O Mal não é vermelho, não tem pés de cabra, tridente ou rabo pontiagudo. Mas o Mal existe: seria hipocrisia imaginar que seja algo relativo porque pontos de vista são diferentes. O Mal não tem nada a ver com pontos de vista. Nem chamo de Mal aquilo que infringe uma regra social discutida em debates, como evocam tantos moralistas e aprendizes de moralismo. O que eu chamo de "Mal" é amoral, porque não está associado ao que uma sociedade acha errado. Chamo de Mal aquilo que impede que uma vida transcorra sem interferência ou interveniência alheia. O Mal poderia estar no leão que me ataca de surpresa, saltando de uma moita, depois de espiar-me e me devora indefeso. Mas esse Mal é inevitável, pois a morte em si, por ser natural e parte da vida, não deve ser confundida com o que chamo de Mal. O Mal inevitável dos acidentes é causado por algo que não tem culpa: uma pedra que rola sobre minha casa, a água que me engole num redemoinho, a sede de sangue de um mosquito que me contamina com uma doença fatal, nada disso eu exemplificaria como o que quero definir como "Mal". Se eu incluísse no que chamo "Mal" essas coisas todas, meu texto seria confuso. Mas não quero confundir: anda que essas coisas não sejam boas, assim como não são a fome ou a sede ou outras necessidades apeladas pelo meu corpo, aplacadas ou não, aplacáveis ou não, chamar tudo isso de Mal seria muito pouco preciso e minha terminologia seria falha por ser demasiadamente abstrata. Nem tudo que não é bom faz parte daquilo que quero definir como o Mal.
O que chamo de "Mal" requer, antes de tudo, um outro ser pensante da minha espécie, que raciocina e que consegue comunicar-se em uma língua articulada e que não seja eu mesmo. Esse outro pertence a uma sociedade, igual à minha ou não, e tem uma biografia, necessariamente diferente da minha, mesmo que seja meu irmão gêmeo, exceção talvez feita aos xifópagos. A relação entre o Eu e o Outro já foi estudada por psicanalistas, por psiquiatras, por sociólogos honestos ou picaretas. Falo como leigo: infelizmente desconheço a teoria nas suas profundidades que a Terminologia exige. Falo, como sempre falei em meus textos, daquilo que me faz algum sentido vivendo. Não peço perdão se errar. Posso apagar tudo, no entanto, ainda que alguém dotado de uma memória absolutamente perfeita se lembre de tudo que disser, proferirei o que penso sobre isso que existe materialmente no mundo e que estou denominando "Mal".
Prefiro falar "mim" em vez de "o Eu" e uso "outro" com letra minúscula, para enfatizar o comezinho de minha reflexão, tão necessária à Verdade. Nessa relação entre mim e o outro, não direi que o Mal provenha sempre do outro. Isso é uma súplica a quem me lê: estou tentando ser o mais honesto possível com o que teorizarei ou descreverei a seguir. O Mal, como disse, existe, e para ser identificado requer que haja não só o outro, mas também eu mesmo. A proveniência ou causa do Mal pouco importa: ou eu sou a causa, ou o outro. Não faço diferença.
Mais difícil do que caracterizar o Mal é falar sobre a consciência. O que seria a consciência? Uma espécie de certeza de que não ajo corretamente. Uma náusea. E o que significa "agir corretamente"? É reconhecer em mim o Mal. Portanto, se olho para minhas memórias (sempre falhas) e vejo nelas algo que eu poderia ter feito diferentemente, percebo que errei. Esse erro, portanto, é a fonte de eu me tornar consciente de que gerei aquilo que estou chamando de Mal, pois esse erro afetou a história do outro, mesmo que o outro seja eu mesmo.
Mas essa retrospecção de reconhecimento do erro nem sempre é seguido de arrependimento. Muitas vezes há orgulho, indiferença, desprezo ou, pior, a sensação de que não poderia ter sido de outra forma: essas reações ao reconhecimento do erro nada mais são que autoenganos, que são muito importantes, quer queiramos seguir vivendo, levando conosco o Mal pretérito, quer queiramos fazer o Mal maior a si mesmo, o suicídio, ou ainda o Mal maior ao outro, o homicídio. De qualquer forma, o reconhecimento aponta para um futuro, longo ou breve. E esse agir futuro é outro Mal. Assim sendo, o Mal pretérito inevitavelmente gerará o Mal futuro, a menos que a memória ajude e, como num encanto, apague o Mal passado. Mas isso só os felizes dementes, talvez, têm a sorte de vivenciar.
Numa criatura não demente, o futuro carrega o Mal passado e se não podemos modificar o passado, nem o esquecer, é sabido que a náusea só se aplaca com o autoengano e, para termos o feliz autoengano, estepe da demência, só mesmo afastando-se cada vez mais do Mal passado e das causas que o geraram é possível viver saudavelmente. Alguns chamam isso de hipocrisia, sobretudo os afetados pelo Mal alheio do qual não conseguem esquecer-se, nem autoenganar-se.
O Direito declara que esses são vítimas e que precisam ser ressarcidas por meio da punição. É assim desde Hamurabi, imitado infinitamente, por exemplo, no livro de Levítico. Mas o Direito mistura o Mal amoral (que persigo para definir) com aquilo que socialmente se confunde com o Mal e, nesse momento, muitos impostores, repletos de autoenganos ou de má-fé, se aproveitam para vingar-se da causa do Mal e cometem novas injustiças, de modo que o Mal se perpetua agora, por outras causas mais complexas, desenoveladas de psiques e de valores históricos ou de seus questionamentos. O Direito não é a solução para o Mal. O Mal persistiria sem a justiça supostamente cega. O Mal está presente desde sempre por causa da consciência, como dissemos. Não há como extirpar a consciência, embora haja imenso interesse capitalista nisso. Seria muito lucrativo um mundo em que a mão de obra fosse inconsciente e obedientes a um DNA artificial, que manipule o comportamento individual, como supomos ocorrer entre as formigas em relação à programação de suas rainhas ou dos fungos que parasitam seu sistema nervoso.
O Mal tem de ser depurado para ser reconhecido: é apenas o Mal amoral que merece ser discutido, pois nele há uma verdade independente de opiniões. Uma episteme e não uma doxa, como queria Platão. Recapitulando, o Mal, independentemente de justiçado ou não, está na consciência de um ser humano não demente e requer um outro, que pode ser o seu próprio causador, o qual poderia ter vivido de outro modo, se não fosse acometido pela ação voluntária ou inconsciente daquele que resolver agir um dia, causando-o e impossibilitando-lhes milhões de outros futuros possíveis para ambos, sendas que jamais serão seguidas. O Mal, então, para ser formalizado, não depende de vítímas, mas de um pretérito perfeito e de um futuro do pretérito, não no sentido condicional, mas no sentido estrito de uma narrativa sincera e sem lacunas importantes de memória que possam ser retomadas, por serem lacunas reconhecíveis por qualquer um, tal como na frase "Napoleão invadiu a Espanha, em seguida, expandiria seu império até Portugal". Não é possível afirmar que tenha sido ato contínuo de Napoleão ter invadido Portugal como numa consequência de interação estudada pela Física, mas fê-lo Napoleão e poderia não o ter feito. Napoleão se arrependeu de ter invadido Portugal? Talvez não, mas quem poderá julgá-lo ou sequer imaginar seus pensamentos na Ilha de Santa Helena? Contudo, quem diz que Napoleão foi um herói sofre de autoengano ainda pior, por causa da sua inconfessada ignorância. Em que se distingue, portanto, autoengano e má-fé?
Tudo isso, porém, não nos impede de destilar o Mal puro, abstraído dos eventos, a ponto de ser passível de se transformar numa fórmula em que está o causador do Mal, o afetado pelo Mal, o reconhecimento de que a ação não teria ocorrido se o causador não tivesse agido e a conclusão de que vida subsequente à ação maléfica seria distinta de qualquer outra, que não ocorreu, se o Mal não tivesse sido causado. Mas dizer isso, desse modo, parece dizer que a ausência do Mal seria o Bem. Isso seria verdadeiro se houvesse uma vida sequer no planeta em toda sua existência que nunca tivesse sido afetada por Mal algum, quer no sentido que demos à palavra quer em todos os demais sentidos rejeitados. Mas isso seria contrário ao Mal amoral e praticamente se confunde com o Bem amoral. Nem mesmo crianças conhecem o Bem amoral, talvez só anjos e outras divindades ou entidades de planos idealizados da existência. O Bem amoral simplesmente não existe. Existe apenas algo que pode ser chamado de Bem se não tivesse sido afetado pelo Mal, mas não há vida que não seja afetada por algum tipo de Mal, de modo que o Bem puro é uma abstração e não existe, como o Mal. Diferentemente de um leão que simplesmente me devora, haverá sempre alguém consciente próximo de nós, convencido por alguma doutrina ou por algum discurso, que afetará nossa vida com algum Mal que possamos culpar, ao qual possamos atribuir nossa infelicidade, novamente imersos em autoengano, quer seja por memórias falhas, quer por nossa própria má-fé. Assim, não se vive uma vida sem passar diversas vezes pelo Mal e não se vive uma vida sem cometer, consciente ou inconscientemente, algum tipo de Mal.
Talvez os cristãos estejam certos quando dizem que nossa vida é um lamento e que a única saída é o perdão: embora seja uma espécie de má-fé, o perdão nos livra do homicídio ou do suicídio. Talvez o perdão seja, de fato, a única forma de prosseguir vivendo seguros numa trincheira enquanto a guerra infinita do Mal não termina. Para não afirmar isso com má-fé, confesso que sei que essa fórmula de autoengano não foi criada pelos cristãos, embora tenha sido divulgada eficazmente por eles, mesmo quando foram extremamente hipócritas ou malfeitores ao longo da História. No entanto, o perdão talvez tenha alguma razão de ser, pois, de fato, ao que tudo indica, encontra ecos numa Grécia sem ágora ou, mais longe, numa Pérsia de população resignada, tal como se lê nas entrelinhas de um Marco Aurélio, cuja filosofia parece um cântico, ou mesmo na desilusão nietzschiana posta na boca de Zaratustra. Talvez a solução do perdão seja reflexão humana ainda mais antiga e contemporânea da encarnação do Mal sob a forma das guerras e dos impérios, fruto da cobiça da tecnologia do bronze, sabidamente muito mais eficiente que a pedra e a lança que costumeiramente lançamos uns contra os outros na nossa pré-história cotidiana.