Tenho um amigo, rei lendário de uma
ilha famosa, o qual, numa conversa, me deixou com uma dúvida corrosiva. Segundo
Sua Majestade, o lado mais insuportável das relações humanas é a egolatria,
motivo pelo qual almeja viver abscôndito dos seres humanos (exceto de Si
mesmo), bem longe do tumulto de Camelot. Como sabes, leitor, defendi minha tese
mês passado sobre a assunção
do solipsismo humano, de modo que pensei que o Rei e eu falássemos de sinônimos.
Sua Majestade, decerto, não lera minhas esdrúxulas reflexões, empenhado que estivera na busca de Seu graal, empreitada, aliás, mais que justa e, portanto, talvez
retirara suas conclusões a partir das agruras das batalhas com os Seus inimigos saxões. Sobre isso tendo conjecturado, para não O aborrecer com uma maiêutica fora de hora, resolvi matutar solitário sobre Sua certeza acerca da inexistência de uma decadência humana, uma vez que, como argumentara destagarelada- e brilhantemente em Seus aforismos, nunca houvera um apogeu, para falarmos de tal declínio.
Eis o que Lhe apresento - e rogo-Lhe que perdoe a minha petulância - os
resultados do exercer do meu pleno direito solipsista. De fato,
concedamos todos que decadência não há, porque Éden não houve, mas infernos há
e nesses momentos infernais é que discorremos sobre as causas que nos
conduziram a tal inferno. Mas se fomos conduzidos às labaredas, antes não estávamos lá e esse respiro de paz pode não ser chamado de Éden, mas convenhamos que era um
momento bem desenfernizado. Isso não prova nada, eu sei: apenas que temos bons
e maus momentos e que os bons momentos na verdade são ilusões que os maus
momentos nos propiciam, na visão dos otimistas, e uma decadência, na visão dos
pessimistas. O nome da sensação de que estamos caindo, aparentemente, não
importa. Retiro toda alusão a quaisquer decadências que porventura minhas afirmações pudessem evocar nos espíritos leitores, uma vez que não foi intencional.
Fato é que, se estivéssemos caindo sempre, não perceberíamos a queda. Foi o fato
de um dia nos termos apoiado no muro que nos deu a sensação que não havia mais
nada abaixo de nossos pés. Já que esse gráfico de altos e baixos é todo
irregular, ainda que haja uma tendência velada para a queda ou para a uma alta, ou para
os dois, como queria Vico, proponho que abandonemos o tema sobre a decadência humana, senão estaremos falando
de moiras, de apocalipses, do coroamento hegeliano ou de uma paz
pós-revolucionária marxista. Não é isso que importa e nem acho que isso seja
algo relevante.
Voltemos à egolatria. Eu, ególatra, sou colocado como deus, por
definição, e construo para mim um altar ou peço para construírem, convocando-me
e/ou aos outros a prestar-me adoração. Isso talvez seja uma boa definição. Não
saberia dizer neste momento qual seria a diferença precisa entre egolatria e
narcisismo. Talvez o narcisismo possa ser uma egolatria solipsista, sei lá. O
problema da definição dos termos sempre aparece em qualquer discussão porque,
apesar da extensa prole vocabular que criamos, não sabemos cuidar bem de nossas
palavras e elas, por vezes, se enchem de musgos e são apenas apelidos de um
mesmo filho de cujo nome esquecemos por causa de uma deficiência de atenção. O mesmo podemos dizer sobre o exibicionismo. Será então todo narcisista um exibicionista? Será
todo exibicionista ególatra? Pois bem, deixemos para depois também esse
problema da indefinição dos termos, essa minudência que separa uma pessoa
narcisista de uma exibicionista e de uma ególatra, se a há.
Pensemos na egolatria apenas como o tal culto supramencionado ao eu, que se
manifesta no empenho solitário para ser adorado e, portanto amado. Ora, esse esforço
pode ter vários graus, por exemplo, pode manifestar-se como uma espécie de
sedução, que vai do bom-humor ao erotismo; pode ser um desejo de ser admirado,
seja por recalque, seja por autoconvencimento; pode ser uma ordem de adoração,
a qual, descumprida, se convertesse em punição leve ou mesmo numa pena de
morte. As razões da egolatria, na verdade, não existem se ela é deveras algo essencial. O ególatra quer ser notado, admirado e adorado, pois bem. Um ser
ególatra, portanto, teria dois lados: uma carência e um desejo de permanência,
pois quer ser amado e quer que esse amor seja eterno, resumindo: o ser humano seria algo como um minijeová.
O que faria o ególatra quando consegue seu intuito ou quando sua
meta ideal é abortada parece-me igualmente irrelevante. Se todos somos assim, não estou falando só do presidente da Islândia ou do meu genro, nem do imperador Marco Aurélio ou dos pedreiros
do Empire State Building, mas também primeiro Dalai Lama do século XXII ou do dono da farmácia vizinha à minha casa, que ainda não existe. Dizer que um ser
humano é ególatra por natureza equivaleria a dizer que todo Homo sapiens nasce assim e passará
essa qualidade a outros, esteja isso no seu fado ou nos seus genes. Se há, houve
ou houver exceções, não há essência alguma que podemos chamar de humana.
Complementando a reflexão do mês anterior, o ser humano
teria, desse modo, não só uma essência solipsista que o impulsiona para si
mesmo, desvelada pelas mudanças sociais, mas também um ímpeto natural ególatra na sua
expressão, que quer chamar a atenção para si mesmo, seja para sua aparência, seja para
suas atitudes, seja até mesmo para sua própria expressão. Diferentemente de
fasmatódeos mimetizados entre gravetos ou de uma Hamadryas feronia sobre um tronco de uma
árvore, o ser humano teria o pavonear indisfarçável de um quetzal ou de um pato
mandarim macho.
Os que pudessem receber o título de modestos, isto é, os falsos
ególatras, seriam como uma dessas borboletas do tipo Kallima, que é folha seca, de asas fechadas, e ave
do paraíso, de asas abertas. Pensava, contudo, que seres coloridos ou são apossemáticos ou
participam daquilo que se convencionou chamar de “seleção sexual”, que
justificaria o dimorfismo: até onde se pode detectar, a qualidade
ególatra não tem relação alguma perceptível com o sexo do ególatra, até que
alguma estatística mostre o contrário.
Por outro lado, se a egolatria é uma qualidade indiscutível
do macaco louco chamado Homo sapiens, estaria essa característica tão
bem distribuída e seria algo eterno ou poderíamos dizer que é um fruto (uma
virtude ou um defeito, diriam os mais normativos) de uma sociedade? Se o homem
fosse tão solitário quanto um polvo, faria sentido ser ególatra? E pessoas que
vivem no deserto comendo zimbros poderiam ser consideradas ególatras à sua maneira? Ou há na obsessão
do pronome de primeira pessoa "eu" algo de cultural? Pode-se, afinal, reconstruir a palavra “eu” até o
indoeuropeu com muita segurança, mas não no japonês, que tem uma dúzia de
palavras para dizer “eu” e, no final, ser polido mesmo é não dizer nenhuma delas.
Pronomes pessoais, enfim, são uma constante universal da expressão humana desde sempre? Não há crianças recém-falantes que
se referem, inicialmente, a si mesmo pelo nome próprio, na terceira pessoa, até
descobrirem que existem o outro e, finalmente, alguns meses mais crescidinha,
substituem o seu nome pelo nefando pronome monossílabo? A egolatria nasceria com o
parto ou desenvolveu-se naqueles meses em que a criança se socializou e
descobriu, para seu tédio eterno, que o mundo não era só ela mesma, nem só os pais,
mas também o moleque da creche que lhe puxa os cabelos? Em que momento esse ser
ensimesmado, solipsista, partiu para uma nova estratégia, agora ególatra, que
necessitaria da atenção do outro, quer para não se sentir tão só, quer para
estabelecer uma relação hierárquica, quer para se prevenir de não ser morto?
Solidão, poder ou precaução: qual foi a gênese da egolatria que o perseguirá?
Mas se o indivíduo é um onanista, se tem delírios de
onipotência ou se é um louco funâmbulo que anda sozinho e sem câmeras sobre um
precipício, seria ele também ególatra? Um bandeirante maluco que meteu a cara
na selva com sua profunda ignorância e violência contra tudo que se mexe pode ser chamado de ambicioso
e querer ser deus, mas teria de ser necessariamente o mesmo deus carente que exige que seja
adorado, como esse que conhecemos de uns milênios para cá? Ou desejaria somente ser um
deus onipotente, que se regozija sadicamente vendo a árvore milenar cair sob
seu machado e não teria deleites orgásticos maiores do que o de fazer a onça cair
em sua armadilha, onde a sacrifica, convencendo-se assim da sua plenipotência?
Quem adoraria esse ser solitário que tudo destrói, sem plateias a não ser ele
mesmo? Poderíamos estender a egolatria também para esses assassinos solitários
sem gabolices que se veneram? Ou já estamos diluindo demais a definição do termo “ególatra”?
Um monge recluso no mosteiro longínquo de sua cabana, fugindo de todos, voltado
para si, para o conhecimento do mundo e do outro, sofreria de uma intensa
egolatria ou seria o inverso? Não seria após admitir a impossibilidade de
deixar de ser indivíduo, após longa samsara, que um meditador, abstendo-se da
senciência, busca (e às vezes atinge) um nirvana? Se pelo menos um consegue
fazer isso, seria injusto chamá-lo de ególatra, e, sendo assim, a frase “o ser
humano é ególatra” seria falsa, como queríamos demonstrar, no nosso mais
profundo acesso de egolatria. Não me parece um bom contraexemplo… talvez Sua Majestade tenha razão.
Talvez a prova maior de que a afirmação sobre a egolatria
universal humana é falsa esteja noutra parte, não no movimento lento e
refletido de um monge, mas de um pai que pula na frente do filho prestes a ser
morto por um assassino. Talvez o melhor exemplo de não-egolatria seja o de um
catador de papel, como Luciano Macedo, que morreu tentando salvar a família do músico
Evaldo Rosa dos Santos. Alguém dirá que foi uma empatia impensada. Animais
morrem assim, protegendo sua prole, mas Evaldo não tinha os genes de Luciano
para justificar tão esdrúxula separação do homem entre os animais: os violentos chimpanzés também salvam pássaros que caem na sua jaula, se lhes der na veneta, como provou já Frans de Waal, o que torna a empatia não o
fruto de intensa meditação e eliminação da egolatria, mas algo tão instintivo
quanto respirar.
Talvez o ruído do cérebro humano, cheio de palavras, cheio de
códigos sociais, cheio de inúteis subentendidos pragmáticos não permita que vejamos isso e, no meio dessa barafunda, a palavra “eu”, mais megafônica em algumas
culturas, mais reprimida em outras, tome de fato um local central, de modo que
a egolatria seja confundida com a maior prudência para manter-se vivo, como uma resposta ao medo e à fobia, sejam essas palavras sinônimas ou não. Algum
papel na sobrevivência a egolatria deve ter, assim como o solipsismo tão desejado ao longo dos breves éons
humanos. A sapiência de um Rei, ainda mais de um famoso, não deve ser
contestada, contudo. Sejamos prudentes.
Mas como duvidar ainda não é crime, tenho cá para mim que enquanto
não decidamos conjuntamente quem veio primeiro, o solipsismo ou a egolatria, observemos
melhor as aranhas, pacientes em sua teia, devorando os pais de seus filhos,
num sacrifício ainda maior do que o de Tarkovsky, numa tragédia ainda
maior do que a de um atrida. Em nome de um bem maior, consciente ou não, a esse canibalismo do bem, tão frequente, não podemos chamar de desnecessário.
O devorado não parece nada ególatra, embora profundamente solipsista. Somos
assim tão diferentes das aranhas?