O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

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Sou um saci sumério de Botucatu.

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

SÓ LHE PEÇO UMA COISA

Sim, você pode imaginar o que lhe pedirei. Preciso do meu corpo. 

Minha alma foi devastando-se na jornada conhecida como "existência", mas meu corpo é mais que o Ser dos filósofos. Meu corpo é único. Não importa se tenho um irmão gêmeo: não estou falando de DNA. Meu corpo, independente do que o estimulou ou do que o constrangeu para agir como tem agido, é meu e só meu. Nada é meu, exceto meu corpo. Não preciso de outro, idealizado, nem menos perfeito: isso seria o corpo de uma alma insatisfeita. Refiro-me ao corpo que me dói, ao corpo que necessita de água e de ar, ao corpo que é só meu, independentemente do que me digam. Por isso, tire-me tudo, menos meu corpo. Em troca, não tirarei o seu: antes das primeiras legislações isso já era óbvio, pois é tácito nas matilhas, malgrado alguém sempre se arrogue a tomar o poder do bando. Fique com o poder, deixe-me o meu corpo.

É com meu corpo que acordo, querendo ser compreendido enquanto corpo. É com meu corpo que digladio o tempo todo pensando ser óbvio para quem me ouve ou me lê, mas não o é, porque só uso palavras intrincadas e quem me ouve ou lê não me entende. Diabos, não têm todos a mesma percepção de si? Meu corpo sempre bastou-me. De que preciso mais para dizer-me vivo? Não é meu corpo que me acusa que estou saudável? Não é meu corpo que dá os primeiros sinais do meu delírio? Não é meu corpo que acorda comigo todo dia, dialogando consigo mesmo enquanto eu, perplexo, tento entendê-lo e explicá-lo para quem não o entende, ou seja, para mim mesmo, na maior parte das vezes?

E, afinal, não há nada que entender. Qual é a ação do corpo senão viver? Viver pura e simplesmente, sem filosofias, sem hipóteses, sem dúvidas. O corpo não tem dúvidas quando para de pulsar e deixa de ser. Quem me convencerá que há outra vida senão a que meu corpo, qual maestro, rege com sua batuta? Talvez por isso o torpor me seja tão ridiculamente elucidativo, tão violentamente revelador, tão tristemente eufórico, tão verdadeiramente suscetível às satânicas versões da alma, que perora e conclui que não é corpo. Deixemos a alma com seus complexos.



Não há o que elucidar, nem se revela o que todos sabem: não há nada além do corpo. E isso não deveria infundir tristeza. Viver é a alegria e não há tristeza no não viver. Quem discorda dizendo que há gradações qualitativas no viver não entendeu nada do que eu disse. Não há problema essa sua incompreensão. Sugiro que se desnude e se olhe no espelho sem reprovações: quem sabe entenderá. Se, mesmo assim, não compreende, não há necessidade de continuar lendo.

As tragédias só existem por causa da alma. O corpo é infenso às tragédias. O corpo foi criado para resistir. Com uma só célula ou com mais. No corpo só há vitórias. Não se traduz a palavra "desgraça" na linguagem do corpo, mesmo que ele viva alguns segundos apenas. Que dizer então de coisas tão caras e tão vazias, como a bondade, a beleza, a justiça, a esperança, a saudade, a angústia? Nada disso faz sentido, porque tudo deriva de uma definição que requer a forma negativa da graça e isso não faz sentido na lógica do corpo. No corpo tudo é graça, tudo é luz, tudo é movimento e coisas bizarras como a vontade, a intenção e os objetivos, tão caros ao neurastênico sistema nervoso que produz a insatisfação só geram a ilusão da existência de uma alma paralela ao corpo. Paradoxo dos paradoxos: sem isso, o corpo vivo seria pedra; com isso, o corpo vivo morre antes do programado.


Francamente, por que haveria um corpo imortal? Que graça há nessa tal imortalidade? O fracasso é o epígono do ser que se deseja imortal. O corpo imortal seria uma coisa medonha, carente de bondade, insatisfeito de beleza, sedento de justiça, iludido pela esperança. O corpo imortal angustia-se e é saudoso. O corpo imortal morre de vontade, fenece de intenções, sucumbe de tantos objetivos. O corpo imortal é o oposto do corpo, portanto, é a própria definição de desgraça. O corpo não entende o que venha a ser esse epíteto "imortal" que alguém lhe queira atribuir em seus delírios.

Nesse reinício de escritura, caro leitor, nesse meu novo testamento em vida, posso parecer estar convidando outros corpos a pensar. Mas, na verdade, o convite é diverso: que deixem seus corpos viverem, até que se tornem novamente matéria inerte e que arremessem não seus corpos pela janela, mas sim suas roupas, para conseguirem ver-se no espelho, satisfeitos.