O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

sexta-feira, 8 de março de 2013

VOCÊ PRECISA DE UM LÍDER?

As modinhas linguísticas têm, como tudo, seus movimentos de vaivém. Está de volta a palavra líder, com um valor semântico curiosamente simpático e positivo. Para mim, o encanto crescente e inequívoco com essa palavra não é tão óbvio assim.
 
Poucos sabem, porém, que o anglicismo leader, de onde obviamente vem a palavra, é equivalente exato do alemão Führer, que não é tão simpático, por razões óbvias. Ambas significam a mesma coisa: "aquele (sujeito) que conduz (as pessoas)". Para onde as conduz? Não nos é dito, mas suponho que é para onde desejam ir os liderados. Como a insatisfação humana é infinita, o líder tem o raro poder de criar-nos a ilusão do contentamento. E consegue isso com incrível rapidez, sobretudo quando se escancaram abismos entre o nada e o mínimo. Um big bang social às vezes nem sempre tem razões claramente identificáveis.
 
Obviamente, em muitos aspectos sociais é preciso haver liderança. Nenhuma equipe, nenhum projeto, nenhuma boa ideia, nada, enfim, é construído sem algum coordenador dos movimentos, o qual sempre relembrará aos demais os objetivos iniciais, com a única finalidade de evitar-se a dispersão de ideias. Periodicamente, esse coordenador concentra forças positivamente em direção a uma meta comum, para que haja uma progressão coerente ou simplesmente para que os objetivos iniciais (alterados ou não, com base em negociações honestas) não se desmantelem. Essa é a faceta positiva da liderança e, nesse sentido, é perfeitamente aceitável também sermos liderados. Nesse sentido positivo, talvez o único, é verdade que aplicamos uma metáfora bastante elástica à ideia de "conduzir", uma vez que, neste caso, e somente neste caso, não há abusos de ambos os lados. A ausência desse mecanismo coordenado conduziria ao caos, ao desespero e ao niilismo.
 
O abuso, porém, é uma tentação grande para quem lidera, principalmente se tem algum tipo de carisma e aceitação incondicional dos liderados. Volta-e-meia vemos líderes que, uma vez certos de seus amplos poderes, praticam a liderança abusiva. A própria massa que o apoia empenha-se em calar, de maneira não raro violenta, os que não o apoiam incondicionalmente, os quais, por fim, acabam por recuar em sua prudência (ou em sua covardia?). Vemos por vezes nascer em democracias traços do fanatismo, do fascismo, do nazismo: pessoas cegas aos defeitos das lideranças e surdas ao raciocínio contrário, incapazes de querer novas mudanças para além do mínimo, acomodadas à sombra de uma figura mítica que os envolve com palavras cheias de metáforas evocativas de nosso ódio primal ou capazes de desviar nossa capacidade de amar. Enfim, é espetáculo assombroso ver pessoas, aos prantos, dizendo sinceramente que devem tudo (até mesmo sua vida) ao líder. Sem auto-estima para além dessa dependência emocional, essas pessoas, supostamente socorridas pelo líder ou por algum mecanismo emanado da sua sabedoria, fecham seus punhos à crítica e temem a mudança, quando, tempos atrás, eram as mesmas que a desejavam.
 
Esse paradoxo dos liderados (querer a mudança, conseguir um pouquinho dessa mudança e não querer mais a mudança) é condição primária para as lideranças abusivas. Nesse caso, devemos responsabilizar o líder e seus excessos ou deveríamos responsabilizar os liderados? Difícil saber. Um não vive sem o outro. O líder às vezes é um militar; às vezes, é um religioso; às vezes, é uma pessoa cujo carisma emana da sua proveniência das camadas oprimidas; às vezes, é um intelectual. Tendo, porém, conseguido o comodismo dos liderados, não se encaixa mais em nenhuma dessas categorias mundanas: torna-se um semideus, um herói, uma figura épica, uma lenda.
 

O mundo sempre foi assim? Provavelmente, pois não conheço nenhuma sociedade que viva em perfeita anarquia (no sentido estrito da palavra).

Pôr ordem nas coisas é uma necessidade humana. Parece que todos sofremos, em diferentes graus, de algo parecido com um transtorno obsessivo compulsivo. O caos nos desagrega. Talvez isso seja biológico, pois a regularidade e a ordem está nos instintos de outras espécies, como as abelhas e o pássaro Ptilonorhynchus nuchalis (vale a pena procurá-lo no Google). Não nascemos em tabula rasa, como queria o grande filósofo Locke: desde o início de nossa vida há algo que nos incita à visão geométrica das coisas, à expressão e à empatia. A insegurança do caos nos faz encontrar traços distintivos em fonemas sem que ninguém nos ensine a fazê-lo, faz-nos ver igualdade simbólica em coisas distintas desde que somos bebês; faz-nos construir padrões metafóricos de cognição.
 
Falando nisso, um sábio é um tipo de líder que se expressa apenas por metáforas. Não importa se metade delas é incompreensível: continuará sendo um sábio. Por vezes, nem há algo real para alicerçar essas metáforas. Mas também é verdade que não precisam de realidade: nós, humanos, candidatos a liderados, já vivemos no nosso mundo construído pela linguagem e, pautados nela, raciocinamos e nos envolvemos, amamos e odiamos, desprezamos e adoramos, construímos e destruímos.
 
O mundo construído pela linguagem só é suficiente para quem não quer perder tempo em reflexões, para quem nunca se questiona, para quem sempre acredita ter razão, enfim, para quem nunca vê enfim contradição em si mesmo. Candidatando-se para fora desse mundo prático, explicações para tudo são muito diversas: na Física, propõem-se há forças invisíveis; nas religiões, impõem-se deuses; na política, insinua-se a existência de poderes especiais a determinadas pessoas. Olhando para o passado, percebemos que já fomos bem mais crédulos, pois naquele mundo de ontem, a informação era circunscrita apenas a alguns, cabendo aos outros aceitar sem questionamento, mas estamos ainda bem longe de ser os seres racionais que imaginamos.

Desprezo a fé no crescente movimento do conhecimento rumo à perfeição (como queria Comte) e penso que nosso raciocínio atual nasce de uma sucessão de acasos, esquecimentos e oportunidades: os neoplatônicos não fizeram o raciocínio pré-socrático e aristotélico regredir espantosamente por mais um milênio quando se converteu em cristianismo? Não se perdeu o conhecimento científico que arrastava multidões de cidadãos a voluntariamente construir pirâmides? O enciclopedismo da Revolução Francesa não se tornou monarquia bonapartista rançosa? A cultura e a tolerância dos alemães oitocentistas não se tornou o mais obsceno nazismo no século XX? Direitos se ganham, mas também se perdem, numa velocidade incrível: uma geração se mostra incapaz de ouvir e entender a outra. O esquecimento é ubíquo.
 
Incomoda-me quando, embevecido por uma pequena aquisição de direitos, o acomodado se arma com um soco inglês, pronto a esbofetear quem problematiza ou vê algum ponto destoante. Cego pela verdade do senso-comum, é até mesmo capaz de cravar um bordão (ora reacionário, ora subversivo) na testa de quem apenas propõe pensar para além dos novidogmas que todos devemos engolir sem maionese. Por um salto de raciocínio bastante estranho, o crítico, em ambiente de tirania, torna-se um Caim ou um Judas. Sim, se tudo é perfeito como dizem o líder e os que seguem o líder, por que, nessas condições férteis para a tirania, a miséria intelectual impera? Aliás, pergunto-me: por que o raciocínio está tão fora de moda? Por que precisamos de uma tribo, de um grupo, de uma seita, se finalmente descobrimos a duras penas que somos indivíduos? Por que precisamos da aceitação de todos, se as massas não têm cérebro e se os cérebros dos indivíduos integrantes da massa não se somam, mas deles apenas extraímos, como mínimo denominador comum, a mais rasa das obviedades? Por que a música, a marcha e as gigantescas imagens do líder nos fazem chorar e, ao mesmo tempo, nenhuma lógica tem esse poder? Por que os delírios do romantismo parecem voltar nesses momentos da forma mais irracional possível?
 
 
 
 
São áreas distintas do cérebro que respondem a isso e os liderados se bloqueiam por alguma razão. A lavagem cerebral e a fé irrestrita dependem, provavelmente, de uma atuação direta no nosso lobo temporal encefálico, o qual é curiosamente também é responsável pela arte, pelo sexo e pela religião, como nos ensina Oliver Sacks, em seu Musicophilia. Espelho do aceitável pela massa, são exatamente nessas três direções que colateralmente age a tirania a maior parte das vezes: cerceando expressões artísticas críticas ou pouco convencionais, aceitando somente heterodoxias sexuais e limitando-se apenas às religiões tradicionais da grande maioria. No seu apogeu, a pudicícia da tirania é uma de suas características comportamentais mais bizarras. 100% freudiana. Como se poderia facilmente esperar, a consequência imediata é a repressão das minorias e a paradoxal vitória do status quo, mascarada de revolução.
  
Desse modo, torna-se mais fácil entender por que uma liderança não se faz por meio de lógica, mas por meio da sandice. O mundo feérico do líder e de seus seguidores não é o mesmo mundo real que, para conhecermos, bastaria abrir os olhos. Nesse mundo enlouquecido, a verdade do líder é inquestionável e irrefutável. Não há e não pode haver contraprovas. Se existem, trata-se de uma conspiração e é incrivelmente fácil flagrar o discurso paranoico do tirano no auge de seu poder. É um mundo platônico e abstrato. Para proteger os liderados do perigo sedutor da contaminação com a realidade, é preciso que esse mundo perfeito seja fechado e desinfetado, impedindo, de uma vez por todas, que antíteses aos seus dogmas sejam ouvidas pelos que potencialmente raciocinariam. Nesse mundo, ninguém pode dizer em voz alta: pánta rheî! Embora ajam como se não dependesse do mundo, os embargos às tiranias provam o contrário. Mas até mesmo isso é um trunfo ao tirano, pois parte de seu poder vem da sua própria vitimização. Em seus discursos, não é todo tirano uma vítima, como a massa que salvou? O raciocínio do tirano precisa de todo um mundo fantástico, inutilizado pelas refutações de Popper.
 
O mais irônico é que as minorias, crucificadas e contrárias ao pensamento do tirano e das massas, no final das contas, deixam sementes rancorosas, donde germinarão outros líderes ainda mais bizarros, os quais inverterão o jogo e destruirão, de forma igualmente tirana, os que não se converteram ao novo raciocínio. Parece que a história da Humanidade se resume enfadonhamente a isso, num ciclo que, visto por alienígenas, dificilmente conduziria à conclusão que somos os animais racionais que arrogamos ser.