosóficos, interessavas-te pelas intrigas políticas, enquanto te lavavam os pés. Ouviste que alguém havia colocado um tamanco nas tuas engrenagens, mas estavas certo que tua indignação discursiva calaria fundo na alma dos coitados quando os reprovasse, punindo-os com mais trabalho ou com menos dinheiro, quando não os chicoteavas cruelmente. A exceção não faria a regra. Mas fez. Tiveste que lidar com ex-escravos livres, com sindicatos, com discursos que relembravam uma antiga igualdade que nunca viera desde que o rei fora decapitado. "Ingratos", pensavas, "pois não se lembram de quando não eram livres. Exigem fraternidade, pois bem, vão tê-la". Participação nos lucros haveria - não para todos, obviamente - e os dividiria. Afinal de contas, "irmãos mais velhos têm a anuência dos mais novos", não é? Todos concordariam, exceto anarquistas, mas esses são poucos e não são sérios, conjecturou.
Pois é, foste bem-sucedido. Uma nova hierarquia fez que te tornasses o novo rei sem rosto, escondido por trás de teus acionistas e de teus gerentes: a
burocracia salvou tua cabeça e, olhando de cima de tuas torres, vês teus funcionários
ávidos, correndo atrás de seus espelhos e de suas miçangas. Tu os vês, sonhando com
sua casinha, com seus bens tão supérfluos e, lá do alto, dizes-lhes agora quais
são os bens com que têm de sonhar. Foste livre, foste servo, ditaste as regras
junto ao rei e agora ninguém está acima de ti.
Pensando apenas em ti e eles, também, pensando somente em si, fundou-se
a Igualdade: somos todos acometidos do mesmo solipsismo, independentemente de
sermos miseráveis, ricos ou milionários. Todos cavoucamos, todos corremos, todos
compramos, todos vendemos, todos ensinamos, todos nos insurgimos, todos questionamos,
todos aceitamos, todos temos medo do passado, todos vemos o futuro, todos queremos que
o futuro seja igual ao passado, todos queremos que o passado tenha o germe do
futuro. A igualdade entre irmãos livres, afinal!
Será? Tudo que vive neste planeta hoje é livre ou fadado à liberdade?
Penso que não. Quem são agora os que não estão livres ou não têm a esperança da
liberdade?
Pensarás, leitor: “ninguém”, mas erras.
Há os que não estão livres e têm muito mais pernas do que ti. Há os que trazem usinas de oxigênio dentro de si. Há os que se rastejam sobre o ventre. Há os que não estão livres, muitos, milhões e que se escondem nas copas das árvores, protegendo sua vida, dia após dia. Há os que não estão livres do nosso solipsismo redentor e humano, camuflando-se na plasticidade de sua genética, diminuindo-se, empalidecendo-se, de modo que, se sortudo, não os encontrarás. Os que não estão livres cantam, zunem, piscam, grunhem, sem ter uma linguagem que entendas e a maioria é de um mutismo inenarrável. Os que não estão livres vivem uma vida que jamais imaginarias existir e estão prestes, na primeira oportunidade de teu vacilo de empreendedor, a reunir-se para te decapitar. Muitos deles não consegues ver, a não ser com um bom microscópio. Os que não estão hoje livres querem dominar tudo de volta, retransformar o mundo tal como era antes de perderes teu pelo e teu rabo e antes de ganhares teu cabeção disforme de bípede. Aproveitando-se do teu solipsismo, arquitetam um exército contra a extinção em massa artificial a que os submeteste. Porque não és sol, não és atmosfera, não és terra, não és água e nada disso sabes. Solipsista, entende de uma vez por todas: ou te unes com teu irmão solipsista ao lado e com o teu irmão da torre e reconsideras se vale a pena fazer um mundo só para ti, ou logo sentirás a machadada daqueles que reputas os mais reles, que não são tua imagem e semelhança, advindos de pequenas poças úmidas, de colossais pradarias de cinzas de árvores e de imensos esgotos ao céu aberto. Será inexoravelmente a resposta deles ao teu plástico indiferente e ao teu gás alienígena, agora que cada um de ti é uma ilha cartesiana. E eles são muitos. Não poderás vencê-los.
Pensarás, leitor: “ninguém”, mas erras.
Há os que não estão livres e têm muito mais pernas do que ti. Há os que trazem usinas de oxigênio dentro de si. Há os que se rastejam sobre o ventre. Há os que não estão livres, muitos, milhões e que se escondem nas copas das árvores, protegendo sua vida, dia após dia. Há os que não estão livres do nosso solipsismo redentor e humano, camuflando-se na plasticidade de sua genética, diminuindo-se, empalidecendo-se, de modo que, se sortudo, não os encontrarás. Os que não estão livres cantam, zunem, piscam, grunhem, sem ter uma linguagem que entendas e a maioria é de um mutismo inenarrável. Os que não estão livres vivem uma vida que jamais imaginarias existir e estão prestes, na primeira oportunidade de teu vacilo de empreendedor, a reunir-se para te decapitar. Muitos deles não consegues ver, a não ser com um bom microscópio. Os que não estão hoje livres querem dominar tudo de volta, retransformar o mundo tal como era antes de perderes teu pelo e teu rabo e antes de ganhares teu cabeção disforme de bípede. Aproveitando-se do teu solipsismo, arquitetam um exército contra a extinção em massa artificial a que os submeteste. Porque não és sol, não és atmosfera, não és terra, não és água e nada disso sabes. Solipsista, entende de uma vez por todas: ou te unes com teu irmão solipsista ao lado e com o teu irmão da torre e reconsideras se vale a pena fazer um mundo só para ti, ou logo sentirás a machadada daqueles que reputas os mais reles, que não são tua imagem e semelhança, advindos de pequenas poças úmidas, de colossais pradarias de cinzas de árvores e de imensos esgotos ao céu aberto. Será inexoravelmente a resposta deles ao teu plástico indiferente e ao teu gás alienígena, agora que cada um de ti é uma ilha cartesiana. E eles são muitos. Não poderás vencê-los.