De fraque e pince-nez, o esbelto senhor de meia-idade levanta-se e sai de seu apartamento.
Sorrindo, abre a porta do elevador. Dentro havia um imenso javali.
- Que felicidade! Quanto tempo esperava sua visita! Por favor, entre! Entre!
O javali, com um olhar perdido, ao
perceber-se livre, passa velozmente por aquele que propiciou sua saída. Encontrando a porta do apartamento aberta, corre
agitado e lá dentro se mete. Lentamente, o anfitrião o segue, recebendo-o
simpaticíssimo:
- Seja bem-vindo, meu amigo! É de fato momentoso esse nosso encontro. Alia
Menecles, alia porcellus loquitur, não é verdade? Desculpe-me pela grosseria.
Não quis compará-lo com um porco ou com um cateto. Aliás, vendo-o mais de
perto, vejo que há um quê de babirussa. Não, com certeza, sua estirpe é de facóqueros, ou me engano? Sou pouco informado sobre distinções específicas
entre artiodáctilos suídeos, perdão. Permite-me doravante que o trate por “tu”? É
estranho o que tenho vontade de dizer-te: apesar de desconhecer-te
completamente, representas-me de alguma forma.
O javali, que inicialmente o olhava
hostil e acuado, intrigado com as cores da mobília daquele imenso apartamento,
caminhava sem parar, enquanto o anfitrião convidava-o para a sala de estar,
fechando atrás de si a porta da entrada.
- O meu convite tem uma nobre finalidade
e a ela iremos sem delongas. Antes, queria saber se compartilhas comigo a ideia de que Nastássia
seja a mais emblemática personagem de Преступление и наказание, escrita por aquele que é, na sua essência, um
presente de Deus, ha ha ha! Imagina! Se todos os Teodoros fossem de fato assim,
aquele imperador destas bandas subequatoriais não teria que, no exílio, ter recostado sua cabeça num travesseiro cujo conteúdo era nossa terra roxa. Permite-me rir, meu
amigo, imaginando essa cena do antigo imperador. É que me passou uma ideia ainda mais engraçada pela mente: como pode o nome de Deus, tão
grego, ser escrito com F no prenome daquele romancista? Ah, esses russos…
Dita a bazófia, riu, muito alto, de sua própria sagacidade, enquanto abria uma garrafa de champanhe.
- Quantas lendas, não é mesmo? Enfim... importa
apenas o que é de fato, não acha? Desculpe pelo riso vulgar de agora há pouco:
quis apenas que te descontraísses. É tua casa, sinta-te à vontade. Perdoa-me
estar falando tanto. É sempre esse o meu jeito de evitar o silêncio absoluto: a tagarelice. Tortura-me
a calmaria, não sei por quê. Fato é que, como tu, provavelmente, não consigo
suportar as palavras quando não proferidas por mim mesmo.Que pensas disso tudo?
Terminada a questão, o javali, acostumando-se
com o lugar, que analisava com curiosidade, esvazia o conteúdo do intestino
sobre o tapete persa do anfitrião, dando um pequeno grunhido de satisfação.
- Ah, não te incomodes com isso. Acontece
o tempo todo. Vamos para a sala de jantar e continuemos lá nossa conversa. Sabes
que eu conheci um senhor devoto de Harpócrates? Morreu, coitado. O mundo não
saberá nunca quem foi, mas eu o conhecia muito bem. Será esse o destino de todo morto: o desconhecimento total de sua existência? Cá comigo eu penso, que mesmo vivo
esse conhecimento é impossível, até mesmo dos mais próximos. Quando não de si
mesmo. Deixa-me fechar esta porta, por favor, para que o cheiro não invada a sala de jantar.
Preferes gim ou rum? Ah, sim, provavelmente não bebes, ao menos não diante dos
outros, ha ha ha.
Piscou cúmplice um dos olhos. O javali,
excitado em sua fúria e fome com o tom de voz estridente e com os sorrisos
marotos do seu anfitrião, acabava de derrubar um vaso, que, ao cair, partiu também
um grande espelho. O ruído do desastre acabou por assustá-lo, fazendo-o soltar
um grito estridente e uma agitação desabalada. Em seguida, parecia ainda mais enfurecido
por não ver outras portas abertas. O anfitrião continuou:
- Vê, por gentileza, esse quadro imenso
nesta parede. É meu pai. Uma grande pessoa. Não te assustes por estar nessa
posição, deitado, com essa baioneta. É apenas pose de tiro de guerra. Prestou o exército,
mas não chegou a ir a guerra alguma. Problema nos olhos. Essas espartanas
exigências, sabes como é... Aliás, tenho uma granada dele em alguma dessas
inúmeras gavetas, se os criados não ma roubaram, ha ha ha! Bom, deixemos de
falar de amenidades. É preciso que questões candentes se resolvam, uma vez que
pulsam nas nossas mentes desde o início dos tempos, não é verdade? Convoquei-te
porque sei que tua contribuição seria ímpar. Mas me pareces com fome. Sei que
és onívoro, mas podíamos começar com umas castanhas, certo? Preparamos essa
mesa porque tínhamos ciência de teus gostos. Nada de trufas, pois seria piegas,
embora com certeza descobrirás no teu prato uma comedida pitada do precioso
cogumelo.
O javali, confuso com a penumbra do recinto,
sentindo o cheiro recendente da comida, pôs-se de pé à mesa e, marcando seu território, arrastou
o prato com a queixada, fazendo-o cair estrondosamente no chão.
Seu conteúdo foi sofregamente engolido com várias bocadas barulhentas e
desconfiadas. O anfitrião, quase simultaneamente, já se encontrava sentado, sorria
e, brindando àquela reunião, escolhia os talheres corretos para mordiscar um
pouco dos acepipes. Acompanhava o convidado em seu repasto.
- O que mais intriga, na verdade, é vermos
árvores caindo o tempo todo. E elas caem quase na cabeça de silvícolas que se banham
naqueles lamentáveis rios de mercúrio. Parece-me agora um tremendo exagero o
que eu dissera sobre desconhecermos nosso destino. Se não sabemos o nosso, o
deles todos sabemos: a cova ou a mendicância em uma cidade vizinha, o
preconceito, a pobreza, a fome. Terrível, não? No entanto, se continuamente
brindarmos à nossa tríplice origem, aparentemente haverá uma espécie de anestesia
que nos dará sempiterna satisfação e orgulho, fazendo-nos esquecer da miséria alheia. É sempre
esse orgulho que nos renova, não? Brindemos.
Antes de beber, pôs delicadamente um
cálice sob a mesa, ao lado da comida pisoteada. O javali olhou intrigado,
derrubou o xerez com o focinho e o ignorou, sofregamente mais entretido em remexer
as mandíbulas cheias de comida, talvez porque o cheiro alcoólico não lhe
apetecera.
O anfitrião, com os pensamentos sempre distantes
em algo provavelmente etéreo, abotoando-se melhor, continuou suas fáticas
e mui educadas ponderações.
- Estive eu cá pensando sobre algo
candentemente importante: o contrário de inferno seria o superno, certo? O ser
humano se arvorou como superior, mas a desigualdade, a injustiça, a crueldade,
tudo isso não se mistura ao conceito renascentista que ressuscita a mais famosa
máxima protagórica? E mesmo a empatia, o amor ao próximo e tudo que dizem
distinguir-me de um javali, com o perdão de ser tão direto, na verdade, não é
algo que podemos usar como blefe dum jogo hipócrita no qual o que importa de
fato é a destruição? Pense nos parasitas: alguns não precisam nem de boca, nem de patas, nem mesmo de uma forma definida, pois lhes basta que seus genes passem adiante. Se o homem é um
geoparasita, não se trata de neotenia a nossa falta de pelos, nossa cabeça
grande tão parecida com a dos fetos! Sim, seria apenas reflexo da perda necessária de ganhos evolutivos para nos
adaptarmos: sem clorofila, os animais aprendemos a viver da destruição… Pensando assim, a
falta de rabos nos antropoides seria, na verdade, o primeiro cordão umbilical cortado da mãe
árvore, certo? Sem a água dos peixes e anfíbios confiamos na nossa gordura; sem ovos reptilianos, na
nossa história familiar; por fim, é a nossa homeostase que nos faz ignorar o
futuro? Invejosos das aves, nós, mamíferos, nem sempre aprendemos a voar e essa ignorância nos fez valorizar tantas outras perspectivas! Tudo que nos é deficiente é uma glória, não? Acho que sabes do
que falo. O importante não é o recalque pelo que não temos, mas o orgulho dos
nossos valores, tão facilmente compreensíveis, pois se pautam unicamente em nós
mesmo, não? Desculpa-me, novamente, pela arenga, mas não paro de pensar nisso
e tenho certeza de que concordas comigo. Segue meu raciocínio. Pelados e
regelados, medrosos por não enxergarmos longe nem no escuro, não foi preciso
que o córtex prefrontal de símio humanoide invadisse vitoriosamente a área de
olfato, anexando-a e subjugando-a, para que com o cúmulo da fragilidade, eu me tornasse o que sou hoje, o ser mais orgulhoso do planeta? Ou estarei eu
sendo presunçoso e prepotente, pois essa pretensão de dominar o universo talvez
não tenha sido exclusividade minha. Que achas, tu, já que não és humano?
Diz-me, por gentileza, meu amigo suíno. Não teriam tido as finadas trilobitas
uma sensação de superioridade parecida com a humana? Não terão a mesma certeza
hoje mesmo os incríveis fungos, sem cérebro, ao espalharem-se por quilômetros
debaixo da terra? Digo-te, porém, uma coisa, como advogado de defesa da minha
espécie: na falta de olfato, temos metal, pólvora e fissão nuclear. Perante a
nossa ignota indigência banhada em autoengano, quem estaria certo? Jó ou Da
Vinci? Deduz-se facilmente dessas premissas que pensar demasiadamente nisso seria um convite à
depressão. Sem dúvida o seria, mas se soubermos ponderar as coisas, veremos o
que há de maravilhoso no processo e não apenas o lamentável.
- Mas, afinal, lamentável e maravilhoso
para qual ser que habita este planeta, não é mesmo? Saberias pensar comigo? Ah, vejo que te entreténs
com outras coisas. Deixa tudo isso para lá. Cansa-me às vezes falar do real.
Não há nada mais aborrecido do que falar da própria dor ou, pior, ouvir sobre a
dor dos outros. Horas há que entendo muito bem a alienação dos que se fecham em
clausuras. E ser de uma espécie qualquer é viver numa clausura. Invejo os que
gozam apenas porque subsistem nas agruras da sobrevivência. Existência para quê, se basta a subsistência,
não é verdade? Um dia a existência deixa de ser! Um dia a essência também deixa
de existir. Concluo que o que nos une, de fato, é estarmos
sempre numa eterna crise.
O javali finalmente encarou-o com seus pequenos
olhos vermelhos e focou sua atenção finalmente no anfitrião. Sua fúria inata, dir-se-ia, subitamente se convertia numa estranha empatia. Nesse momento, soltou um
grunhido muito diferente. Uma testemunha juraria que, de uma maneira
demasiadamente humana, teria dito um claro e surpreendente “concordo contigo”.
Ambos agora pareciam esboçar um sorriso, fundamento de qualquer princípio de comunicação, como
dizem.
É foi nesse exato momento que ouvimos um
grito medonho e houve desde então muito movimento naquele prédio. Vizinhos
gritando, bombeiros e suas sirenes. Todos se amontoavam à porta recém-arrombada
daquela residência.
- Eu desviaria teu olhar desta cena final
- disse o antes bem composto senhor. Paixão e compaixão, afinal, o que são?
Eu estava no meio daquela multidão
apinhada no umbral de seu apartamento e testemunhei que meu vizinho, o pacato seu Mênecles, estava ali sentado no chão, com o javali morto ao seu lado, com a barriga aberta por uma
imensa faca, agora cravada no queixo do pobre animal. Tinha seu rosto alvo, sua
boca, o queixo, o peito, o fraque, a gravata, as luvas, tudo encharcado de
sangue e de fezes. As mangas esfarrapadas e o braço um pouco ferido revelavam ter
havido alguma resistência do pobre animal. Meu vizinho falava agora com uma voz guinchante quando
se aproximavam dele tentando afastá-lo das tripas recém-tiradas da barriga do
animal morto, que insistia em devorar. Levado, enfim, por policiais e enfermeiros, que o imobilizaram,
perorava aos que o olhavam petrificados, babando em abundância:
- Expressar o que se sente, meus queridos, é pouco! O homem é, sem dúvida, muito melhor do que os demais animais, que são incapazes de romper um pacto, uma vez estabelecido – disse mastigando - Homo traditor! Mesmo se os não-humanos viessem um dia a falar, jamais conceberiam o que é a traição, essa característica divina que nos caracteriza. .
E, retirado finalmente do apartamento,
podia-se ouvir lá fora:
- Enclausurada nas almas doentes das
pessoas, a monstruosidade era tão bonita… Tinha um certo apelo poético, não
concordam, vocês, que me olham tão pálidos? Que triste isso tudo, não? Lamentável,
deveras. Saudade de quando todos davam suas opiniões boçais bem baixinho, bem
sozinhos, quase mudos. O que nos resta agora indubitavelmente será fazer de conta que não é da nossa conta, porque, afinal
de contas, o que conta é o que temos para contar, não concordam?