O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

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Sou um saci sumério de Botucatu.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

BOBO ALEGRE

Não há quem não tenha ficado minimamente soturno depois da última pandemia. Não bastasse a violência que grassou sobre a Terra, tanto física quanto mental, durante dias de gráficos com números cada vez mais atos, agravados por ignorância, intolerância, corrupção e descaso, os sobreviventes que rastejaram cioranianamente para fora desse escorregador (ao mesmo tempo ralador) entraram em anos pós-pandêmicos cheios de guerras repugnantes e de discursos que não cessam sua escalada de sadismo e de irritante indiferença altiva. Com isso, não se viu mais espaço para o humor, para o deboche, para o surrealismo. Aparentemente esse novo mundo, o dos robôs que leem tuas necessidades na pauta visceral das tuas convicções, tirou todo o espaço dos que familiarmente chamávamos de "bobos alegres".

Não há mais onde expressarmos nossa ingenuidade diante de um mundo repleto de informações self service. Todo mundo é consciente, politizado, informado, fanático. Não o ser, hoje, é o maior pecado. O ingênuo é mal-vindo pois o fruto do conhecimento já foi mordido. O Paraíso, onde grassa a inconsciência do Bem e do Mal, é algo que não devemos desejar nem mesmo a recém-nascidos, que terão - dizem - seus futuros chips implantados por ciosos pais que só querem o progresso de seus filhos. O bobo alegre está em vias de extinção e é persona non grata no trem-bala que nos levará à completa decifração dos mistérios que foram escondidos de nós, paranoicos, até hoje. Queremos ser tudo (e de preferência tudo mesmo), exceto um bobo alegre.



Ninguém errará mais, embora não saiba como foram programados os corretores ortográficos. Em breve, ninguém saberá mais a inútil ordem alfabética herdada dos fenícios: para que servia a não ser quando procurávamos palavras em dicionários, que em muitíssimo breve não existirão mais em papel (como já não os há, senão em museus, os papiros e pergaminhos)?. Com tanta informação em enciclopédias virtuais, escritas colaborativamente, para que lermos livros? Eu sei tudo. Eu tenho tudo. E mais: não tenho o direito de não saber, não tenho o direito de pensar errado, não tenho o direito de não gostar por ter absolutamente tudo à distância de um apertar de botões. E se só há uma forma de fazer as coisas, todos sabemos: quem não sabe será o novo inferiorizado, o novo desprestigiado, o novo ignorante, o novo anátema. Cuidado!

Mas pelas ruas ainda perambulam pessoas que no seu círculo íntimo se permitem ser bobos alegres, mesmo no crescente avolumar-se de dados e informações. O descosido de tudo o que se diz não os tornou propriamente céticos, antes sua atitude é a de um ser que coevolui com o pedantismo universal. O novo bobo alegre não simula ser bobo. Ele é um bobo consciente. Consciência muitas vezes arraigada na sua mascarada ignorância e autoengano, é verdade, mas outras vezes, é uma forma de protesto.

O bobo alegre de hoje, diferente do da década de 70 do século passado, não esfrega na cara dos hipócritas verdades praticamente indiscutíveis nem expõe as contradições de forma irônica. O novo bobo alegre flutua catatonicamente na maré de discursos fundamentados em milhões de dados. Não pretende contradizê-los, apenas mostrar que seu excesso tem algo de engraçado. Com isso, enfrenta o mau-humor daqueles que se enganam pensando e agindo como se tivessem evoluído para um novo ser mais sério.

Tentemos fazer uma besteira muito grande para quebrar o gelo. Tentemos apresentar uma consideração infame que não seja sarcástica, apenas ridícula. Tentemos rir da circunspecta notícia com que acordamos hoje, dizendo algo espirituoso, mas o  oposto do que alguém diria. Tentemos não fazer o que todos decidiram fazer desde a semana passada ou desde o mês passado. Seremos ídolos se conseguirmos agregar propaganda à nossa atitude, mas seremos bobos alegres se não estivermos preocupados em convencer ninguém.

Com isso, o prazer se tornou enlatado. O riso tem hora. A ironia tem de estar de acordo com a sinfonia. A piada tem de ser correta para não ofender, embora todos estejamos prestes a ser ofendidos. Nada que escape do script das redes poderá ser apresentado de maneira gratuita sem ser entendido como algo imperdoável, embora tudo seja reversível no momento seguinte, se for hábil para reajustar a sintonia da toada universal. O improviso, meu caro leitor, passou a ser o pior de todos os pecados. Chamar atenção para si é o que todos fazem, mas é imperdoável que o outro o faça. Só eu posso, perante a batuta do Grande Maestro, novo nome do Big Brother.



Em suma, um momento de bobo-alegrismo é perdoável se no momento seguinte provarmos que sabemos flutuar nas ondas da Grande Situação. Ter sido bobo alegre por um instante é permitido se se pede perdão por ter destoado da Grande Verdade, que é O cerne de tudo  (se a arrevoada de maritacas humanas não estiver dizendo que é A cerne de tudo). O uso é mais do que a normalidade: é a Verdade. Ai de quem afasta dele e, em sendo bobo alegre, não faz uma rápida correção para não criar mal entendidos. "Sim", diz o bobo alegre hostilizado pelo desprezo de seu recente desafinamento no coro dos corretos, "se não quisermos ouvir sobre os direitos das alcateias, todos temos de abdicar ao nosso cargo arduamente conquistado de bobo alegre". Cuidado, lobos sabem controlar o bobo-alegrismo alheio muito bem, com seu olhar supostamente crítico e suas planilhas de julgamento. Apenas evitam os espelhos quando estão na postura de apresentar sua nota final.

Enquanto pede desculpas, o bobo alegre ri sozinho, imaginando que os lobos acharam que seu perdão era algo que deviam levar a sério. Enquanto ri escondido, chora por dentro, por não saber explicar o porquê de seu desespero ao fazer uma cara boba, menos alegre. Enquanto chora, morre de medo, que seus lábios se enrijeçam de tanto segurar o riso e que sua testa não franza mais, em compatibilidade com a gravidade de tudo que está voando à nossa volta, como varejeiras.