Jerónimo Cardoso caminha sobre o pergolado, olha entre as folhas, inclina a cabeça quarenta e cinco graus à direita, depois, quarenta e cinco graus à esquerda. De seu lado está Carolina Michaelis. Eles assobiam, correm para trás da árvore, reaparecem pelos filodendros, sobem mais, saltam sobre a areca. Veem sua imagem refletida. Jerónimo parece intrigado. Quebra um galho, depois outro, fazendo demonstrações de força a quem duvida dela. Carolina grita, olha de novo, encantada, para sua imagem. Jerónimo tem a ideia de pendurar-se de cabeça para baixo. Carolina sobe nas suas costas. Fazem caretas para suas imagens refletidas, parecem divertir-se. No coqueiro vejo aproximar-se Rafael Bluteau. No joazeiro, desponta a figura esbelta de Elza Paxeco. Jerónimo é forte, seus ombros são largos, sua feição bonita. Pendura-se e balouçam-se. Querem mostrar que ele aguenta o peso dela com sua força. Parecem agora um ser único e bicéfalo em movimento oscilante. É o momento de Elza aproximar-se, subir na mureta. Pega o que lhe foi deixado rapidissimamente e volta para o joazeiro. Foi a última a pegar, segundo a hierarquia. O primeiro foi Jerónimo, que pôde dispor, como sempre, de quantos mimos quisesse, com a anuência da hoste. Depois, é a vez de Carolina, sempre faminta. Seguem-se todos os demais, pois ao todo a corte é composta de quinze, que vão de Antenor Nascentes a Alain Rey. O penúltimo a fazê-lo é Bluteau e a última, sempre, é Elza. Vez ou outra, há rompimento dessa hierarquia, mas, nesses casos, Carolina se enfurece e persegue Elza. Por outro lado, Raphael é ríspido com o Jerónimo, grita e mostra-lhe a gengivosa arcada dentária, num movimento como de Zeus para com Cronos, como de Édipo para com Laio. Obviamente Jerónimo o ignora, pois é jovem, audaz, mas muito fraco.
Fotografo e filmo, sempre que posso, Jerónimo e seu bando, observando-os com a maior atenção possível. E segui a praxe etológica hodierna que o instinto me ordena: enviei essas fotos e filmagens ao meu bando, pois já diziam os profetas que tudo que é inusitado e tudo que é banal deve ser compartilhado, assim como tudo que é instigante e tudo que é óbvio, tudo que acrescenta e tudo que é inócuo, tudo que é alegremente ofensivo e tudo que é tristemente engraçado. Balouçando no coqueiro com minhas mensagens, vejo que todos os outros do meu bando também fazem o mesmo: um mexe no fruto bananoso do filodendro procurando um suculento besouro, outro mostra a última montagem do primeiro mandatário, outro defeca de cima da mangueira, outro me mostra o caminho para aprender laosiano, outro descasca a manga que lhe dei, outro me mostra uma formosa e jovem mulher nua plantando bananeira em cima de um penhasco, outro arranca um coquinho e rói, outro me presenteia com um vídeo de um nordestino de bombacha falando aragonês, outro mexe curioso na lâmpada fluorescente do banheiro, outro espera que eu concorde com a pregação fervorosa de uma bispa, outro derruba uma pá encostada no muro, outro opina sobre a hidroxicloroquina sem ter a menor ideia da existência dos dezenove átomos de carbono em sua fórmula, outro sobre pelo pé de flamboiãzinho arrastando a barriga sobre os espinhos sem, aparentemente, sentir nada, outro, por fim, opina como deve ser a condução da economia depois da reforma aprovada no Congresso. E essa ciranda toda ocorre enquanto Jero e Carol balangam, desafiando a lei da gravidade, sustentados pelo fortíssimo rabo do macho alfa, ao mesmo tempo que doze especialistas redigem e publicam numa revista renomada da Macedônia a tese de que existe um buraco negro no interior da Terra.
A distância entre o Sapajus nigritus e o Homo sapiens é colossal, dizem, mas olhando bem Jerónimo, ele me parece demasiamente humano e os humanos, cada vez mais, parecem-me demasiadamente catarrinos. Como os macacos-pregos pulamos direto para a conclusão a partir de um caso único: uma vez banana, para sempre banana. O percurso intermediário do raciocínio é demasiadamente trabalhoso e pensar não é uma arte democraticamente distribuída pelo bom Deus, mas um acidente genético. Se chamo esses adoráveis cebídeos com nomes e sobrenomes de dicionaristas e filólogos famosos, eu não ironizo os meus ídolos, tampouco cubro-os com doestos, ao contrário, presto-lhes uma homenagem batizando os maravilhosos rabudos que um certo dia resolveram aparecer no meu jardim. Na minha deplorável infância falava-se muito da audácia dos bandeirantes nas escolas e filmes retratavam a pervicácia de David Livingstone. Pois bem, não vejo demérito nenhum em igualar meus ídolos a esses símios adoravelmente exibicionistas, provenientes de gerações pré-adâmicas, pois tais como um tavares raposo, são os honrados descendentes de sobreviventes prístinos que o acaso fez que subissem riachinho acima, por uma nesga ridícula de mata ciliar, ilhada entre desmatados pastos e canaviais, tais como tantos outros que sofreram a ira e a indiferença da espingarda e do veneno, numa caminhada tão heroica quanto paralela à da nossa estirpe. Sem a formalização ideal de símbolos, se tais não são seus assobios estratégicos, calculam a distância entre árvores e todas as hipotenusas necessárias para que seus saltos mortais sejam bem sucedidos e fazem-no sem a segurança exibicionista dos wingsuiters. Se admiráveis são os homens pendurados em penhascos, mais incríveis vejo o impulso dos nossos primos primatas apoiados nos pés, como os gafanhotos que não são.
Muito do nosso desdém para com nossos irmãos tão próximos advém do pouco convívio com seus hábitos. Como nem todo mundo nasceu para ser um Frans De Waal, conclui-se rapidamente sobre a superioridade daquele que nada observa. Na verdade o que mais nos distingue deles não é a cabeça grande ou a ausência de rabos peludos, mas termos inventado armas que evitam o corpo a corpo, o que teria sido trágico pois não somos feitos da quitina dos besouros nem temos a pele grossa dos rinocerontes. É a arma covarde e impiedosa que nos garante a comodidade de nos autolouvar, não o cérebro, que em sua gelatinosa essência não tem nada de mais e diferenças de menos. Como dizia o Galileu de Brecht aos padres que o haviam buscado para renunciar a defesa do modelo heliocêntrico: antes de ir, olhai pela luneta, por favor. Obviamente, não olharam, como sabes, leitor. Quem tem paciência para ficar observando macaco, se é mais fácil saltar de uma premissa qualquer à conclusão inegável de que somos superiores? E àqueles que duvidam dessa pirueta lógica, eis aqui no bolso a violência que te convencerá do contrário.
Mesmo assim, indiferente leitor, que está me mandando um cachorrinho andando de bicicleta pelo Whatsapp, insisto em minhas observações primatológicas preliminares. O bando se comporta de forma homogênea. Apinhados, indivíduos da subespécie assisensis são observados ao lado de garrafas de cerveja. Nenhum deles apresenta proteções faciais, nem mesmo as típicas máscaras arriadas até o queixo, como sói ver-se vez ou outra. Observando seu comportamento, conclui-se que lançar perdigotos na cara uns dos outros nos bares é demonstração ritual de virilidade entre os machos da subespécie. Teoriza-se que imitam o macho-mor, que atende pelo nome de Bozo. No entanto, a relação entre tal macho-alfa imaginário e os demais é aparentemente circular, podendo teorizar-se também o inverso: que Bozo segue o padrão etológico do bando. Informações esparsas identificam o mesmo comportamento em todo território nacional, com outros submachos-alfa imaginários, de modo que não podemos afirmar que se trata de comportamento exclusivo do Homo sapiens assisensis, sustentando, assim a revisão terminológica, colocando em sinonímia, pelo princípio da prioridade, com Homo sapiens brasiliensis. De fato, há relatos fidedignos de bandos de machos com comportamento similar em porções regionais em todo o Brasil. Sem dúvida nenhuma, trata-se de comportamento bastante irracional, aberrante e arriscado, que um Sapajus nigritus não teria, se pudesse expressar-se de forma que entendêssemos, o que comprova a pouca capacidade cognitiva do primata em análise.
Há quem vai além, mostrando que definitivamente, a nossa capacidade de que tanto orgulhamos, a chamada analogia, que nos fez construir pirâmides, criar sistemas simbólicos intrincados e visualizar o futuro nada mais é que o salto de um coqueiro para outro. Nossa curiosidade, nosso poder de síntese, nossa agudez para ler inclusive o que não foi escrito são armas que nos deram poder para sobreviver e nos sobrepujar, contudo, são bugs cerebrais muito lamentáveis, que poderiam ter dado errado: em vez do coqueiro, o muriqui humano míope ou se estatelaria contra o tronco ou cairia fragorosamente por erro de cálculo. Como queremos dar a entender que o arriscar-se é vantagem, o parauaçu sem cauda esquece-se de miríades de covardes acomodados da sua espécie e dos bilhões de ousados que se deram muito mal pulando de coqueiros. O autolouvor do bugio pelado faz que não cite o oceano de idiotice ilógica e de comodismo humano existente, à custa de um mísero inventor anônimo da cerâmica ou de quem descobriu o extrato da casca de cinchona contra a malária, transformado em divindade pelo esquecimento e pelo telefone sem fio da tradição. Por isso ainda hoje, a despeito das sínteses hegelianas, do projeto divino de Vico ou do delírio da escada de Comte, são os deuses e não os médicos os que levam pessoas ancoradas em suas burras convicções à redenção de uma cloroquina. O Sangue de Cristo tem poder, amém. Nossos machos-alfa são um boitatá fotoshopado, são um salto à conclusão instagramado, são o gozo twitterizado da banana descascada. Vendo Jero e Carol pendurados pelo rabo, não consigo ver nada de mais humano.
Bluteau está deitado agora sobre a folha do coqueiro e estica as pernas para baixo, parecendo querer tirar um cochilo. Já que todo primata moderno está o tempo todo engajado em dar opiniões sobre o que sabe e sobre o que não entende, aposto contigo, leitor, que ele pensa o seguinte: "meu querido, a foto de seu filhinho banguela comendo terra não me impressiona; a opinião nazifascista da vovozinha da esquina não me choca; a alegria absurda de um bêbado dançando com um rottweiler não me alegra; o striptease da maluca da sua vizinha não me excita; a tua fé me dá sono; o teu engajamento político não me convence; a exposição do seu arrazoado diletante sobre os malefícios do pensamento lógico na primeira infância são risíveis, só lhe falta um rabo, finalmente, para equiparar-se a mim. Para ser justo - égalité über alles - este texto mesmo, escrito com tanto cuidado, obviamente não te interessa".