Evidentíssimo como tudo sobre o que eu discorro, o leitor sabe (porque sabes tudo) que a primeira frase que escrevi desta vez foi apagada, aniquilada, destruída, exterminada, extinta, por ser demasiadamente impactante, chocante, imprópria, perturbadoramente surpreendente, escandalosamente revoltante, ultrajantemente vilipendiosa, beirante ao fúnebre e ao tétrico na sua azoinante e aleivosa perfídia. Prova disso (para que provas, afinal?) é a total ausência de traços de palavras, letras e intonações de seu conteúdo pérfido, horrendo, macabro e desnecessário, como se pode ver. Um inconfessável gozo nasceu da minha pena ao riscá-la, borrá-la, suprimi-la desconvidá-la à existência. E um alívio tiveste tu, leitor, de não a ter lido, ouvido ou pensado sobre ela.
A frase, mesmo censurada, contudo, não me salva, porque revela o que já sabias de mim e a usas como testemunho inequívoco de que sou o que sempre fui e sabias. E também de que a carapaça de ermitão em que eu, paguro, me escondia e me encafuava, embiocando-me camufladíssimo, era nada mais que um arremedo de ornamento, reles donaire, atavio com que galhardamente me paramentava para enganar e engambelar vítimas como tu. Mas minha máscara caiu quando aquela frase, que agora não está mais ali (perdão!) foi dita. Razões lógicas emergem do que a minha labiríntica e enigmática expressão ocultava: no fundo, uma elementar e vicejante definição de mim, o que do ponto de visto twittérico, é sempre algo necessariamente bem curto e, portanto, bem simples, para não dizermos bem chulé (perdão, disse-o!). Já sabias há muito tempo tudo sobre mim: como és sábio. Eu mesmo não o sabia. Obrigado pela tua luz.
Tua caneta vermelha usada para cancelar meu nome te satisfez, pois, sim, agora, com a lista curta de nomes aprovados, podes pensar exclusivamente no essencial. E o que era mesmo o essencial? Pois bem, disseste-me que eram tuas metas. E quais eram mesmas? Não importa, podemos refazer-nos. O esboço anterior de ti mesmo não te saciava decerto...aliás, nem te lembras mais do que querias, mas sabes bem o que queres agora.
Mas, censurante leitor, se não sabes quem eras e ainda não decidiste quem serás, por que me reprimes por ter-me arrependido de apagar a escandalosíssima frase que não leste? Dir-me-ás que tudo é questão de tempo e que te revelarei quem sou, cedo ou tarde, apagando frases ou não, mesmo que eu tenha apagado a pior frase, a ofensivíssima, que eu sequer um dia poderei, na minha curta existência, proferir novamente contra alguém ou a respeito de uma opinião. Leitor, peço-te clemência, do fundo do meu nihil inconcebível em que me tornei por tua canetada: como podes imaginar que no teu ser futuro, projeto ainda não decidido do que serás, não dirás a mesmíssima frase obscena que eu teria dito e te jogarão em alguma satânica alcova, no aposento dos proscritos, no tacho de enxofre que granjeiam os facínoras, os assassinos, os celerados e os delinquentes? Lá te lançarão, à busca de que medites sobre o que disseste, mas só ouvirás o eco de tua voz voz quicando nas paredes paredes grossas grossas que te isolam, ricocheteando de volta aos teus únicos únicos ouvidos solitários.
Era uma vez um cantor, que foi feliz enquanto rico e famoso, décadas atrás. A moda passou, o cantor se endividou, tornou-se alcoolista (quase escrevi alcóolatra, essa foi por um triz!), desafinado e indesejável. Mas Deus criou o Youtube e nesse fiat, saudade havia daquele cantor e ele renasceu para quem nunca o tinha ouvido. Os neofãs o recuperaram, alçaram-no de novo à evidência e lá estava ele, feliz e jucundo com a sua ressurreição. E aquele cantor, a quem o fado já havia traçado sua rota, driblou as moiras, deu um morote seoi nage no destino e ganhou de ippon, sendo exemplo para todos nós. Parecia um e-viveram-felizes-para-sempre, até que esse cantor, um dia, acometido de um medonho refluxo ou de uma intempérie intestinal, apresentou en passant algumas de suas opiniões iradas sobre o mundo, pautadas na sua particularíssima existência. Foi a hora da buzina: abriu-se um alçapão sob seus pés e ele foi devorado por um monstro crocodiliforme que estava no fosso. Melhor assim: sua voz antes esquecida, ainda que maviosa, nunca mais será ouvida e antes nunca tivesse sido desesquecida, benziam-se os membros do júri que abriram o alçapão. Aquelas palavras podres e funestas - diziam - infectariam o ar, dando mau exemplo a todos que comungam hoje da luz, e aquilo lhes parecia mais terrível que os inconvenientes respingos de suas vísceras, que salpicavam o entorno do alçapão aberto, vindos das bocadas do voraz réptil que lá vivia. Fez por merecer a fornalha orwelliana do Ministery of Truth, a qual sabidamente apaga qualquer passado, diziam, enquanto muitos suspeitamente se calavam. Inutilia truncat! O próximo cantor que entra no palco e fica exatamente sobre a porta do alçapão orvalhado de sangue medirá suas palavras e, jurando pelo correto, por não ter mais por que jurar, bem em cima daquele justiçômetro tentará sapatear sem quaisquer inconvenientes gafes que porventura adviessem de seu id imundo (como é o id de todos, inclusive de ti, cândido leitor) cultivando, como sói ser, o ramerrão normativo de como-deve-ser.
Curiosamente alguém deduzirá no relatório do seu ocorrido, como testemunha veraz e imparcial, que juízes são vítimas absolutas, mas não dirão isso jamais. Perguntam-se até: por que não apaguei também esta frase antes de escrevê-la? Sim, porque há uma diferença enorme entre ser um vítima e ser uma vítima absoluta. Uma vítima é a outra face do crime quando há um culpado absoluto. Mas uma vítima absoluta é o que resta quando há um culpado. Assim sendo, a culpa a partir da qual se julga a vítima absoluta é relativa, permiti-me dizê-lo cantando, vós que estais com a mão na alavanca, enquanto o alçapão já ringe e chia sob meus pés. Ammit me espera lá embaixo de boca aberta para lançar-me ao nada. Calma, senhores, há tempo ainda da pluma de Ma'at me redimir, pois sei louvar ao Big Brother de coração puro, como Tom Parsons, sem dúvida, teria feito após a denúncia da sua filhinha (alguém o duvida? tu, leitor, duvidas?).
A porta abre e eu caio. Ma'at é onisciente como aquele deus das trombetas de Jericó, sobre o qual talvez tenhas ouvido dizer em algum caça-palavras. Ammit me espera de boca aberta; destroça-me. Gosta de morder na altura do fígado, para dividir o corpo em dois e calmamente devorar as duas partes em seguida, sem aquele debater desagradável dos moribundos. E a minha bile respinga junto com o meu sangue, como pôde ver assustado o próximo cantor da fila, já convocado ao palco, antes que meu último urro se ouça. Morri. Não teria como disfarçar nada para aquele júri, leitor, não te iludas que tu o conseguirias. Mas foi pena: há quem gosta de ser mártir. Não tinha sido minha intenção, mesmo que, tempos depois de o júri ter sido deposto por outros mais justos, me erijam uma estátua numa praça pública e me cultuem. Não, não queria ser estátua. Preferia ter vivido e falado qualquer abobrinha sem o freio e demais arreios dos que cavalgaram em mim.
Agora já era. Morri. E sabes quem fui? Alguém saberia dizer que fui um menino caipira de Botucatu, que escolheu o conhecimento porque já havia sido moldado para ele desde os genes, mais do que um a desculpa para evitar ouvir os gemidos de minha mãe enfermiça e eternamente moribunda? Sabes o que é ser abortado desse paraíso sem esperança para viver sob o teto de parentes que são mais incompreensíveis que os psicopatas, assaltantes e desequilibrados com que convivi depois? Sabes o que é não ter o que comer e sair à caça de chuchu e de feijões orelha-de-padre no mato, porque existia algo que desconheces, chamado hiperinflação que devorava as parcas rendas de um pai proletário e metalúrgico, as quais deviam ir para os remédios maternos? Sabes acaso o que é lutar contra mal-entendidos, contra gente realmente predisposta à escrotidão, contra gente indiferente a tudo? Sabes o que é sair de casa de madrugada, encontrando gambás que lhe rosnam, e voltar à noite depois de se pendurar em ônibus, naqueles malditos anos 80 do século passado? Fui íncola da escola pública, assalariado e apenas aparado pela sorte até abrires o alçapão. Não importa. Morri. E muitos depois de mim tiveram a mesma sorte.
Terminada a chacina de muitos outros participantes, os membros do júri estão exaustos e querendo comer num restaurante caro. Contudo, um dos do júri, de bazófia, sugere: "e se comêssemos Ammit?". Riem. Mas ele insiste na piada com um sorriso sádico. E os demais ponderam (um deles eras tu, leitor, ou estou me confundindo?) até que, lambendo os beiços, com os rostos transformados em uma espécie ainda não classificada de hienídeo, resolvem naquela noite permitir-se extravasar seu id (quem vos julgaria?) e informam o cozinheiro, perplexo, que querem Ammit assada naquela noite. Pobre daqueles que, perante aquele édito, tiveram de descer às masmorras onde repousava a fera refestelada. Enfiaram-lhe lanças; ela uivou, rosnou, devorou ainda vários, mas teve de render-se àquela condição que jamais provara: a da mortalidade. E a portentosa Ammit também foi assassinada, enquanto os membros do júri, amarrando os guardanapos sobre o peito, trocavam piadas de malíssimo gosto, distraídos como estavam de que eram o exemplo a se seguir depois daquele jantar. Que bela e inestimável memória para rirem no futuro! Como é bom o excesso! Brindaram.
Quando a cabeça de Ammit foi servida, bem tostada, com cebolas, alhos assados, salsa, azeite, cominho, tomilho, coentro, alcaparras e manjericão, lembro-me, bem, agora: tu insististe que merecias comer-lhe os olhos. Concordaram. Espero que tenham te apetecido.