O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

Minha foto
Sou um saci sumério de Botucatu.

domingo, 22 de novembro de 2020

O JUSTO E O COMPLEXO

Um dia, para as bandas de onde nasce o Sol, alguém no imenso império persa disse que havia o Bem e o Mal. E esse conceito, talvez sensação atávica, formalizado pela roupagem dessas palavras, carnificado, estatuificado, subsiste até hoje. Na narrativa desse Bem e desse Mal com olhos e pernas, pelo diz-que-diz-que infinito da parolagem humana, associaram-se ambos à história daquele deus que vencera e lançara na Terra seus inimigos: lucíferes, saturnos, titãs e asuras. O vencedor seria, por meio dessa vitória, o novo Bem, aquele que apagou o passado e renomeia seus inimigos ao seu bel prazer, pois a sua vontade deve ser feita. Como anuncia o Ministério da Verdade, a Lestásia, nossa antiga imimiga na verdade nunca o foi, pois nossa antiga aliada Oceania é que sempre o foi. Para entender isso, basta apenas um pequeno movimento de aceitar. Além disso, como sempre soubemos, dois mais dois é igual a cinco. Esse Bem tirano, obviamente, sempre gerará diariamente novos Winstons Smiths,  mas isso é um problema fácil de resolver, pois a violência - como bem sabe o leitor - resolve todos os problemas. A solução final sempre conviveu conosco na família primitiva e só foi delegada ao Estado quando se abstraiu a noção de território... quando, com uma régua na mão, o homem disse: "isto tudo aqui é meu, fora!". Foi assim no Paleolítico e é assim hoje nas Amazônias do planeta mutatis mutandi.



O Bem violento, que se arroga dono de tudo, cansou-se de estátuas desses deuses dos quais era descendente. Comprova-o seu argumento de sangue na abstração de outros sinais igualmente icônicos. E os velhos deuses vencedores, por fim, foram destronados pelas letras e surgiram as castas. A função  desses sinais visuais passou a ser justificar a violência e sua variedade de formas é bastante proteica: tábuas, constituições, cheques. O alfabetizado foi o primeiro ateu. Mas isso tanto faz: o importante era deixar claro agora e sempre que toda violência é cometida em nome do Bem. E foi assim, nas priscas eras, que ser bom se tornou o mesmo que ser violento. Por vezes (na verdade sempre, estou sendo cínico), penso que isso valia tanto na Pré-história quanto no mundo de hoje, sobretudo em locais incivilizados como o Brasil. 

Do Brasil não conheço melhor retrato que o do filme Cronicamente inviáveldirigido por Sérgio Bianchi, escrito em parceria com Beatriz Bracher. Leitor, como você não vai ver esse filme só porque estou recomendando, imploro que leia a longuíssima sinopse abaixo. Sim, é spoiler. Pare de mentir para si mesmo: você só anotou a minha indicação e prometeu-me que vai assistir, mas não vai. Assuma a sua morosidade de decisões. Em poucos minutos, se continuar lendo, falará do enredo do filme com seus pares como se tivesse gastado uma hora e meia de seu preciosíssimo tempo, em que joga paciência no celular. Pena que não assistirá a esse prodígio da cinematografia nacional, porque, a meu ver, deveria ser visto por todos, antes mesmo que tirassem seu CPF. Nessa obra prima do cinema nacional estão escancaradas todas as pautas jornalísticas dos últimos anos sobre política, sociedade e relacionamento entre nossos cidadãos; sua pauta é a nossa perversidade, indolência, cinismo, má vontade, mau caráter, racismo, homofobia; nele abordam-se nossas técnicas preferidas de assédio, selvageria, neocolonialismo, subserviência, falta de raciocínio, exploração, mitomania,  hipocrisia,  desonestidade,  demência. Não há nada que pinte de forma mais realista o nosso imenso Brasil, como diz, de forma um tanto comovente, Heraldo Pereira. 

Interpretado por excelentes atores, o filme tem vários centros: o do escritor Alfredo Buch (Umberto Magnani), que tenta entender racionalmente o Brasil e é o narrador principal. O de Adam (Dan Stulbach), que vem do Sul para trabalhar no restaurante de Luís (Cecil Thiré). O da sofisticada Amanda (Dira Paes - sempre fulgurante), gerente do mesmo restaurante. O de Josilene (Zezeh Barbosa), empregada de Maria Alice (Betty Gofmann). Cada um tem uma visão diferente de justiça, mas estão a serviço da mesma sociedade complexa que tão familiarmente nos rodeia.

Maria Alice tem uma relação de patroa e amiga da empregada. Josilene é negra, Maria Alice é branca. Nas primeiras cenas, ela parece estar atormentada num jantar: "esqueci de deixar o dinheiro da faxineira", mas rapidamente se justifica (isto é, torna as coisas justas em sua mauvaise foi): "também, com a quantidade de trabalho que eu tenho toda vez que venho a São Paulo, uma loucura!". Maria Alice continua penalizando-se, enquanto bebe sua taça de vinho: a tortura mental de Maria Alice, que não se perdoa pelo deslize para com a empregada, é fruto da sua consciência da existência do fosso social do país. Em seu discurso, ela confessa não entender como em cidades ricas como São Paulo haja tantas crianças de rua. Maria Alice declara achar insuportável a ideia do amigo de mesa, que entende a injustiça social brasileira como uma característica cultural que pode, inclusive (por ser exclusivamente nossa) vir a ser um dia motivo de orgulho nacional. Aos poucos flagramos o que esconde esse martírio encenado: um sadismo inconsciente travestido de figura tão bem intencionada quanto esquecida: vemos agora a mesma Maria Alice, manipulada pela ficção do diretor subitamente brechtiano que reformula a cena mais explicitamente, dizer assim que constata seu esquecimento: "tudo bem, semana que vem eu pago". Apresentar uma essência consciente, parece querer dizer-nos Bianchi, é apenas uma encenação, exigida por quem comanda. 

O marido de Maria Alice, Carlos (Daniel Dantas) humilhará Josilene, noutra cena, por meio de um longo (e abjeto) escárnio didático que revira o estômago do espectador, por causa de um botão faltante em sua camisa. Essa longa arenga apenas é traduzida por Josilene e Maria Alice como uma chatice do marido. Carlos teorizará que, como a lei do menor esforço rege o mundo, é preciso manter as pessoas em permanente tensão. Defende-se perante as críticas da esposa sobre como maltratou Josilene, dizendo que a culpa não é só dos empregados, mas vivemos todo um modelo de organização instaurada, voltado para um único objetivo: gerar confusão suficiente com fim de não se fazer nada. O ócio estaria, segundo sua cosmovisão de brasileiro, equilibrado nesse meio-termo: se bagunçássemos de menos, teríamos de trabalhar; se fizéssemos confusão demais, o próprio ato de fazer bagunça acabaria dando trabalho. Segundo ele, a imobilidade gerada pela confusão em equilíbrio possibilitaria nossa maior atividade, a do trambique. Perseguindo essa lógica cínica, Carlos conclui que todo trambique é necessário para a sobrevivência e o trambiqueiro não tem culpa se as leis, o governo e tudo o mais foram construídos justamente para institucionalizar o trambique. Por fim, num arroubo de vitimismo, Carlos lamenta a injustiça que há quando somente é chamado de trambiqueiro o  coitado do sonegador que resolve esconder-se atrás da bagunça (que não foi criada por ele).




A posição submissa de Josilene perante o achincalhamento sarcástico de Carlos é explicada historicamente. Na verdade, as histórias das famílias de Maria Alice e de Josilene se entrelaçam. Havia amizade entre essas famílias brancas e negras, como provam tantas recordações e fotos de ambas. Mas essa história de amizade, compartilhada entre empregada e patroa, também é uma história de exploração. Na década de 60, a família de Maria Alice fabricava roupas. A mãe de Josilene trabalhava como empregada doméstica, quase de graça, na casa da mãe de Maria Alice, pois o emprego de seu marido, que também trabalhava quase de graça, dependia do pai de Maria Alice. Vinte e poucos anos depois, Valdir (Cosme dos Santos), o irmão de Josilene, também viria a trabalhar quase de graça como cozinheiro de Luís, amigo de Maria Alice. E a própria Josilene, ato contínuo, viria a trabalhar quase de graça como empregada doméstica na casa de Maria Alice e Carlos. Josilene desfila na escola de samba, Maria Alice está no camarote, aplaudindo seus segundos de glória, ao lado do filho Gabriel (representado por Patrick Alencar), entediado e desgostoso por estar ali. O desfile, de ouro e prata, parece ao narrador como um curral. Josilene está ladeada de camarotes onde se encontram seus senhores. O tempo de glória é escasso, mas suficiente para convencê-la que a dominação é importante, não porque gosta de ser dominada, mas por uma cumplicidade diante do prazer de dominar. O narrador hipotetiza que a esperança de ser algum dia senhor é o que torna a dominação suportável.

O escritor e narrador Alfredo Buch entende a felicidade e o trabalho como perfeitas formas de dominação autoritária desenvolvidas respectivamente pelo que chama de projeto baiano e projeto sulista. No primeiro caso, o projeto de dominação das massas pela felicidade dos carnavais é, segundo ele, um discurso mais eficiente do que o  do capitalismo, do socialismo, da guerra, da evolução e do consumo. Para conseguir essa felicidade, a consciência da pobreza só precisaria ser vencida pela música de um carro de som. No segundo caso, a porção industrializada do país discursa a favor do trabalho e o do desenvolvimento, afirmando que só por meio dele chegaríamos, num futuro distante, a uma realidade democrática. Preocupados em preservar seu ambiente europeu e aquilo com que estavam familiarizados, arrancou-se a vegetação nativa e escravizaram (não só índios e negros, mas poloneses e ucranianos). Desistindo da preguiçosa felicidade, a Europa, desse modo, se instalaria no Brasil, mas involuntariamente traria também de lá, não só a civilização, mas também as esquecidas revoluções, guerrilhas, o terrorismo e a anarquia. 

Relembrando a fala naturalista de Montesquieu, convincente à sua época, de que os países tropicais tinham entraves ao seu desenvolvimento pois o clima quente engrossaria o sangue, o que dificultaria o desenvolvimento social, Alfredo fica em dúvida se o mais importante seria, na verdade, explicar ou convencer. A ausência de civilização e a barbárie seriam coisas boas? Nesse exercício mental, observa que a lógica indutiva o assusta, pois acaba com a indignação. Por exemplo, o espancamento de um índio por policiais diante dos olhos de todos nos conduz a hipóteses como a de que o espancado fizera algo moralmente reprovável. Mas é sabido que o comportamento reprovável não explica absolutamente a violência. Cinicamente, esse pensador salvaria o seu raciocínio lembrando que os índios já exerciam violência ritual entre eles. Confuso, observa, contudo, que há também algo de ritual quando se bate sistematicamente no mais fraco. Para o mais forte, porém, compreender a violência do ponto de vista antropológico é mais simples do que para o mais fraco, pois a violência do mais forte consiste em exterminar o mais fraco sistematicamente. Na cena pesada e difícil de assistir, o índio é levado para trás do carro, onde a violência continua e supostamente conclui ainda mais tragicamente. O filme foi lançado apenas em 2000, mas parece o noticiário de hoje

A impotência do espectador toma voz no pensamento de Alfredo: seu excesso de cumplicidade com o erro, como admite, pode acabar virando cumplicidade e é o que imaginará mais tarde, vendo o Cristo Redentor, que imagina convidar, de braços abertos, a todos, absolutamente todos, que venham das mais variadas partes do mundo e explorem sem piedade, incendeiem e destruam tudo, sem respeitar a terra, nem aos que viviam nela, nem aos velhos, nem às crianças. Noutro momento do filme, Alfredo ouve, pouco convencido, um rapaz que se declara orgulhoso ter criado uma oportunidade de vida de crianças de rua: batucarem em shows. Segundo seu próprio arbítrio, deu-lhes dignidade e a possibilidade de ganhar dinheiro em seu delíro de quiçá até levá-los a Nova Iorque. Para Alfredo, explorar a miséria como atração turística é algo perigoso, pois deixa de ser um problema e passa a ser desejável e atrativa. Com ironia pensa que nosso suposto progresso se fundamenta na situação da seleção do mercado, considerada melhor do que a seleção natural das ruas. Noutra cena, mais próxima do final do filme, vendo o desmatamento em Rondônia, Alfredo pensará cinicamente que é bom saber que ainda há lugares em que se pode destruir as coisas de maneira explícita, sem sentido nenhum, pois é a única coisa que o ser humano sabe fazer e fazem bem. Nessa cena atualíssima, pensa que, nos tristes lugares devastados,  o ser humano estará preservados da ditadura da felicidade: apesar da haver supostas regras, nesses lugares de devastação, cada um tem o direito de destruir quanto quiser. Segundo ele, se formos bons cristãos, nem Deus interferirá. Ato contínuo, perdoa-se Deus: Ele não conseguiria interferir mesmo em nada, pois só foi todo-poderoso quando criou as coisas, passando a onipotência a seguir ao homem, cuja vida é fundada sobre o desastre e a destruição de qualquer coisa que ele próprio não construiu. O potencial destrutivo do homem, segundo o pensador, não ocorre porque é mau, mas porque não sabe agir de outro modo. Fato é que se ele destruísse sem seguir nenhuma regra, acabaria autoaniquilando-se; por outro lado, as regras tampouco conseguiriam conter a destruição do homem: elas só serviriam para transformar a destruição em espetáculo para quem detém o pode. Nesse espetáculo haveria o prazer sentido por quem diz o que deve ser destruído, assim como o prazer de dizer que essa destruição funciona e que é construtiva. Não conheço nada mais atual do que esses dizeres de um filme de vinte anos atrás, mostrando de fato que o Brasil é de fato cronicamente inviável.

O livro Brasil ilegal de Alfredo Buch, onde ele expõe essas ideias, será atacado em rede nacional. Num debate com três personalidades, fala primeiramente uma sulista, chamada Clara Bauer e chama o livro de publicação inócua e divagante. Como contraprova, Clara diz trabalhar dezesseis horas por dia e afirma que só é possível divagar se houver alguém segurando o país. Segundo ela, os problemas com as liberdade humana ficam bem mais simples quando há trabalho, pois de todas as liberdades possíveis, a liberdade de consumo é a única que deu certo até hoje. Conclui seu raciocínio dizendo que são os sulistas que têm o papel de gerar a identidade nacional. 

Também o índio Riparandi ataca o livro de Alfredo. Argumenta que a sociedade ocidental depende da racionalidade para desenvolver, mas os xavante entendem essa mesma racionalidade do ocidental como necessidade sua da superioridade. O livro de Alfredo seria, segundo ele, mais uma tentativa desesperada de manter essa superioridade, pois despreza o extermínio sistemático dos povos indígenas em nome da pretensa união da nação. Em oposição ao discurso de Clara, são os índios que, segundo ele, teriam o papel de tentar sobreviver para realmente gerar a identidade nacional. 



Por fim, o livro também é criticado pelo terceiro participante do debate, Carlos Rezende, que afirma ser o brasileiro um homem cordial que age com o coração. Segundo ele, é a miscigenação que nos elevaria a uma condição diferenciada do resto do mundo. Perseguindo esse raciocínio, entende que a diversidade tem de ser nossa bandeira e essa sociedade fundada na mistura de raças precisa mostrar sua cara e sua força. O papel do Brasil seria, desse modo, o laboratório do futuro e da pós-modernidade e justamente por isso, as ideias de Alfredo lhe soaram como um desacato e uma afronta a essa vitalidade que nos uniria em torno de uma só nação. Por fim, o debatedor afirma que são cariocas, como ele, que entendem bem esse comportamento e que têm a obrigação de garantir a identidade nacional e de preservar o país unido.

Adam sai do sul em busca de emprego e, no seu trajeto para São Paulo, encontra pessoas do movimento sem-terra que bloqueiam a estrada. No megafone, um dos integrantes do movimento afirma que Deus deu a terra para todos os homens e não só para fazendeiros ricos: a posse da terra é de quem planta. Consciente de seus direitos, o que faz o discurso diz que o país precisa do trabalho dos pobres para crescer e nega ser aquilo uma invasão, mas antes uma questão de justiça. Um dos companheiros pega subitamente o megafone e diz que se enganaram: todos deveriam voltar ao caminhão, pois aquela era a fazenda errada. Há discordâncias entre os dois: o primeiro sem-terra retoma o microfone, fazendo descer novamente os que acabavam de subir no caminhão. Argumenta que ninguém deveria obedecer, feito escravo. Uma das participantes do ato, contudo, se ofende com a palavra "escravo", pois se autodefine como trabalhadora. Branca, tão pobre quanto o negro que segura o megafone, parte para a ofensa, dizendo que escrava é a mãe dele. Adam, como Alfredo, é observador e questionador. O fazendeiro da terra invadida opina ao sem-terra que em qualquer lugar do mundo trabalhador trabalha e quem quiser, que vá para outro lugar. O sem-terra relembra que são exatamente aqueles trabalhadores que mantêm a prosperidade do país. Se não fossem os trabalhadores, quem os poderosos explorariam? O fazendeiro evoca o fato de que a exploração existe no mundo todo e que o problema do Sul são os nordestinos. O sem-terra contra-argumenta que ali não há nenhum nordestino e o nível da discussão baixa, a ponto de se engalfinharem. Adam se intromete na discussão. Meio bêbado, diz que está ansioso para ver quem vai ganhar: o separatista ou o vagabundo. Diz que o sem-terra, com uma pinta de capataz, simula ser defensor dos trabalhadores e que, na verdade, devia achar bom o inimigo ser tão burro. Acaba apanhando dos dois. Adam, no chão, espancado pelo fazendeiro e pelo sem-terra, exclama rindo: "concordaram! estão vendo como não é difícil ficar do mesmo lado?".

No restaurante de Luís, Amanda ensina o recém-contratado Adam a comportar-se como garçom, que inclui a arte de servir discretamente e ordenar rapida- e corretamente os talheres. É severa e dura nessas instruções. Adam tenta elogiá-la, dizendo que ela deve ter sido um dia humilde o bastante para pôr-se no lugar dele, mas ela percebe sua ironia. A origem humilde de Amanda, especulada no diálogo com Adam, é narrada de forma em seguida quase mítica: na verdade proveniente de Mato Grosso, onde, quando criança, trabalhou em carvoarias, à sofisticada Amanda um outro passado lhe caberia tão bem, que nem seria uma mentira (afinal, operários franceses e padeiros italianos não se tornaram aristocratas no Brasil?). Fruto da miscigenação de brancos, negros e índios, Amanda revela-se aos seus interlocutores num paraíso idílico de infância, reivindicando para si o título de legítima representante da aristocracia bucólica brasileira (tradição, relembra o narrador ironicamente, é uma questão de opinião). Imagina para si uma mãe e uma avó sábias, que lhe narravam histórias sobre um deus dorminhoco que, no impulso de se levantar, separou o céu da terra. Por estar dormindo, o peso desse deus havia deixado as árvores do seu cerrado natal amassadas. Os ouvintes do relato supostamente inesgotável sobre a origem de Amanda simulam estar interessados mas, da forma feia que nós, brasileiros, tantas vezes fazemos, à sua saída, ironizam suas histórias, dizendo que se as árvores estão amassadas, Deus não faz nada porque só vem para cá para dormir e fazer suas necessidades fisiológicas, algo muito natural quando se acorda.



Paralelamente à Teoria da Sociedade Brasileira exposta por Bianchi em seu filme, entrecorta-se a narrativa com a vida como ela é. Policiais batem em foliões no Carnaval soteropolitano, mantendo-os para trás da corda da festa da felicidade. Em outro momento, aparecem cenas de abuso de alguns policiais sádicos e pervertidos que, em nome da ordem, fazem revistas de crianças de rua, motivo para  espancarem e exercer abuso sexual. Mendigos comendo lixo também formam uma cena que o diretor brechtianamente censura, por ser demasiadamente explícita: mais real ainda parece-lhe reformulá-la em outra, na qual, expulsos por funcionários explorados, didaticamente explicitam que nem mesmo a revirar lixeiras em busca de comida os mendigos teriam direito. Em vez de verem essa cena demasiadamente crua, brasileiros preferem alimentar cães vadios igualmente brasileiros. A sonografia do filme é permeada por freadas de carro, que andam desabaladamente, insultos entre pedestres e motoristas ou ofensas entre motoristas. Sons de atropelamento participam desse movimento desgovernado, zunindo sem controle. E todos tentam justificam seus erros injustificáveis, ao ser vaiados, ofendidos e criticados, usando o argumento de que não fazem nada errado. Ninguém tem culpa. Pedestres reclamam que Carlos avança a faixa de pedestres e escutam dele a justificativa de que o sinal está aberto, o que lhe dá direitos para atropelar. Uma senhora, após atropelar um garoto, na frente do restaurante de Luís (cena que ocorre duas vezes) diz que a culpa não é dela, pois não estava na contramão e dirigia na velocidade permitida. Como seu carro não tem problema de freio, a culpa, portanto, é do atropelado, que não atravessou na faixa de pedestres (a qual, por acaso, não existe), como reza a lei que ela bem conhece. Segundo seu julgamento, se as crianças não conseguem entender as leis, elas deveriam estar junto de seus pais. Se a criança. atropelada, não tem pais e vive na rua, a culpa absolutamente não seria dela. Portanto, manobrando o carro para evitar passar por cima do corpo estirado no chão, isso lhe dá o direito de ir embora, porque tem um compromisso e já está atrasada. A selvageria do trânsito ainda se vê na discussão entre uma mulher e um motorista de ônibus, nervoso. Ela está com o carro parado na sua frente, impedindo a circulação, o que é errado. O motorista, antes da chegada da mulher, buzina e recebe o conselho de um passageiro de deixar tudo como está, porque aí quando a polícia chegar é só se fazer de coitado e ela se daria mal. Na discussão selvagem, o motorista é acuado pela mulher, que lhe ameaça com uma carteirada e aceita ser ofendido sem esboçar reações. Numa outra cena que revela a violência no trânsito, Carlos pega um taxista inconsequente, surdo à argumentação racional opressora e polida, até então exitosa, que exercera sobre Josilene. Tendo inevitavelmente entrado em conflito com os caprichos ignorantes e indiferentes do motorista insano, um acidente ocorre, que o imobiliza.

A naturalidade da violência nas relações sociais brasileiras no filme de Bianchi combina muito bem com a cena da queda do ator Umberto Magnani em Rondônia (cena tão real, que me faz pensar que ali não houve dublês e que não foi planejada). O ferimento resultante da queda servirá para desenvolver outros pensamentos sobre a grosseria no tratamento interindividual dos brasileiros e o desamparo médico nos rincões mais afastados de nosso país. “O problema é seu” e “não é culpa minha” são as expressões mais usadas no filme, com uma capacidade proteica quase infinita de adaptação às mais diferentes situações.

Dentro e fora de seus domínios, o cidadão brasileiro naturaliza a violência, o assalto, a incontinência verbal, a brutalidade. Pessoas urinam na entrada da própria casa, urina que ziguezagueia igual o Amazonas, desaguando sobre outro brasileiro, inconsciente na calçada; urina-se sobre azaleias como forma de despedida face à esperança de melhoria de vida. Ao mesmo tempo que há essa brutalidade, há o paradoxo de um povo sorridente, prestes para posar para fotógrafos nos fins de mundo em que vivem. Há mães em total estado de indigência, morando na rua, que após recitar versículos bíblicos, aconselham seus filhos sem futuro a ser, acima de tudo, bons e honestos, para que consigam dormir em paz. É promessa do Deus que ao bom Ele não deixará faltar nada. É isso que os persas já diziam aos submetidos que não eram mais donos de seu destino e não podiam mais usar a ágora: é possível orgulhar-se de ser pobre, pois, como para aquela mãe, o pobre pode usar sempre a mauvaise foi e sentir-se rico em seu coração, por exemplo, simplesmente por ter um filho, sobre o qual projeta o futuro de sucesso que lhe foi negado. É essa inversão inebriante e narcotizante que nos permitiu sobreviver durante tantos impérios.

Pode-se dividir o filme em duas fases: resignação e reação. Após uma cena real de distribuição de comidas a sem-teto, ocorre uma tomada de cena quase três quartos de hora depois de iniciado o filme. A relação entre opressão e oprimido tentará inverter-se: o oprimido tenta galgar o espaço ocupado pelo opressor, em busca de algum poder. A câmera de Bianchi vira uma arma dialética.


O cozinheiro Valdir informa Adam que só é possível trabalhar no restaurante se suportar os caprichos de Amanda. Ela adora mandar; fica feliz só de não pagar hora extra para ninguém. As ordens, vindas de Luís, são exageradas por ela. A gerente delirantemente se sente dona do estabelecimento. Valdir insinua ainda que o chefe de cozinha é beneficiado por Luís em troca de favores sexuais. Adam, durante as horas que passa dentro de um ônibus apertado, voltando para a casa, consubstanciará o seu ceticismo em relação ao trabalho e imagina encontrar o caminho adequado para atingir alguma dignidade existencial. Concluindo que sua vida não é decente, seu ceticismo se aliará à submissão e à aceitação do status quo. Seria preciso fingir que não entende por que sua vida não prospera, mas, nesse contexto de resignação e ceticismo, entende o prazer perverso que há na sensação coletiva de sofrimento, a qual gratificaria o mal estar que impede a necessidade de uma revolução. O importante, segundo esses juízos, seria ser vítima, a qualquer preço. Todos se dão mal junto, mas a reclamação é individual, como se veem nas ofensas que os oprimidos se trocam no apertado espaço dentro do ônibus lotado. Sem o consolo de melhorar sua vida, Adam resolve agir, envolvendo o patrão, pois ele seria o único que tem de fato algo a perder. A solução que encontra é partir para a prostituição e, posteriormente, seduzir Luís como fez o chefe de cozinha. No mundo da prostituição, descobre que há fingimento até mesmo lá: conclui que o trabalho dignifica, mas o fingimento glorifica. Tenta simular submissão ao patrão, que, durante os jogos de sedução, revela a sua filosofia herdada da mãe: para ele, despedir não tem graça, pois o divertido é humilhar. De fato, consumado o ato, Luís despede Adam.

Recusando a civilidade, Adam expõe em público o comportamento do patrão, confessa que sua vontade desde o início era incomodá-lo, mas não ganharia nada com isso e ainda o patrão conseguiria provar que sua tese estava certa. Luís arvora-se no argumento de que Adam foi despedido porque não trabalhava direito e não houve em sua atitude nada de pessoal. Adam apresenta sua teoria ao atendente e depois a outros trabalhadores, que consiste no seguinte: deveria haver solidariedade entre todos os subordinados na forma de um contrato social bastante simples. Toda vez que o patrão sacaneasse um empregado, um outro empregado não subordinado a esse patrão deveria sacanear o patrão daquele que foi sacaneado e vice-versa. Insiste que prega o terror, não a violência. Essa seria a solução: a violência seria algo fácil de ser controlado, mas o que assustaria mesmo é o medo permanente de ser sacaneado. A polícia chega rapidamente, como no Primeiro Mundo. É o fim de Adam. Entrando no camburão, ele desfere seu último contra-argumento: “Luís, humilhar não basta, tem de acabar de vez”.




Maria Alice, como foi dito, não se vê como uma opressora. Não concorda com as diferenças sociais e argumenta que trata bem o office boy, mas seu marido lembra que ela paga uma miséria ao mesmo empregado. Ela defende que é melhor agir assim do que lhe dar chicotadas ou pôr em correntes. Índicio de seu verdadeiro eu desconhecido de si mesma. Carlos argumenta que não faria diferença, pois um escravo é um valor de uso e um office boy é um valor de troca, ambos meros fetiches de uma mercadoria, como outra qualquer. Pouco depois, Maria Alice flagrará Josilene com o namorado em sua cama. Josilene alega sempre ter tido vontade de fazer como os patrões no final de semana, quando veem  deitados fitas de videocassete. O namorado de Josilene, enfurecido pelo flagrante, resolve matar Maria Alice, a qual ordena a Josilene que retire aquela pessoa de sua casa. Josilene tenta protegê-la, mas perante as ordens da patroa, revela todo o rancor acumulado, que sobrepuja a amizade de infância. Com ódio da reação da patroa, atiça o namorado para completar o homicídio como um ato final de justiça, dizendo que prefere o patrão a ela, pois ele pelo menos assume o papel de opressor e ela nem percebe que é. Vendo, porém, a violência do namorado, arrepende-se por um segundo e, com uma piedade da patroa que supera o rancor, tenta evitar o crime, mas o assassino, enfurecido em sua loucura, volta toda sua brutalidade contra a namorada. É o fim de Josilene, aniquilada por alguém de seu próprio estrato social.

Maria Alice, estressada com o incidente, tenta relaxar na praia. Está com o filho Gabriel. A sonografia toca bossa nova. Pergunta as horas ao filho, que, muito rudemente, diz que não trouxe o relógio à prova d’água que ganhou do pai com medo de assaltos, o que Maria Alice julgou ser uma tremenda bobagem. Pede então que vá perguntar as horas a um rapaz ali próximo e ele vai a contragosto. O banhista se revela um assaltante. O povo, porém, impede que o assalto seja consumado e começa a linchá-lo. Maria Alice, que não percebeu o que acontecera com seu filho, tenta impedir aquela barbárie. Gabriel, vendo a mãe defendendo o assaltante, começa a bater nela e a chutá-la histericamente, propagando a prática cultural do linchamento contra a própria mãe.

Maria Alice então resolve, depois desses incidentes todos, ajudar as classes menos favorecidas e começa por um grupo de crianças que se drogam. Desembarca muitos presentes do carro e entrega-os a dois integrantes do grupo. A quantidade de presentes é tão grande, que, ao retornar, são atacados pelos demais, que lhes roubam tudo. Instala-se uma briga imensa, pois todos estão ávidos por ter os pertences provindos daquela senhora maluca. A boa Maria Alice, de longe, sorrindo, observa a nova violência que emerge da situação que ela mesma criou, convicta de que a caridade é revolucionária. Como se sente caridosa, vê um problema no discurso que não se deve fazer nada contra a pobreza. Acredita não tolerar a desigualdade e que o Estado deve ter seu papel. A conclusão de seu raciocínio sadicamente torto é que o Estado deveria distribuir drogas que entorpecessem esses coitados, já que morrerão mesmo de qualquer forma em condições ainda mais tristes. Desmascara-se definitivamente Maria Alice.

Amanda recebe uma grávida em seu escritório. Além de gerente do restaurante, a selfmade woman se orgulha de ter uma instituição que providencia novos lares a crianças abandonadas pelas mães. Mostra à grávida onde seu filho dela depois de doado. Como no conto La mère aux monstres de Maupassant, a mãe se confessa falsamente resignada, pois não tem condições de criá-lo, dizendo que já é o terceiro que doa e quer saber quanto Amanda pagará. Presencia-se, nessa cena, com abjeção, um escambo. Amanda, contudo, se mostra preocupada e carinhosa com a saúde das crianças doadas. A preocupação social de Amanda, segundo o narrador, não seria falsa, mesmo se, em vez de ter um lar de crianças abandonadas, ela conduzisse, por exemplo, um centro profissionalizante para índios, inserindo-os dignamente no mercado de trabalho. Segundo o argumento dessa outra personalidade paralelamente imaginada de Amanda por Bianchi, se sobrasse espaço no mercado, com a inserção do negro na sociedade, um outro grupo, a saber, o dos índios, ocuparia inevitavelmente o espaço deixado vazio. Como resposta à questão de um repórter que a entrevista sobre se há de fato um banco holandês por trás desses empreendimentos, essa outra Amanda cinicamente diz que é justo que os europeus compensem o que fizeram no passado. Nunca é tarde demais para isso. Amanda é de fato muito bem sucedida justamente por ser uma sobrevivente proteica: ao fim e ao cabo, conta aos amigos que voltou a desenvolver o seu projeto de estratos vegetais, mostrando sua versatilidade. A empreendedora pretende atacar o mercado norte-americano, muito mais solidário a esse tipo de iniciativa e bem mais à frente no que diz respeito à preservação das minorias. O tão crítico escritor Alfredo é visto no filme entregando malas em vários lugares do Brasil. Por fim revela-se que, para ganhar um dinheiro extra, participa também de um tráfico ilegal de órgãos, em que Amanda também está envolvida (e com horror o espectador especula que há relação entre esses órgãos entregues e as crianças doadas). Alfredo justifica-se, dizendo que escrever livros não enche o bolso de ninguém e, volta e meia, precisa inteirar seu orçamento...

O desmascaramento dos apolíneos representantes da elite não permeia a tensão social do cotidiano, que se entrevê em outras cenas, como na discussão entre uma cliente do restaurante e Adam, que se julga discriminada por ser negra. Adam tenta mostrar que aquilo é um engano, pois ele não tem preconceito com negros. Comprova-o não ser descendente de portugueses, mas de poloneses e, portanto, seus antepassados nunca fizeram mal aos negros, mas aos judeus. A afirmação provoca a indignação da senhora judia que acompanhava a cliente negra. Adam não admite culpa alguma, pois não é nem português nem judeu. A covardia de assumir suas falhas, justificada por um caos que pertence exclusivamente ao passado, do qual as pessoas atuais não teriam culpa, faz o cidadão brasileiro perpetuar todo tipo de grosserias e injustiças. Faz ainda que não se empenhe em mudar a situação atual porque, de certo modo, lhe é bastante conveniente. Todo voto de confiança que um brasileiro dá a outrem converte-se em ceticismo ao ser frustrado. Com isso, não consegue ser cidadão, pois, se o fosse, se sentiria enganado e trouxa por abrir mão de seus direitos individuais, sensação que se confirma pela eterna má gestão do bem público. Espertamente, o brasileiro concorda com o status quo e não deseja mudar nada. Não foi assim quando a Inglaterra, aliada à corte de Portugal fugida de Napoleão, fez o príncipe regente assinar compromissos de acabar com a escravatura, algo que demoraria um século para acontecer? Não foi esse medo covarde de mudança do status quo que fez o filho do príncipe regente proclamar a independência, evitando assim que um Bolívar brasileiro ou um Toussaint L’Overture tupiniquim o fizesse? 


A segunda saída, em vez da aceitação resignada do status quo é o deboche cínico. Para Luís, contradição social é uma questão de estilo: se nosso país fosse chique e fizéssemos uma refeição por dia em vez de três, a contradição social cairia porque a diferença entre quem faz três refeições e quem não tem nada o que comer baixaria muito. O cinismo é uma arma tão eficiente quanto a manutenção do status quo, pois atua eficazmente contra qualquer argumento e contra qualquer ideia revolução, aliás indesejada para quem detém o poder.

O embate entre as camadas sociais é permanente. Luís, após sofrer um assalto, conclui que nos Estados Unidos, a violência é mais civilizada e demonstra querer ir embora para esse país. Maria Alice declara entender o ressentimento de Luís, apesar de ver melhora no Brasil. Luís, nervoso, sentencia que ressentimento só há naqueles que ficarão aqui e não poderão fugir. O garçom, limpando o chão, intromete-se na conversa e diz que os que preferem não fugir devem ter, ao menos, a dignidade de assumir o ressentimento do opressor e não usurpar o ressentimento do oprimido. Todos se espantam com a reação do garçom. "Quem esse garçom pensa que é?", pergunta Maria Alice. A pergunta é retórica, mas a resposta é fácil: uma engrenagem do sistema social, como todos os demais.

“O senhor já devia de saber que as coisas funcionam assim por aqui” diz quem detém uma nesga de poder sobre o outro. Essas frases, emanadas o tempo todo da boca de quem tem poder de controlar a passagem do outro numa catraca, são completadas sempre com um complemento, a saber: “eu não vou fazer nada, agora o senhor me dá licença, que eu tenho mais o que fazer, vai caindo fora, vai”. A prepotência, o cinismo, a violência, a indiferença, o racismo e a resignação parecem constituir as notas musicais de uma dança macabra: não exatamente entre indivíduos (que fique muito claro), mas de toda uma sociedade. Nós todos, leitor, somos seus dançarinos e, ao mesmo tempo, seus sanfoneiros, a menos que nos recusemos a esse papel. Para Bianchi, porém, a realidade não interessa às pessoas. É inútil mostrar-lhes algo real, pois tudo será encarado como ficção. Entender a realidade para que os outros também entendam seria pura perda de tempo ou, na melhor das hipóteses, um novo ato de mauvaise foi, no qual se finge que entende a realidade melhor que os outros. Adiar a interpretação e apenas restringir-se aos fatos permite ao intérprete fingir cada vez de uma forma. Ou nunca interpretar, o que seria perfeito. O ideal, nesse contexto cronicamente inviável, seria apenas registrar os fatos, nada mais.