Em outros momentos falei sobre a necessidade de sermos liderados na falta de pensarmos a partir de nossa própria experiência. O líder, essa entidade do mundo das ideias, torna-se o imperativo categórico de nossa razão, aquele que nos orienta, por causa da nossa preguiça de memorizar fatos novos e pouco familiares, por causa de não sabermos que somos manipulados pela nossa memória falha, por causa da nossa necessidade de nos sentirmos numa família diferente daquela determinada pela genética e por causa de termos a ilusão de que tomamos nós mesmos essa decisão. Se não fosse só o fato de querermos ser liderados, há ainda um agravante, que nasceu provavelmente no Ocidente a partir de uma das muitas imposturas trazidas pelos persas, ao atravessarem as Termópilas, a saber, o proselitismo.
O proselitismo é uma das coisas mais terríveis que nos pode acontecer. Não basta que tenhamos um líder. É preciso que todos o sigam. É preciso que quem não o siga seja destruído. O raciocínio do prosélito é maniqueísta. É uma pena que tão pouca gente saiba o que significa o proselitismo. O mundo seria bem melhor com a consciência de que existe uma palavra para esse mal.
Para todos, a verdade, por oposição à falsidade ou à mentira, é o bem, portanto, o contrário da verdade só pode ser o mal. E esse mal está na religião que eu não sigo, na religião que se opõe à ciência que creio lógica, na ciência que se opõe à religião que creio certa, nos argumentos dos líderes que não nos cativam, nos ensinamentos que achamos maus. O bem, por conseguinte, é algo que se resume a algumas poucas máximas e me evita pensar em demasia. O prosélito não se contenta em achar uma verdade. O proselitismo é a manifestação de um cansaço de quem não quer mais argumentos, de quem não quer mais memorizar, de quem não quer mais raciocinar. O prosélito é, necessariamente, um fanático mesmo que não aja como sendo um.
São raros os ensinamentos religiosos que não sejam fundados no proselitismo, talvez por isso ache louvável a religião daqueles que não estão interessados em aumentar o números de seus adeptos, de tão certos que estão em seu autoengano. Já me soa abjeta aquela religião que se funda no convencimento dos outros (e não só no sentimento de superioridade por estar do lado da verdade), que aborrece evocando-se fora de contexto, que tem a necessidade de ser expressa fora do templo, que se expõe aos que não comungam com seus pressupostos. Alguém me dirá: e a ciência não é assim? Sim, é, embora não devesse sê-lo.
Se a religião devesse ser apenas o êxtase que nos remete para além do nosso eu e nos faz comungar com aquilo que os indianos chamariam de Brahman, como faz a filosofia de forma mais racional, como se nos apresentam temporariamente os estados de consciência alterada, como o sono, a bebida ou qualquer opiáceo, sedativo, narcótico, estimulante ou alucinógeno que mexa com nosso sistema nervoso, a ciência deveria ser apenas a alegria do conhecimento e a alegria ainda maior da profundíssima ignorância.
Mas há cientistas mais fanáticos do que os religiosos. Os religiosos têm certezas e respostas às questões existenciais fundadas em suas convicções e em seus líderes. Já os cientistas alicerçam sua fé com bibliografias, autoridades que testam e provam; diferentemente dos religiosos, as respostas dos cientistas são sempre provisórias e têm certeza de que respostas provisórias são melhores do que respostas definitivas. Ambos se orgulham de suas respostas e ambos detectam facilmente o erro alheio.
Essa briga, contudo, seria salutar se não nascesse daí a necessidade do proselitismo. A memória está numa alma, diz o religioso; a memória está espalhada no hipocampo e no córtex cerebral, diz o cientista. Ninguém tem resposta onde está a memória, esta é a verdade, nem mesmo o nobel Bergson com seu élan vital. Uma palavra como "alma", "cérebro" ou "elã vital" não explica. Uma palavra é apenas um rótulo. E muitíssimas vezes rotulamos o desconhecido. E desconhecido é desconhecido, não se conhece, como o próprio nome diz: não há dogma nem teoria para o desconhecido. Nesse ponto, os behavioristas tinham razão. Mas só neste.
O religioso acha que o desconhecido é seu dogma e o cientista acha que o desconhecido é explicado por seu modelo. Se fosse apenas uma aposta pascalina, tudo bem. Mas não para aí. Não é uma aposta, é uma certeza, fundada sobre o nada. É uma infantilidade que nossa mente tem medo ou preguiça de jogar fora. É algo sem o qual nos acarretaria um estresse tremendo, afetando todo nosso sistema simpático e parassimpático. Não é fácil jogar fora uma certeza. Ela é o nosso polegar, que chupamos tranquilos.
Como disse, a coisa não para aí, uma certeza, como uma convicção política ou um time por que torcemos, é uma questão passional. Sendo uma certeza, cujas falhas nosso autoengano nos impede de enxergar, falamos dela com propriedade e tornamo-nos líderes também. Na verdade, sublíderes. E só nos aproximará de nós quem ama nossas ideias. Hoje, no mundo das redes sociais, desprezamos até amizades de longa data e parentes queridos, para sermos amados por quem comunga de nossas ideias e nos chama de liderzinho. Por conseguinte, odiamos quem faz o contrário. Este é o mundo atual: a volta das Termópilas. Xerxes is back. O maniqueísmo está hoje à toda, muito maior do que durante as guerras religiosas ou ideológicas. Ou tu és um dos meus ou não és ninguém. Cultua-me como sublíder e cultua meu líder, senão, ai de ti!
Mas como fazer para a convicção não virar certeza e para a certeza não ensejar a maldição do proselitismo? Não há caminho melhor do que o da dúvida socrática. Só sei que nada sei. Esse é meu líder, deturpado pelo prosélito Platão. Obviamente dizer que nada sabemos é um exagero do filósofo ateniense barbudo. Fingimos que nada sabemos se honestamente queremos saber mais. Este é o bom autoengano. Se somos todos fingidores, não sendo todos poetas, que finjamos filosoficamente: eu sei que sei algo, mas se fingir que nada sei, saberei mais. Se, contudo, não quisermos saber mais, o caminho é mais fácil: buscamos resignadamente um líder e pronto.
Querer saber mais, contudo, tem vantagens. Sabendo mais, vemos que não sabemos nada e que isso não importa. Como surgiu o universo? Como as sensações transformadas em impulsos elétricos jazem na nossa consciência e subconsciência como memórias? Por que o homem perdeu o seu rabo? O que é energia? Como funciona a linguagem? Tantas coisas são e serão mal respondidas, porque no meio da explicação há uma palavra que não significa nada, mas dá a impressão de explicar tudo. O biólogo estuda a vida e não sabe explicar o que é a vida, o religioso fala o tempo todo de Deus mas não tem a menor ideia do que ou de quem Ele é, o juiz fala de Justiça, o marxista de Igualdade, o meu vizinho fala de Moralidade. Anseios de encontrarmos supostas causas para supostos efeitos que simplesmente estão aí.
Querer saber mais, contudo, tem vantagens. Sabendo mais, vemos que não sabemos nada e que isso não importa. Como surgiu o universo? Como as sensações transformadas em impulsos elétricos jazem na nossa consciência e subconsciência como memórias? Por que o homem perdeu o seu rabo? O que é energia? Como funciona a linguagem? Tantas coisas são e serão mal respondidas, porque no meio da explicação há uma palavra que não significa nada, mas dá a impressão de explicar tudo. O biólogo estuda a vida e não sabe explicar o que é a vida, o religioso fala o tempo todo de Deus mas não tem a menor ideia do que ou de quem Ele é, o juiz fala de Justiça, o marxista de Igualdade, o meu vizinho fala de Moralidade. Anseios de encontrarmos supostas causas para supostos efeitos que simplesmente estão aí.
Somos um conjunto de contradições quando nos pautamos nessas Palavras que não significam nada além da nossa certeza de que explicam tudo. Usando essas palavrinhas-chave nosso discurso supostamente razoável se aproxima mais do daqueles pintores doidos, daqueles cantores de rock ou daqueles jogadores de futebol quando dão pitacos em assuntos dos quais não têm a menor ideia. Nesse sentido, não se distingue muito a essência de uma bobagem da mais profunda verdade arduamente conhecida, que custou vidas e gerações. Não há distinção entre a fala de um especialista e a de um maluco qualquer.
Olhemos para nossas mãos: não são tão parecidas com as de um símio? Por que nosso cérebro seria tão mais privilegiado do que o de um peixe que tem um bulbos olfatórios pronunciadamente maiores, tem a glândula pineal funcionando como quase um terceiro olho e distingue mais cores que nós? Somos superiores só porque o prosencéfalo inchado nos conduz a certezas, nossas chupetas, que, sugadas, nos fazem dormir tranquilos? Se essa sensação é boa, não há nada de mais em compartilhá-la. O problema do proselitismo está não no compartilhar, mas no querer convencer e no desprezo de quem não se convence. Nesse caso, ó prosélito, tua certeza não molda tua admirável personalidade, mas faz de ti um terrível algoz.