O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

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Sou um saci sumério de Botucatu.

sábado, 10 de dezembro de 2016

FAÇA O QUE EU FALO?

Em outros momentos falei sobre a necessidade de sermos liderados na falta de pensarmos a partir de nossa própria experiência. O líder, essa entidade do mundo das ideias, torna-se o imperativo categórico de nossa razão, aquele que nos orienta, por causa da nossa preguiça de memorizar fatos novos e pouco familiares, por causa de não sabermos que somos manipulados pela nossa memória falha, por causa da nossa necessidade de nos sentirmos numa família diferente daquela determinada pela genética e por causa de termos a ilusão de que tomamos nós mesmos essa decisão. Se não fosse só o fato de querermos ser liderados, há ainda um agravante, que nasceu provavelmente no Ocidente a partir de uma das muitas imposturas trazidas pelos persas, ao atravessarem as Termópilas, a saber, o proselitismo.

O proselitismo é uma das coisas mais terríveis que nos pode acontecer. Não basta que tenhamos um líder. É preciso que todos o sigam. É preciso que quem não o siga seja destruído. O raciocínio do prosélito é maniqueísta. É uma pena que tão pouca gente saiba o que significa o proselitismo. O mundo seria bem melhor com a consciência de que existe uma palavra para esse mal.


Para todos, a verdade, por oposição à falsidade ou à mentira, é o bem, portanto, o contrário da verdade só pode ser o mal. E esse mal está na religião que eu não sigo, na religião que se opõe à ciência que creio lógica, na ciência que se opõe à religião que creio certa, nos argumentos dos líderes que não nos cativam, nos ensinamentos que achamos maus. O bem, por conseguinte, é algo que se resume a algumas poucas máximas e me evita pensar em demasia. O prosélito não se contenta em achar uma verdade. O proselitismo é a manifestação de um cansaço de quem não quer mais argumentos, de quem não quer mais memorizar, de quem não quer mais raciocinar. O prosélito é, necessariamente, um fanático mesmo que não aja como sendo um.

São raros os ensinamentos religiosos que não sejam fundados no proselitismo, talvez por isso ache louvável a religião daqueles que não estão interessados em aumentar o números de seus adeptos, de tão certos que estão em seu autoengano. Já me soa abjeta aquela religião que se funda no convencimento dos outros (e não só no sentimento de superioridade por estar do lado da verdade), que aborrece evocando-se fora de contexto, que tem a necessidade de ser expressa fora do templo, que se expõe aos que não comungam com seus pressupostos. Alguém me dirá: e a ciência não é assim? Sim, é, embora não devesse sê-lo.

Se a religião devesse ser apenas o êxtase que nos remete para além do nosso eu e nos faz comungar com aquilo que os indianos chamariam de Brahman, como faz a filosofia de forma mais racional, como se nos apresentam temporariamente os estados de consciência alterada, como o sono, a bebida ou qualquer opiáceo, sedativo, narcótico, estimulante ou alucinógeno que mexa com nosso sistema nervoso, a ciência deveria ser apenas a alegria do conhecimento e a alegria ainda maior da profundíssima ignorância.



Mas há cientistas mais fanáticos do que os religiosos. Os religiosos têm certezas e respostas às questões existenciais fundadas em suas convicções e em seus líderes. Já os cientistas alicerçam sua fé com bibliografias, autoridades que testam e provam; diferentemente dos religiosos, as respostas dos cientistas são sempre provisórias e têm certeza de que respostas provisórias são melhores do que respostas definitivas. Ambos se orgulham de suas respostas e ambos detectam facilmente o erro alheio.

Essa briga, contudo, seria salutar se não nascesse daí a necessidade do proselitismo. A memória está numa alma, diz o religioso; a memória está espalhada no hipocampo e no córtex cerebral, diz o cientista. Ninguém tem resposta onde está a memória, esta é a verdade, nem mesmo o nobel Bergson com seu élan vital. Uma palavra como "alma", "cérebro" ou "elã vital" não explica. Uma palavra é apenas um rótulo. E muitíssimas vezes rotulamos o desconhecido. E desconhecido é desconhecido, não se conhece, como o próprio nome diz: não há dogma nem teoria para o desconhecido. Nesse ponto, os behavioristas tinham razão. Mas só neste.

O religioso acha que o desconhecido é seu dogma e o cientista acha que o desconhecido é explicado por seu modelo. Se fosse apenas uma aposta pascalina, tudo bem. Mas não para aí. Não é uma aposta, é uma certeza, fundada sobre o nada. É uma infantilidade que nossa mente tem medo ou preguiça de jogar fora. É algo sem o qual nos acarretaria um estresse tremendo, afetando todo nosso sistema simpático e parassimpático. Não é fácil jogar fora uma certeza. Ela é o nosso polegar, que chupamos tranquilos.

Como disse, a coisa não para aí, uma certeza, como uma convicção política ou um time por que torcemos, é uma questão passional. Sendo uma certeza, cujas falhas nosso autoengano nos impede de enxergar, falamos dela com propriedade e tornamo-nos líderes também. Na verdade, sublíderes. E só nos aproximará de nós quem ama nossas ideias. Hoje, no mundo das redes sociais, desprezamos até amizades de longa data e parentes queridos, para sermos amados por quem comunga de nossas ideias e nos chama de liderzinho. Por conseguinte, odiamos quem faz o contrário. Este é o mundo atual: a volta das Termópilas. Xerxes is back. O maniqueísmo está hoje à toda, muito maior do que durante as guerras religiosas ou ideológicas. Ou tu és um dos meus ou não és ninguém. Cultua-me como sublíder e cultua meu líder, senão, ai de ti!

Mas como fazer para a convicção não virar certeza e para a certeza não ensejar a maldição do proselitismo? Não há caminho melhor do que o da dúvida socrática. Só sei que nada sei. Esse é meu líder, deturpado pelo prosélito Platão. Obviamente dizer que nada sabemos é um exagero do filósofo ateniense barbudo. Fingimos que nada sabemos se honestamente queremos saber mais. Este é o bom autoengano. Se somos todos fingidores, não sendo todos poetas, que finjamos filosoficamente: eu sei que sei algo, mas se fingir que nada sei, saberei mais. Se, contudo, não quisermos saber mais, o caminho é mais fácil: buscamos resignadamente um líder e pronto.

Querer saber mais, contudo, tem vantagens. Sabendo mais, vemos que não sabemos nada e que isso não importa.  Como surgiu o universo? Como as sensações transformadas em impulsos elétricos jazem na nossa consciência e subconsciência como memórias? Por que o homem perdeu o seu rabo? O que é energia? Como funciona a linguagem? Tantas coisas são e serão mal respondidas, porque no meio da explicação há uma palavra que não significa nada, mas dá a impressão de explicar tudo. O biólogo estuda a vida e não sabe explicar o que é a vida, o religioso fala o tempo todo de Deus mas não tem a menor ideia do que ou de quem Ele é, o juiz fala de Justiça, o marxista de Igualdade, o meu vizinho fala de Moralidade. Anseios de encontrarmos supostas causas para supostos efeitos que simplesmente estão aí.

Somos um conjunto de contradições quando nos pautamos nessas Palavras que não significam nada além da nossa certeza de que explicam tudo. Usando essas palavrinhas-chave nosso discurso supostamente razoável se aproxima mais do daqueles pintores doidos, daqueles cantores de rock ou daqueles jogadores de futebol quando dão pitacos em assuntos dos quais não têm a menor ideia. Nesse sentido, não se distingue muito a essência de uma bobagem da mais profunda verdade arduamente conhecida, que custou vidas e gerações. Não há distinção entre a fala de um especialista e a de um maluco qualquer.

Olhemos para nossas mãos: não são tão parecidas com as de um símio? Por que nosso cérebro seria tão mais privilegiado do que o de um peixe que tem um bulbos olfatórios pronunciadamente maiores, tem a glândula pineal funcionando como quase um terceiro olho e distingue mais cores que nós? Somos superiores só porque o prosencéfalo inchado nos conduz a certezas, nossas chupetas, que, sugadas, nos fazem dormir tranquilos? Se essa sensação é boa, não há nada de mais em compartilhá-la. O problema do proselitismo está não no compartilhar, mas no querer convencer e no desprezo de quem não se convence. Nesse caso, ó prosélito, tua certeza não molda tua admirável personalidade, mas faz de ti um terrível algoz.

terça-feira, 8 de novembro de 2016

NÃO EXISTEM LÍNGUAS

Não é de hoje que me atormenta uma ideia e eu resolvi compartilhar. Todo mundo fala de línguas, dialetos, idioletos. Todos imaginam um sistema linguístico, acima das nuvens, nas esferas plotinianas, no mundo das ideias. Esse sistema é a langue dos estruturalistas. A fala seria, segundo esse modo de ver, uma coisa imperfeita, saída da boca dos mortais, a tal parole que apenas atualiza a língua. Mas e se todos os falantes morressem, para onde iria essa langue? Reencarna-se ou vive solitária no mundo ideal, sem ter com quem dialogar? Acho que poucos dariam essa resposta. Ressurreição de línguas é privilégio de poucas, como o latim, o sânscrito ou o hebraico. Mesmo renascidas, voltam bem diferentes.

O hitita morreu de fato, mas pelo menos deixou sua escrita. E as línguas que nem isso fizeram? Não estão essas línguas no nada, no Duat, lançadas para lá implacavelmente por Maat, devoradas por Ammit? Sim, acredito que houve línguas cuja reconstrução requer pode ser imaginada. Acredito inclusive que língua não é invenção do cabeçudo Homo sapiens. Língua sequer é uma invenção: é grito orquestrado de um bando de prossímios, é convenção que perpassa o élan vitale para cultuar a sobrevivência. Não existe proto-sapiens, sr. Merrit Ruhlen. Seu empenho busca uma ficção. Seu raciocínio é autoengano. Seu salário é o de um artista. Pronto, falei, ganhei coragem. Rogai por mim, ó santo Rubem Alves!


A convenção nasceu no bando e o homem nunca foi ermitão, fosse ele pelado ou não, cabeçudo ou não, carnívoro ou não. Não foi o cérebro inchado que criou a área de Broca: ela estava lá antes de sermos gente, antes das cidades e dos deuses, quando trincamos a primeira pedra sem saber o porquê. Ninguém nos ensinou. Como ninguém ensina os bebês a encontrarem os formantes ideais de um fonema, a primeira língua não nasceu no Homo sapiens, façam-me o favor! Isso é óbvio. Jamais reconstruiremos a língua de Adão ou de Noé. Durma com um barulho desses, Goropius Becanus!

Então assim começa nossa conversa. No princípio era uma falação só. Um palavreado ecoava da mata. Se os navegadores portugueses tivessem podido escutá-lo de suas caravelas, percebê-lo-iam léguas mar adentro. Mas foi bem antes disso, na verdade antes de tudo, antes dos testemunhos de Ur, antes de Stonehenge e de Göbekli Tepe, antes talvez do Sahelanthropus tchadensis. Sim, os homens de Neanderthal falavam e, antes deles hominídeos ainda mais primitivos. Não me venham com exclusividades. Todos foram filhos de Deus.

Imaginam a expressão desses tempos primordiais? Cada palavra, migrando por gerações, mudando-se, perdendo-se, inventando-se. O homem nunca mais parou de falar porque não consegue parar de pensar. Mas há muito bicho que pensa. Não me refiro a macacos ou demais mamíferos, nem a aves. Às vezes quero acreditar que até aranhas aracnófagas do gênero Portia têm raciocínio. Até mesmo as planárias têm memória, pois podem ser condicionadas com choques. Que diabos de prioridade é essa do homem? Não há salto qualitativo. Não pode haver. Mais que isso, não estamos no final da escala evolutiva porque não há escala alguma. Não somos tudo o que pensamos ser. Isso é lenda do Renascimento.



Mas voltemos às línguas. As palavras estão num contínuo temporal, desde que grunhires se tornaram símbolos. Aprendidas, encaixadas em modelos, modificadas, mandadas para a frente. Cães distinguem seus latidos. Aves sabem distinguir um canto de acasalamento de um aviso de perigo. Se não são falas articuladas, como já nos ensina o divino Aristóteles e não um pós-moderno cabeça de bagre, isto é outra coisa. Mas o princípio é o mesmo.

Pensemos então, para ficar mais simples, dado o espaço que a paciência de um leitor concede a uma postagem de blog: o que vale agora é a palavra não grunhida, aquela articuladinha, essa sim, é exclusividade do homem, dizem. Palavras, signos, paradigmas, regras. Ufa, de novo sou o centro, afirma o que se diz descendente de Adão. Eu me precaveria, antes de apaixonar-me por mim mesmo e pela minha espécie, apenas com essa descoberta. Um exame humilde da realidade não custa muito: só a destruição de nossa auto-estima. Isso é superável. Nada que um suicídio não resolva. 

Vamos lá: eu não posso provar que a fala articulada nasceu nos pré-homens. Isso é questão de fé minha. Acabou o papo, não quero bate-boca. Para mim, isso é razoável porque eu não sou um hegeliano romântico. Vamos partir de onde queremos começar: do mundo habitado por gente faladeira. Renuncio à reconstrução da fala adâmica. Vamos pensar em algo mais verossímil: num tempo longe pra dedéu, a long long time ago, porém já era enfestado de tagarelas, onde línguas pululavam por toda parte.

Mas que são essas línguas? Secamente falando, línguas são palavras que podem ou não ser segmentadas em unidades menores (sufixos, prefixos etc) e línguas são regras, que formam unidades maiores (locuções, frases, parágrafos, textos). Modelos de tudo isso estão na nossa cabeça. Prova disso é a nossa fala. Ok? Parece razoável agora?

Essas palavras e semipalavras estão organizadinhas em cumbucas mentais de vários tipos. Uma mangueira é uma árvore, mas não é a árvore. Uma mangueira é também um objeto de plástico para regar plantas (inclusive mangueiras árvores). Mangueiras dão mangas. Mas as camisas também têm mangas, que não são as mangas das mangueiras árvores. Manga se diz mango em inglês. Mas se peço duzentos mangos para você, não é a fruta que eu peço, pois não estou falando inglês e você sabe disso. Informação zoada, mas toda organizada de alguma forma. Um caos wittgensteiniano, uma arrumação saussuriana, numa memória infinita bergsoniana. E tem mais: há a memória específica. Só de pensar na manga da casa de minha tia Alzira em Piramboia eu salivo mais que o cão de Pavlov. Enfim, eu sei o que é uma manga mas não sei o que é mwembe nem o que é cambe, mesmo que a primeira seja uma manga para um falante de suaíli e a segunda seja uma manga para um falante de somali.

Bom, fato é que eu chamo aquela fruta caroçuda e deliciosa de manga e não de cambe, danem-se os somalis. É isso que tem sentido para mim. Ignoro a expressão somali, porque não tenho planos de morar na Somália. É como se cambe não existisse para mim. Se estou jogando pôquer, danem-se as regras do truco, do rouba-monte, do buraco ou da canastra.



Mas não só eu chamo aquilo ali de manga. Na verdade, as pessoas que me podem dar, vender ou roubar uma manga tratam-na com o mesmo nome (ou algo tão parecido que, desde criancinha, não consigo perceber a diferença acústica de seu modo de pronunciar). Não conheço nenhum somalífono que me entregue a fruta que desejo. Mas atenção! Se quero uma manga e não tem ninguém por perto, trepo no pé e como a anacardiácea sem falar uma só palavra (e às vezes sem pensar nela também, quero acreditar). Se necessito de ajuda ou se quiser compartilhar a minha madeleine piramboiense, aí sim, a palavra ressurge do fundo da memória infinita e quem me ouve, não sendo um somaliano, entenderá. E olhem que manga é uma palavra bem conhecida. Não precisa que meu ouvinte a reconheça só por ser lusófono. Um falante de tagalo, húngaro, letão, norueguês ou manx, com um pouquinho de boa vontade, também reconhecerá alguma palavra parecida com essa.

Pois bem, uma palavra é um acordo com meus próximos, tem uma história e tem uma difusão. Se ignoramos um desses três pontos, falamos bobagem. Uma palavra não depende diretamente da língua que eu falo a não ser por outras mais convenções: de pronúncia, de morfologia e de sintaxe. Mas essas convenções também têm seu compartilhamento, sua história e sua difusão. Discorrer sobre ao valor de verdade acerca da feminilidade morfológica da manga é possível tanto em português quanto em árabe. Afirmar que uma manga é um substantivo beira o universal. Colocá-la no lugar certo da minha expressão nem sempre é uma escolha. E o que eu devo fazer não é exclusivo da minha língua.

Mas tem gente que fala diferente. A expressão do espanhol é diferente da minha, mas menos diferente da de um galego e muito diferente da de um estoniano. Mas mesmo aí vê-se um continuum com alguns pequenas trincheiras ou grandes precipícios nas fronteiras linguísticas causados pela história, nada mais do que pela história. Mesmo assim, uma manga é possível de ser arremessada por cima do precipício basco ou húngaro por meio de seus vizinhos com seus sistemas tão diferentes.

Enfim, sistemas. É isso que as pessoas têm na sua cabeça. Conjuntos de palavras e seus elementos. Conjuntos de regras. Isso está junto com outros conjuntos de comportamento. Falar é uma questão de ética. O sistema é uma questão de psicologia e neurologia.



Mas se é assim, se só há sistemas individuais com intersecções nas suas presenças e ausências de informação herdada, cadê as línguas? Nas nuvens? Na sociedade? Qual sociedade? A que discrimina este ou aquele falante, chamando o sistema do outro de mero dialeto? Há tempos se sabe que dialetos são sistemas como qualquer língua. Essa palavra "dialeto" devia ser banida da linguística por não ser científica e "idioleto" também, por ser redundante. Dialeto é simplesmente uma questão política. Não existem dialetos nem idioletos, só há sistemas. E sistemas são individuais. Não existem línguas: é a ilusão da sociedade que gera a ilusão da língua. Generalização e preconceito policiadas pela convenção ou pela imposição da lei. Língua é o que nos oferece o superego no lugar do sistema. O que sobra de nós, chicoteado pela Verdrängung freudiana, é aquele pouco que podemos chamar de direito do falante: tudo que se fala, que se ouve e se sabe. Fora isso, só há reconstrução, que o próprio indivíduo mal consegue fazer sozinho, sem a intromissão da sua fantasia. O falante não é o mais importante para a língua. O ouvinte é que é. Ou o leitor. O falante está só com seu sistema.

Mas o sistema não é flexível a ponto de incluir toda a variação e todos os dialetos? Não. Não existe todos. Existem alguns. E não me venham falar de internet, seus neo-renascentistas! Existem somente alguns. Os alguns são nosso mundo. E é isso que os falantes poliglotas fazem. É isso que os falantes que dominam vários registros de uma mesma língua fazem. É isso, enfim, que todos os falantes fazem.

Um sistema platônico, no céu, julgando este humilde sistema particular aqui não existe, sinto muito. Até porque sistema particular é redundância. As línguas, como seres políticos, acreditam ser esses sistemas transindividuais. E são. Mas esses sistemas não existem. Conseguimos falar porque perseguimos um ideal: um ideal de pronúncia, um ideal de significado, um ideal de regra, um ideal de língua. O mundo se move assim: por ilusões. E isso se chama civilização. Mas os pesquisadores da linguagem não precisariam ser tão iludidos quanto os falantes, escravizados pelo neobando que é a civilização. Mas são iludidos. Uma pena, pois jamais nascerá ciência alguma assim. Nem agora nem nunca. Nietzsche, se tivesse tido mais tempo, diria, novamente: an ihrem Mitleiden mit den Menschen ist die Sprache gestorben! Nunca o bigodudo estaria tão certo.

Aprendam definitivamente. Só há aquilo que não existe! E antes do princípio já era o verbo.

terça-feira, 25 de outubro de 2016

WHY DON'T THEY STAY YOUNG?

I've got a secret. I've been hiding under my skin.


How many roads must a man walk down before you can call him a man? We all need someone to talk to. my oh my. I've been alone with you inside my mind and in my dreams. I've kissed your lips a thousand times. Gimme all your lovin', all your hugs and kisses too, I've never seen you looking so gorgeous as you did tonight. I've never seen you shine so bright you were amazing. Kissing like a bandit stealing time underneath the sycamore tree. We're talking away I don't know what I'm to say I'll say it anyway: "Watch out boy she'll chew you up, oh, here she comes. She's a maneater". She was more like a beauty queen from a movie scene. I said don't mind, but what do you mean I am the one who will dance on the floor in the round. She said I am the one will dance on the floor in the round but girls they want to have fun. No place for beginners or sensitive hearts when sentiment is left to chance. Time, it needs time to win back your love again I will be there. Take my tears and that's not nearly all. Oh...tainted love! 




I feel so unsure as I take your hand and lead you to the dance floor as the music dies. Something in your eyes calls to mind the silver screen and all it's sad good-byes. No April rain, no flowers bloom; no wedding Saturday within the month of June. On a dark desert highway, cool wind in my hair, warm smell of colitas. Rising up through the air. Let's dance in style, let's dance for a while. All my instincts, they return and the grand facade, so soon will burn without a noise, without my pride I reach out from the inside. Heaven can wait, we're only watching the skies. Hoping for the best but expecting the worst. She'll only come out at night The lean and hungry type. Nothing is new, I've seen her here before. Watching and waiting: she's seated with you but her eyes are on the door. Knock, knock, knocking on Heaven's door.We've known each other for so long. Your heart's been aching but you're too shy to say it. But it's easier. Comin' straight from the heart. Bang bang bang on the door, baby! Such a lovely place, such a lovely place. such a lovely face! You come and go, you come and go. Loving would be easy if your colors were like my dream. But I see your true colors shining through! I see your true colors: baby's got blue eyes like a deep blue sea on a blue blue day. 

Every night she walks right in my dreams since I met her from the start I'm so proud I am the only one who is special in her heart. The girl is mine, the doggone girl is mine. It's poetry in motion. She turned her tender eyes to me. As deep as any ocean. As sweet as any harmony. She's an easy lover, she'll take your heart but you won't feel it. She's like no other, and I'm just trying to make you see. Her hair is Harlow gold, her lips sweet surprise. Her hands are never cold, she's got Bette Davis eyes. I just wanna tell you how I'm feeling. Gotta make you understand. But I'm never gonna make it without you, Do you really want to see me crawl? That cold black cloud is comin' down. Never gonna tell a lie and hurt you.  I howl and I whine. I'm after you. Mouth is alive all running inside. And I'm hungry like the wolf. 



I don't want to start any blasphemous rumours but I think that God's got a sick sense of humor. Who's gonna pick you up when you fall? Who's gonna hang it up when you call? Who's gonna pay attention to your dreams? Who's gonna plug their ears when you scream? Do you really want to hurt me? Do you really want to make me cry? Precious kisses words that burn me. Lovers never ask you why. Every breath you take, every move you make, every bond you break, every step you take I'll be watching you. I gotta be cool relax, get hip, get on my track's. Take a back seat, hitch-hike and take a long ride on my motor bike

It ain't me, babe. We don't need no thought control. Oh you're so condescending. Your gall is neverending. We don't want nothin', not a thing from you. Here in my car I feel safest of all, I can lock all my doors. It's the only way to live: in cars. Here comes the rain again, falling on my head like a memory. It's so hard to get old without a cause. So take a look at me now, 'cause there's just an empty space. I don't want to perish like a fading horse. All I know, all I wanna do is hold her. She's the life that breathes in me. Well it's set way back in the middle of a field, Just a funky old shack and I gotta get back.

Distant ships sailing into the mist. A place where nobody dared to go, the love that we came to know. Sweet dreams are made of this. Who am I to disagree? Let me sail, let me sail, let the Orinoco flow, We are in Xanadu. Let me reach, let me beach on the shores of Tripoli. Come on Eileen, well I swear. They really pack 'em in. The in crowd say it's cool. To dig this chanting thing. I wanna take you down to Kokomo, we'll get there fast and then we'll take it slow. That's where we wanna go, way down in Kokomo. Tropical the island breeze. All of nature wild and free. This is where I long to be: la Isla Bonita. All the Japanese with their Yen. The party boys call the Kremlin. The Chinese know. They walk along like Egyptians. You dropped a bomb on me, baby. And when I get that feeling I want sexual healing. How can we dance when our earth is turning? How do we sleep while our beds are burning?



I hear stormy weather movin' in. 'Bout to break it, about to begin. Hear the thunder, don't you lose your head. Rip up the roof and stay in bed. It's raining again. Oh no, my love's at an end. How do you think I'm going to get along, without you, when you're gone? How can u just leave me standing? Alone in a world that's so cold? Maybe I'm just 2 demanding. Maybe I'm just like my father: 2 bold. Down in the street there is violence and a lots of work to be done. No place to hang out our washing and I can't blame all on the sun, oh no. You could have a steam train if you'd just lay down your tracks you could have an aeroplane flying if you bring your blue. I've seen you on the beach and I've seen you on TV. Now that ain't workin' that's the way you do it. You play the guitar on the MTV. Money for nothin' and your chicks for free. I guess you'd say we used to talk. About busting out. We'd break their hearts. Together - forever. With or without you.



The times they are a-changin'. Say, say, say what you want but don't play games with my affection. Take, take, take what you need but don't leave me with no direction. Day after day it reappears. Night after night my heartbeat shows the fear. Ghosts appear and fade away .Les yeux sans visage: eyes without a face. I heat up, I can't cool down. You got me spinnin' 'round and 'round. 'Round and 'round and 'round it goes where it stops nobody knows. I ain't afraid of no ghost! Holding back the years, thinking of the fear I've had for so long. When somebody hears, listen to the fear that's gone. Don't worry, I won't hurt U. I only want U 2 have some fun. I was dreamin' when I wrote this. Forgive me if it goes astray. It's the end of the world as we know it. But I still haven't found what I'm looking for and I guess that's why they call it the blues! We built this city on rock n' roll! Everybody wants to rule the world: "if you're blue and you don't know where to go to why don't you go where fashion sits?". Shout, shout, Let it all out. These are the things I can do without. Come on, I'm talking to you! Once upon a time I was falling in love but now I'm only falling apart. There's nothing I can do, a total eclipse of the heart. 

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

UMA CAIXA QUE DESLIZA

Suponhamos que eu não me lembre de quase nada de meu passado e que subitamente passe a ouvir vozes e perceba que pessoas estão presas em caixas com rodas, que descem uma ladeira íngreme. Pouco tempo depois, verifico que eu também estou numa caixa similar e que um alto-falante me está ensinando coisas muito variadas, entre elas, instruções que aos poucos começam a fazer sentido para mim.
O aspecto dessa caixa deslizante é singular: as laterais são translúcidas, mas sua parte dianteira e traseira são completamente opacas, de modo que não consigo ver para onde vou e apenas me lembre daquilo que acaba de passar. Dentro dessa caixa, há diversos objetos que me mantêm saudável e distraído, bem como posso ver a paisagem que passa pelas laterais. Aprendo, aos poucos, que posso comunicar-me com as pessoas das outras caixas e, aos poucos, essa comunicação se restringe a algumas delas, não a quaisquer umas.
Também elas podem comunicar-se comigo, por meio de um fone que aprendemos a manejar. Por fim, encontro na caixa um painel. Posso ler lá muitas mensagens, algumas mais antigas que outras e diversas delas incompreensíveis. Posso deixar minha mensagem nesse painel também, de modo que alguém pode vir a ler ou não o que escrevi.
Tudo que faço alterna lucidez e delírio, de modo que, se quisesse, seria difícil distinguir o sono da vigília, a loucura do exercício pleno da razão. 



Aos poucos, seleciono as mensagens que me agradam, releio-as ou procuro similares. A voz que fala ininterruptamente pelo alto-falante, às vezes de modo incompreensível, me aconselha de tempos em tempos a ler algumas mensagens, mesmo que não me agradem tanto de início. Estando todas as caixas em movimento, vejo algumas explodirem quando entram em colisão com uma pedra (o caminho está cheio dessas perigosas pedras que as fazem desaparecer), outras explodem aparentemente sozinhas, outras se chocam entre si, causando destruição mútua.rio, de modo que, se quisesse, seria difícil distinguir às vezes o sonho da vigília, a loucura do exercício pleno da razão.
Além do alto-falante ininterrupto, do painel e do fone, há dois botões, sobre os quais aprendo que um deles faria minha caixa explodir e o outro, uma caixa alheia ir pelos ares. Muito já se falou sobre esses botões. Há ainda uma volante totalmente inútil, uma vez que não se pode visualizar para onde a caixa vai. Esse volante, todavia, pode fazer-me desviar de pedras imaginárias ou lançar-me sobre outras caixas.



Posso ligar-me com afeição, compaixão, medo ou respeito às pessoas das outras caixas ou ainda a outros seres e pessoas sobre cuja existência apenas li no painel ou ouvi pelo fone ou pelo alto-falante. Todas essas crenças me moldam, estabelece as minhas relações com as outras caixas e retardam minhas ações impulsivas.
O contato com o alto-falante, o painel e o fone fazem-me sentir igual ou diferente das demais pessoas e crer ou não na uniformidade e no bom-senso das minhas ações.
Além disso, posso imaginar a finitude ou a infinitude do trajeto descendente, conjecturar se as mensagens que faço são legíveis para todos, se posso ler, de fato, tudo que lá foi escrito ou mesmo se o que estou vendo e ouvindo é real. Essas imaginações podem impressionar-me ou não, fazendo-me feliz, triste ou indiferente, surpreso, desesperado, revoltado ou intrigado.
Posso imaginar como tudo isso começou ou como passei a perceber o alto-falante. Posso achar tudo isso interessante ou lamentável. Posso esquecer-me disso, distrair-me, apenas contemplar a paisagem ou refletir sobre minhas conclusões.
Independentemente da minha postura, posso fingir estar alegre, triste ou indiferente, de tal modo que nem mesmo eu posso às vezes distinguir qual é minha posição frente a essa situação.
Posso, sinceramente ou não, descrever esta minha situação de prisioneiro de maneira neutra, imaginar-me noutra caixa, querer influenciar as demais pessoas com minhas opiniões, obrigando-as a agir como quero; posso compartilhar, ou não, minhas impressões, certezas, prazeres, angústias, tentar explicar esses sentimentos ou mostrar que seria melhor ignorar tudo.



Posso ouvir opiniões alheias ou calar-me sobre elas. Por fim, posso tentar encontrar alguma coerência nelas, mudar a minha própria.
Isso tudo, como foi dito, pode ser expresso pelo fone a quem suponho que queira ouvir-me, pode ser gravado sob a forma de mensagem que suponho coletiva, enquanto a caixa segue sua marcha inexorável ladeira abaixo, rodeada de perigos.

sábado, 6 de agosto de 2016

RACIOCÍNIO LÓGICO E BOM SENSO

Quando vejo polarizações de opiniões e discussões acaloradas sobre algum tema, volta e meia alguém evoca o "bom senso". Outros, mais insanos, a meu ver, resolvem falar de "raciocínio lógico". Mas uma dúvida sempre me acomete: lógica tem algo a ver com bom senso? Pior: é de bom senso evocar a lógica para resolver qualquer problema? 

Vejamos. Em lógica, uma condição só é falsa quando a frase antecedente é verdadeira e a consequente é falsa. Apresentada dessa forma, aparentemente, temos algo que está de acordo com o bom senso. Exemplifiquemos: suponhamos que choveu e suponhamos também que temos a rua à nossa frente toda molhada, ora, partimos de um raciocínio muito básico que parte da afirmação da verdade de "choveu" da mesma forma que é verdade que "molhou".



Então, facilmente concluímos: "se choveu, molhou". Minha experiência não erra. É batata, como diria Nélson Rodrigues: "choveu, molhou". E se não choveu? Ora, se não choveu, não molhou. Ambas as frases "se choveu, molhou" e "se não choveu, não molhou" são verdadeiras e sua óbvia verdade (ainda que sintamos que essas frases sejam um pouco estranhamente formuladas), diria um leitor benevolente (que queira entender o problema que quero apontar e não encrencar, desde o início, com o meu raciocínio), está consoante às suas afirmações ou negações. "Se choveu, molhou" é verdadeira+verdadeira, portanto verdadeira; "se não choveu, não molhou" é falsa+falsa, portanto verdadeira. Repitamos, uma condição só é falsa quando a frase antecedente é verdadeira e a consequente é falsa. Na primeira oração, a frase antecedente é verdadeira e a consequente é verdadeira; na segunda oração, a frase antecedente é falsa e a consequente é falsa. Portanto, ambas são verdadeiras. 

Isso nos faz pensar que, usando a mesma afirmação acima anunciada, se disséssemos "se não choveu, molhou" sabendo, desde o início, que "não choveu" é falso e "molhou" é verdadeiro, teríamos também uma frase verdadeira! Pode ser lógico, mas, convenhamos, não é de bom senso. Numa conversa, com certeza, uma possível reação a essa estranha frase, seria algo como "oras, não choveu, você não viu? e está molhado, caramba!", pois a frase "se não choveu, molhou" não faz muito sentido. É sentida, pelos apressadinhos, como falsa ou "ilógica". Na verdade, somente não está conforme o nosso bom senso.

Para entender bem isso, é preciso reler várias vezes o que foi afirmado acima para não mudarmos a regra no meio do jogo: pela lógica, uma condição só é falsa quando a frase antecedente for verdadeira e a consequente for falsa. Não é o caso de "se não choveu, molhou". Pela lógica, essa frase. que julgamos sem muito sentido, é tão verdadeira quanto as outras duas anteriores. Para a lógica, a única frase falsa seria "se choveu, não molhou" e não a invertida "se não choveu, molhou". Isso, se eu continuo admitindo que "choveu" e "molhou" são verdadeiras e não mudei de opinião no meio da conversa.

Perguntará o pouco familiarizado com o raciocínio lógico e sem paciência de admitir o que já foi admitido desde o início: como assim?

Vamos apresentar o problema de outro ângulo. Para a pessoa que diz ter bom senso, às vezes parece que tanto faz dizer "se choveu, molhou" como "se molhou, choveu". Para a lógica, não. Se invertermos, diríamos que "se molhou, choveu" e "se não molhou, não choveu" são verdadeiras. Mas o mesmo não se pode falar de "se não molhou, choveu" e "se molhou, não choveu": a lógica dirá que a primeira é verdadeira e só a segunda é falsa! Se reler as regras do jogo, verá que eu tenho razão.



Quem não está habituado aos conceitos da lógica, estranhará tudo isso e, uma vez convencido do que falo, concluirá que a lógica não tem lógica nenhuma, o que seria imensamente ilógico, pois, na verdade, está querendo dizer que o raciocínio lógico não tem muito bom senso. Mas, isso não é nada: a coisa pode ser ainda pior.

Se eu digo que "choveu" é verdade e que "caí" também é, só as frases "se choveu, não caí" ou "se caí, não choveu" são falsas. Qualquer outra combinação seria verdadeira: "se choveu, caí", "se caí, choveu", "se não choveu, não caí", "se não caí, não choveu", "se não choveu, caí", "se não caí, choveu" ! Isso não faz sentido? Realmente, não faz. Mas é lógico!  Assim como é lógico afirmar que é verdadeira uma frase como "se Pedro Álvares Cabral não descobriu o Brasil, o número atômico do magnésio é doze"... Releia o que disse até agora e me dará razão!

Das duas uma: ou a lógica não serve para nada (o que não é verdade), ou não devíamos chamar de lógico aquilo que não é. Nossa estranheza com o que é falso e com o que é verdadeiro em lógica vem da nossa não aceitação das regras do jogo. Se quero jogar xadrez, o cavalo anda em L, o rei anda uma só casa, o bispo anda na diagonal. Ninguém com bom senso pensaria em mudar as regras do jogo no meio de uma partida. As regras são dadas desde o começo e é isso que a lógica faz. Quem não concordar com elas, jogue outra coisa, ou não jogue. Para se falar de lógica, é preciso seguir os princípios da lógica e não usar seu nome em vão. Não é possível que alguém jogue xadrez com as regras do jogo de damas, ou que jogue pôquer com as regras do truco. O que estariam fazendo seria jogar damas com peças de xadrez e jogar truco com o nome de pôquer. Se usamos expedientes não-lógicos num raciocínio, não podemos chamar sua conclusão de "conclusão lógica". Obviamente, há muitos tipos de lógica, mas todas têm regras desde o início. O bom-senso, por exemplo, ao que tudo indica, não tem: isso já sabia Descartes, após rasgar seus escritos, paranoico com a Inquisição, com as malas prontas para a Suécia, onde morreria de frio (literalmente), dando aulas à caprichosa rainha Cristina.

No dia-a-dia, a coisa é bem diferente. Concluo desta forma: se está molhado é porque choveu, tenha eu visto a chuva ou não. Se choveu, o chão deve estar molhado, diz a minha experiência. Ademais, entre chover e ficar molhado há um lapso de tempo, inexistente nas proposições lógicas, cujos componentes estão alicerçados somente sobre o verdadeiro e o falso. Não há tempo na lógica, porque a lógica pretende flagrar o infinito atemporal, por isso foi usada por Galileu e faz parte da mente do Deus newtoniano: a verdade, para eles, era algo real, tal como era real o fato para os seiscentistas e setecentistas. Em suma, a verdade é algo absoluto, muito mais do que a realidade cheia de acidentes decorrentes da ideia platônica ou das hipóstases de Plotino. É a rede por trás da ilusão, que alicerça o pensamento de Einstein. Há algo e isso é lógico, se não matemático, como viam, cheios de vislumbre extático, os pitagóricos. Como será que essa ideia chegou à Magna Grécia e de lá ao Ocidente? Não me espantaria se não tivesse vindo dos egípcios, cujo Aton foi, sem dúvida, fonte remota de Javé e do Bem de Platão. Acidental, mas creio que há algo no cérebro do símio humano que impulsiona - raramente, é verdade - para unos absolutos, senão não teríamos pirâmides na América Central e as línguas não seriam estruturadas. Jung teria razão quando amalucadamente falava de arquétipos?



Seja como for, a sobrevivência é mais importante que o onírico devaneio em que está a juventude hoje, com a cabeça no nada, caçando pokémons com sua cara enfiadas nos iPhones ou acreditando mais do que nunca em conversas fiadas que os fazem explodir sítios arqueológicos. O ser humano ralou muito até ter os confortos das cidades e da tecnologia, até sentir-se convictamente superior com sua bazuquinha particular e se desse ao luxo de se implodir. Mas se é assim, penso eu, tudo isso foi graças a Aton. Hoje, a sobrevivência ficou em segundo plano, contaminamos ar e água, desfertilizamos a terra, descongelamos as geleiras e libertamos a besta permafrost de seu cárcere. A lógica fez que pensássemos que não somos feitos de tecido orgânico. A ilusão de imortalidade só se desfaz, individualmente, quando o médico anuncia nossa morte. Até lá, dia após dia, misturamos a lógica dos malucos, que tanto nos foi útil, com o atávico raciocínio do dia-a-dia (como, há anos, não uso a palavra "lógica" em vão, penso que é um pecado falar de "lógica do dia-a-dia"). O raciocínio, mais complexo do que o esqueleto radical da lógica, é fluido, como os infinitos rios heraclitianos. As regras podem mudar, sim, no meio do jogo do raciocínio: todo mundo sabe disso. O que está por trás da imensa maioria dos raciocínios é a sobrevivência e quase nunca a lógica.

E isso ficou bem claro após a Segunda Guerra, embora tenhamos esquecido e agora caminhamos para o desastre dos desastres: o que é verdadeiro, logicamente falando, nem sempre é o melhor. Tanto faz se algo é condizente com as premissas, se falta amor. Nasceu o culto ao ilógico. Mas veja: o raciocínio não é lógico e, justamente por isso, não consegue ser ilógico. Algo que não é da minha fé não é uma heresia, apenas outra fé. O que é diferente do que penso não é errado por definição. O que está para além da lógica: tempo e compaixão, por exemplo, não é ilógico, apenas outras coisas que alicerçam o raciocínio do convívio humano. É a praticamente a mesma diferença que se faz entre alternativa e perversão. Gostar de algo, seja lá o que for, obviamente não é errado, já gostar conscientemente de algo só porque ninguém gosta (por temor ou por asco) é frequentemente objeto de legislação do bom convívio entre os pares. Além do tempo e do amor, o raciocínio, alicerçado no bom senso, trabalha com algo que não tem raízes na lógica (e isso é sabido desde Hume): a causa.

Então, valha-me Deus, esquecendo-me da lógica: sou livre para afirmar que se está molhado é porque choveu, seja verdade ou não. Se não choveu, não haveria razão para algo estar molhado, argumentam: concordo ou não. Assim sendo, se concordo que está molhado e não choveu, é porque há outra causa: um cano arrebentado, por exemplo. Nossa vida tem a ver com expectativas e sobre elas atua o nosso raciocínio mais por meio de orações causais e concessivas, do que de condicionais. Se não choveu e está molhado, isso me causará espanto, mola da minha vida: "vejam! Que estranho! Está molhado, mas não choveu!"

Embora não tivesse chovido, o chão estava molhado. Mistério. Pode acontecer? Pode. Não é lógico, Deve haver alguma causa. Foi o fuça-fuça das causas que fez o nosso cérebro inchar e dar no que deu. Foi o julgamento das adversativas que fez o homem não ser um robô que trabalha com adições, condições e negações, como faz a lógica: não choveu, mas está molhado. Estranho, não? Estranho mas muito mais próximo da vida do que qualquer conclusão lógica. 

quarta-feira, 20 de julho de 2016

O INVISÍVEL

De repente está tudo aí. Anos atrás reclamei que ninguém respeitava as faixas de segurança e ninguém as respeitava mesmo. Não digo que possamos hoje atravessá-las de olhos fechados em cruzamentos sem semáforo e que todos os motoristas respeitarão a vida dos transeuntes em vez de preferirem a urgência de ficar parados alguns metros adiante. Mas, verdade é que alguma mudança se vê, ao menos em São Paulo, nesse quesito. E a mudança foi súbita. Algumas outras questões de cidadania, impensáveis anos atrás, por causa de uma suposta passividade do brasileiro, decretada fatalisticamente por sociólogos, que diziam conhecer sua essência, hoje são o ponto principal a ser considerado antes de qualquer atitude. Mudanças acontecem. Primeiramente o que há é uma pequena mudança pontual, depois e em pouco tempo, haverá o suficiente para toda a situação mudar, como gotas de tinta azul pingando numa banheira de água translúcida.

Mas o distraído imerso na banheira que não vê o gotejar ou, vendo-o, não se importa com isso, tem direito a espantar-se com a água toda azul, pouco tempo depois, e seu corpo também, a ponto de manchar a toalha em que secará seu corpo? Dirá que a mudança foi imperceptível, quando na verdade estava ali como qualquer mudança. Não tinha nada de invisível. Chocamo-nos muito fácil, mesmo que sejamos abalroados por indícios óbvios diariamente.



A mudança é um minúsculo embrião. Ocupará todo o espaço necessário para que se torne possível. Só não cresce aquilo que é impossível. Só não ocupa espaço se não for necessário. O que necessita de algo, porém, não segue nenhuma teleologia, nenhum plano, nenhum objetivo, nenhuma lembrança. Segue apenas sua fugaz e inconsequente vontade. Para o que tem vontade, não há entorno, não há nada além de si mesmo. Não é razoável pedir razoabilidade à vontade. Quem tem vontade, diz: "eu preciso disso", mesmo que seja a coluna de um edifício que desabará sobre sua cabeça.

Desabado o edifício, torna-se a vontade visível. Enquanto circulava, como brisa ou subreptícia sombra, não era menos visível, mas teima o mistagogo que era sim invisível e imprevisível. Não o culpemos. Todos somos sedentos de mistérios. Imaginar a vontade de mudança como invisível é apenas uma charmosa conversa para boi dormir.

O invisível de fato não muda nada. O invisível não existe se não muda. Tudo que existe é visível, direta ou indiretamente. Se o vento fosse invisível, de fato, não moveria as plantas. Se Deus fosse invisível, de fato, não surpreenderia os homens. O que se move existe. Mas nem tudo o que é movido é causado por algo que existe. As causas, essas coisinhas esquisitas a que se ligam as mentes humanas, são indiferentemente visíveis ou invisíveis, existentes ou inexistentes.

A única lei do universo é o movimento. Enquanto o universo não se movia, ele não era causa de nada, mesmo existindo. Não é possível mover-se e não ser causa de algo. O imóvel inexistente é a mais incompreensível das coisas: porque não causa nada. Para ser causa é preciso mover-se. Causa e movimento são a mesma coisa.



Um movimento sem causa é incompreensível. Uma causa sem movimento é um paradoxo. Portanto, são a mesma coisa. Por que dois nomes? Porque o movimento é para os nossos sentidos o que a causa é para nossa mente. Costuma-se ver a causa como anterior ao movimento. Mas, e se a causa pudesse ser imaginada como algo posterior ao movimento? Diriam: aí não seria causa, seria finalidade. Assunto sem fim... Quanta tinta já correu sobre a existência ou a inexistência das causas finais! Na verdade, o local da causa não está nem antes nem depois do movimento. Causa e movimento são a mesma coisa. 

Se caminho, digo que faço isso porque quero ir até ali. Então a causa de meu caminhar é a vontade de ir até ali? Não, isso é falso, essa causa antes do movimento não existe. A causa do meu mover é querer estar ali e o querer é algo que existe, movendo-se ou não: o mover-se é como a causa se realiza, como passa a existir para os outros. Achar que intenção é sinônimo de causa sempre foi um erro crasso que só pode ter raízes nas pobrezas lexicais das línguas.

Como seres volitivos, nosso querer se dá pela análise da circunstância em que estamos, a qual invariavelmente não é boa ou seria melhor se fosse de outro jeito. Portanto, querer é algo que está ligado à vida e à existência. A vida é movimento. Se é movimento, a vida também é causa, como dissemos. E da mesma forma que a existência não é sinônimo de causa nem de movimento, a vida tampouco o é.

Se causa é movimento, ao dizer: "chove", digo o mesmo que: "o movimento das gotas de chuva são a causa de minha mente pensar que chove". A existência dessa chuva depende de um julgar, meu ou de outrem, se de fato chove. A frase "chove" é verdadeira se eu ou alguém julgar que "é possível ver como uma verdade que o movimento das gotas da chuva são a causa de minha mente pensar que chove". Se deliro e digo chove, quem não vê a minha chuva de delírio poderá tolerantemente entender que aquela é a "minha verdade", não a "dele". A verdade, portanto, nesse sentido, depende de uma conivência e de uma tolerância, mas quem garantirá que não delira o que não vê a chuva? Nesse caso, dois julgamentos antagônicos não são suficientes: seria preciso uma terceira pessoa, e mais outras, e só depois de muitos dizerem: tu deliras é que poderemos falar de uma verdade consensual. O bom delírio, retamente assim designado, portanto, estará restrito, após esse veredito, a uma só pessoa, que diz que chove, e não a todos, que dizem que não chove. Mas, e se o grupo está dividido e metade afirma e a outra metade nega a existência da chuva? Nesse caso, a palavra delírio se torna abusiva e deveria ser substituída por outra mais aceitável, por exemplo, opinião. Concluindo, o delírio é uma opinião personalíssima e uma opinião nada mais é que uma verdade cindida. O relativista, portanto, torna o sentido da palavra "verdade" algo muito elástico e plural, portanto, inútil para se chegar a verdades consensuais.



Será delírio, porém, imaginar uma verdade consensual, compartilhada por todos, inquestionável? Não seria essa verdade um ser sem movimento, uma anticausa, uma causa de nada, portanto, um não-ser? Como equivaler a qualquer movimento um ser assim? Por que o universo de repente se expandiu, se era apenas algo que existia, sem mover-se e, portanto, sem causar bem ou mal algum?

A tempo: a verdade razoável não é a verdade consensual. 

Como seria? Para que a razoabilidade prevalecesse e vencesse, seria preciso a tirania do razoável? Seria preciso que fôssemos razoáveis à força? Seria preciso haver um mecanismo que reprimisse aquilo que não é razoável? Ora, uma verdade não-razoável é fundamento, portanto, causa e movimento de atitudes não-razoáveis. Se isso é personalíssimo, chama-se crime, pecado, delito, mancada. Se a verdade não-razoável é verdade cindida, é instalação do caos, voluntas maligna, inconsequência, convulsão. Pensemos: quantas vezes o ser humano não se pautou por ela e ainda se pautará? Para que a vontade não-razoável não prevaleça é preciso memória, lembrança dos seus movimentos (ou de suas consequências). Só se perdoa que a vontade não-razoável prevaleça quando é a sua primeira vez, isto é, quando suas consequências ainda são desconhecidas, ou quando a falta de memória existe de fato. Para que isso não acontecesse, o ser humano armou-se (em vão) de estelas, lápides, certidões, documentos, poemas e tudo que a escrita ou o mito teimam em imortalizar.

Mas há quem diga que o movimento é de tal forma alicerçado no momento atual, que não há duas vezes uma mesma verdade razoável ou não-razoável. Esse raciocínio tão agitado é, paradoxalmente, tão estéril quanto o não-movimento ou quanto a verdade consensual, não por ser anticausa e não-ser, mas por ser inútil ultracausa e super-ser. 

O movimento real está entre a negação e o além.

Não se confunde, porém, com nenhum dos dois, pois, confundindo-se, seria falta de movimento ou excesso de movimento. E nada disso seria útil. Nada disso seria razoável. Não serve para o raciocínio e, por conseguinte, não serve para a vontade e para a vida. O movimento real não é legislado pelo desejável, mas pelo razoável, que depende da memória, que depende do registro, que depende de quem os leia e os avalie. O que está fora do real é o invisível, que nada causa. Invisível porque não existe ou porque é inútil. Pena que nem todo ser inexistente ou inútil seja invisível: se fosse, só haveria causas razoáveis e a vontade se pautaria nelas. Mas porque é visível, a imaginação, irmã da insatisfação, lança-o à baila e convivemos com esses seres visíveis inexistentes e inúteis de forma cansativa e desnecessária, imaginando que fazem parte de nossa cara e gabada racionalidade humana.





quarta-feira, 22 de junho de 2016

QUESTIONAR E CONSTRUIR

Hoje, qualquer pessoa, armada de smartphone, consegue informar-se sobre algo de que não sabia nada cinco minutos atrás. Uma palavra deixa de ser apenas um nome e se torna conceito após uma consulta ao oráculo Google. Nossa até então ignorância se torna luminosa sapiência fugaz, que deve ser ruminada no atropelar-se ininterrupto por manadas de informações. Em vez de sabermos apenas soletrar o nome de uma palavra, agora nos inteiramos rapidamente de seu conteúdo e esse neoconhecimento - se assim podemos chamá-lo - tem a semelhança de um finíssimo véu de seda que pomos um sobre o outro, numa pilha sem fim, onde jamais o reencontraremos. Ao lado do antigo conhecimento enciclopédico de poucos, erigiu-se o conhecimento wikipédico de muitos, que sequer leem o verbete completo: apenas o suficiente para reforçar aquilo que já sabem, pondo um pouco de rejunte no seu pequeno e vaguíssimo conhecimento real. Eis o ser mais notável nos dias de hoje: o ignorante orgulhoso de sua ignorância. Para atingirmos esse nível, sem dúvida alguma, é desejável uma boa dose de autoengano.



A abundância de informações de hoje em dia nos permite ser críticos. Nunca houve tanta facilidade em questionar. Se essa facilidade advém de alguma capacidade lógica, ninguém negará que é preciso uma boa dose da nossa conhecida eterna falta de saciedade. Ora, desde que o cérebro inchou e o homem se pôs a raciocinar em cima de construções mentais, a falta de saciedade é a ordem do dia, da hora, do minuto. Até aí, morreu o Neves. Mas a pergunta que nos cabe fazer aqui só pode ser uma: é possível questionar, sem querer destruir? Alguém dirá que destruir faz parte da etapa seguinte ao questionar. Senão, vejamos.

Se concluo que algo não é bom - e, suponhamos, isso é inegável - que faço com essa conclusão?

Serei conservador? Porque concordo que não é bom mas - dane-se! - herdei-o de alguém de quem gosto.

Serei revolucionário? Já que me parece óbvio, uma vez detectado que algo não é bom, devemos riscá-lo da face da Terra.

Serei alienado? Mesmo vendo que não é bom, direi a mim mesmo que é bom, sim e chamo para a briga quem discordar de mim.

Enfim, o fato de alguém questionar, vendo que algo não é bom, não significa nada. A reação seguinte dependerá de como lidará com aquilo que deixou de ser bom. A crítica, portanto, levantará multidões de conservadores, revolucionários e alienados, que, em seguida, passam a engalfinhar-se e pulam uns nos cangotes dos outros. Nada de novo está sendo dito.

Ora, uma crítica incita, gera ou sugere a mudança da imagem do criticado, independente da reação escolhida. Nesse grande momento, o criticado não tem mais o direito de ter a sua essência da mesma forma que sempre foi e ainda era, momentos antes.

O criticado pode, por exemplo, permanecer sob urros dos que detectam a sua mudança de imagem. Mas a destruição é, necessariamente, o ato contínuo à crítica? É a destruição que o conservador e o alienado devem temer? É à destruição que o revolucionário deve almejar? Não há uma outra via? Decerto há, além do mero deixar como está. Se a solução mais comum, banal e imediata do pós-crítica é a destruição, nada impede que o oposto também possa ocorrer. E o oposto da destruição não só é a manutenção do status quo, mas também a construção.

A construção, porém, alerto, é algo raro, raríssimo no mundo atabalhoado do símio racional. Por quê? Se formos atentos ao mundo, essa resposta é quase óbvia. Acima de qualquer coisa, construir requer engenho. Falemos seriamente agora, quem não percebe que a inteligência é a mais fugaz de todas as manifestações dos milênios de humanidade? Sem esse engenho, não há construção nenhuma, apenas repetições de fórmulas que já não deram certo e foram esquecidas. A nova tentativa de algo que já sofreu crítica é uma lamentável forma de demonstração de que a espécie humana é tão inteligente quanto qualquer sapo, qualquer pelicano, qualquer quadrúpede que vagueia babando pela terra. Para mim, não há novidade nenhuma nesse fato, mas algumas pessoas ainda podem se escandalizar com a comparação do semidivino homem com torpes animais.

Repensando um pouco, percebemos que criticar significa romper a inteireza de algo que funcionava, bem ou mal. Ora, o primeiro passo após a ruptura da inteireza é geração de polos abstratos, extremamente maniqueístas, que facilitam o nosso questionar. Portanto, não se constrói nada logo após a crítica. Quando o rei percebe que está nu, só lhe cabe tapar as vergonhas. Nenhuma outra solução poderia ocorrer-lhe no momento. Quem não concordar, observe melhor doravante: é essa a regra.

Conclui-se, de forma quase tautológica, que é mais fácil destruir que construir. A crítica alavanca destruição apenas por vicioso hábito e é sobre a fedentina do ser desintegrado que demorará para surgir algo de fato novo. Eis a regra de ouro: é mais fácil substituir o ruim pelo pior do que criar algo absolutamente novo. Os românticos, nesse ponto, foram os mais equivocados dos homens.



Quando a metade boa, a esquerda (onde está o coração), do visconde Medardo de Terralba planejava sua máquina, no maravilhoso conto Il visconte dimezzato, de Italo Calvino, não conseguia pensar em nada simples, que pudesse trazer felicidade a todos, e, por isso, visando à mais útil das construções, construiu a máquina mutante mais inútil de todas. Mestre Pietrochiodo, sempre a serviço da utilidade, só consegue ser um eficaz servo da vontade de poder e do sadismo da outra metade má, a direita, do mesmo visconde, que havia sido partido ao meio numa guerra. Será que Calvino detectou que o bem é inábil como a mão esquerda de um destro e só constrói coisas inúteis que não saem do esquemático mundo das ideias dos projetos, enquanto ao mal se atende muito prontamente e até com certa criatividade, pois, de alguma forma, tem mais a ver com nossos hábitos?

Mas o homem não está fadado ao mal. A prática do mal é tão insuportável quanto a teoria do bem. I nostri sentimenti si facevano incolori e ottusi, poiché ci sentivamo come perduti tra malvagità e virtù ugualmente disumane. Se destruir é algo corriqueiro, mas não é o ideal, construir parece ser a solução.

Mas há uma diferença enorme entre destruir e construir para além dos prefixos que os distinguem como meros opostos. Construir requer paz, construir requer tempo. Da amalucada tabula rasa só sai fumaça, cinza, monturos de cascalho. Derruba-se uma edificação em tempo dez mil vezes menor do que o utilizado para erguê-la. Prova disso é que a história da humanidade vê claras mudanças após o surgimento do machadinho de pedra, do bronze, da pólvora e da bomba atômica. Essas invenções, marcos da revolução paleolítica, do domínio mesopotâmico, da ascensão europeia e do mundo pós-moderno, são pontos históricos importantes, contudo muito distantes de qualquer construção, pelo contrário: foram alavancas da destruição. Pensar não é, de modo algum, construir e, como vimos, questionar, ao contrário, é praticamente o botão destinado à destruição. A construção não vem nem do raciocínio nem do questionamento: vem do cansaço demoradíssimo que beira o desespero entre uma guerra e outra.

Cadê, ó otimista Nietzsche, o teu super-homem do outro lado da corda? Cadê, ó Marx, o teu paraíso após a revolução do proletariado? Cadê, ó Comte, o teu pensamento positivo que nos abraçará depois de tudo? Cadê, ó Hegel, os valores da tua amada Prússia, objetivo do espírito da humanidade após dez mil sínteses e antíteses? Nada mais que boas ideias. Nada mais que frutos do questionamento. Esperamos eternamente algo que nunca virá. Tudo ruiu.

Toda construção, observem, é gerada por outro caminho: toda construção vem do cansaço. E aparentemente não estamos ainda fartos de sangue e corpos eviscerados para dizer que o tempo da bonança eterna chegou. Ainda conseguimos suportar muita tristeza, ainda gostamos que muita loucura rompa nosso tédio. E eis que o bando está de novo em convulsão, pela infinitésima vez, batendo no peito de maneira exibicionista, como gorilas machos prestes a se enfrentar. Gritam esses gorilas: eu questiono! Eu sei questionar! Aprendi agora mesmo! 

Retomemos: construir, ao contrário, requer paz e tempo. Paz que só vem quando tudo está ruim demais depois de ter estado péssimo. Tempo que anda lento e demorado enquanto nossa mente cozinha o angu da invenção realmente útil que nos tirará do sufoco. Pior: nem todo mundo pode construir, nem todo mundo tem essa capacidade. Infelizmente. Somos todos racionais? No atacado? Uma ova. A minoria da minoria da minoria conseguiria dar um primeiro passo em direção à construção, isso se tiver a sorte de não morrer de fome no meio do caminho, ou de loucura. Não se constrói nada em convulsão e com impaciência. Todo discurso de um mundo melhor imediatamente após uma revolução é balela. Esse discurso, porém, nos pega por dentro, nós, sedentos de justiça e de espólios. Há uma Mutter Courage dentro de cada um de nós. Construir para quê, se é possível viver como abutre? Pensa o raciocínio estreito, o da maciça maioria. 


"Mas para construir é preciso destruir", diz o que pensa fazer algo com seu cérebro distinto de ser submetido a ele. Do yin nasce o yang, diz a sabedoria oriental. Balela! A destruição é ímpeto, é força inata do australopiteco pós-moderno. Vem nos genes, é brinde, junto com a sua cognição e tantas outras coisas do destino, de onde não fugirá, A criança mói o chocalho e ri. Destruição nada mais é que o modus operandi do primata humano. A construção é outra coisa. Não se deixe levar pelos prefixos que, na sua oposição, só refletem uma nesga da onipresente burrice das tradições e das culturas. Construir é quase um acaso. Construir significa: estou farto mas não vou esperar ninguém. Construir significa: eu sou meu líder, eu sou meu deus, eu sou a pessoa que vai tirar-nos desse enrosco por um caminho que ninguém enxergou. Quem constrói não segue lampiões no escuro, aventura-se sozinho, às vezes cai em buracos e morre. Por isso não se constrói tanto. É preciso coragem para construir sem destruir. É preciso mais do que um cérebro herdado de peixes e lagartos. É preciso ter uma obsessão inútil, com alguma ligação misteriosa com o Mundo das Ideias, prestes a ser usada no momento limítrofe da loucura. É preciso ser beijado pelo acaso.

O construtor não é um usurpador, não é um líder, não é um gênio. É apenas uma pessoa cansada. Alguém que não quer seguir, não quer compartilhar, não quer nada além do que sempre quis. E o que queria não era importante para ninguém até então, até a situação ficar crítica. É alguém que faz prevalecer a sua vontade, de maneira natural, por necessidade de todos. O construtor é o único que consegue parir algo que seja relevante de fato. Todos o agradecerão, embora raros sejam os que deixam seus nomes registrados. É o inventor da porcelana, dos calendários, do arado, da escrita, do quinino, das abluções rituais, de tantas soluções úteis, com as quais séculos de ciência culta não conseguem comparar-se. Que falta faz a presença de um único construtor no mundo arrogante e maluco de hoje! Há mais de dois séculos não surge um digno desse nome!

quarta-feira, 4 de maio de 2016

NON SEQUITUR

Aos poucos a história da Humanidade viu que a etnia e o gênero dos indivíduos não são elementos que devam entrar no julgamento dos seus comportamentos, a ponto de haver leis que amparem a tolerância e o respeito pela essência individual. Inclui-se aí também a religião: é feio imaginar, por exemplo, que um físico não seja um bom físico por ser teísta. Ele tem o direito de sê-lo ainda que nos pareça contraditório. Assim, pouco a pouco, foram detectados e tornados legisláveis a xenofobia, racismo, o sexismo, o machismo, a homofobia, a transfobia, o antissemitismo, o elitismo, o bairrismo e o especismo.

Mas por que essa tolerância não é geral e irrestrita? Paradoxalmente também por causa das leis e das regras de comportamento. Ninguém é dependente de drogas ou adúltero impunemente, sem julgamentos morais ou legais. Não é a mesma coisa de gostar de amarelo ou de azul. Por causa dessa zona entre o crime e o permitido, uma esposa abnegada esconderá de todos seu fascínio por vídeos pornô; um líder religioso só contará piadas politicamente incorretas longe dos microfones; muitos, como a personagem de Rubens Fonseca, terão seu Passeio Noturno até serem investigados pela polícia. Assim sendo, há regras sociais para o que é e o que não é correto. O Direito legisla sobre a complexa etologia humana.

Mas há zonas mais profundas naquilo que chamamos ético. Hoje em dia ainda não é feio declarar que alguém seja indigno da nossa confiança por reproduzir um discurso que odiamos. A essa postura intolerante costuma-se dar até mesmo alguns nomes positivos. Talvez porque todos acreditemos, cada um em sua tribo, na fábula do Homem Integral, advinda de uma mitologia em nós arraigada, a despeito de a vivência nos demostrar diariamente a sua inexistência.



Qual a importância se um ator famoso não tiver a mesma convicção política que a minha? Deixará de ser um bom ator? Posso avaliar a capacidade de um jogador de futebol pela sua religião? Deixará de ser um bom biólogo alguém que tem práticas sexuais que me são estranhas? Isso, de fato, não é um julgamento ético: é apenas um non sequitur.

Deem um microfone ao cantor pop e ele só falará asnidades sobre política: deixará, por isso, de ser um bom cantor? Flagrem o ganhador do Prêmio Nobel de Matemática com uma espingarda matando passarinhos e sua racionalidade será questionada. Cairão em desgraça, esmagados pela opinião pública após descobertos pelos jornais, mas onde está a contradição? Decerto, um padre que prega o "não matarás" não pode ser acusado de assassinato, pois se ninguém pode assassinar, muito menos ele deveria fazê-lo e isso, de fato, seria escandaloso. Mas onde está a contradição ética do professor de literatura Immanuel Rath ao apaixonar-se por Lola Lola, der blaue Engel

Essa ética fumacenta é algo que cobramos do outro para destruí-lo. Se o que se cobra é cobrado de todos, a destruição moral do indivíduo é corroborada por algum tipo de justiça, mas e quando todos se julgam iguais nas suas sentenças morais distintas? A justiça pode intervir sempre, mas  que acontece quando permanece calada?


Enfim, se escuto um saxofonista maravilhado e para ele projeto os meus melhores sentimentos até o momento em que ele começa a falar de criacionismo, em franca oposição ao que penso, deixará de ser um bom músico? Tornam-se imediatamente suas composições odiosas pelo simples fato de não concordarmos com algo que não seja a especialidade que o define como saxofonista? Simples: o chamado raciocínio acerca dos valores humanos não merece o nome de raciocínio. É uma fera com dentes sangrando que pula sobre qualquer um que lhe roube uma rosa. Fera que ataca, mesmo saciada.

Tenho o direito a ficar indisposto e parar de meu geneticista favorito por causa de seus comentários sexistas num canal de TV; posso desapaixonar-me de um pintor quando leio no jornal sobre a sua crueldade contra algum parente; posso parar de procurar os filmes de um cineasta que amava quando vejo um vídeo em que externa opiniões políticas lamentáveis a um repórter, mas todas essas pessoas deixaram de ser, de fato, bons profissionais depois que a decepção tomou conta de mim? Fizeram realmente algo que me desagradou na sua profissão e na sua obra? Se o geneticista mescla sexismo nas suas teorias, se o pintor promove a violência em seus quadros, se o cineasta faz de sua obra um palanque ideológico, meu descontentamento parecerá razoável, mas e se nada daquilo que me é abjeto conspurcar o seu trabalho, terei o direito de desapontar-me? Algo evitará que eu enxergue máculas de sua índole na mensagem de sua obra? Se usássemos corretamente o juízo, veríamos muitas vezes que tais pessoas não poderiam ser criticadas pelo ofício que exercem nem pela obra que produziram. Mesmo assim, justifica-se o meu desprezo subsequente ao meu desapontamento? 

Mais absurdo ocorre quando a crítica injusta é anacrônica ou quando promove uma injustiça ainda maior. Incensado o acadêmico durante décadas, uma vez feita uma declaração que se reputa infeliz, seu passado se anulará e deixará de ter sido um bom profissional se nada do que escreveu tem a ver com a atual declaração odiosa? Pior ainda, se a declaração é polêmica e gera ódio em uns e admiração em outros, não há dúvida que será ainda menos ético o ofendido que detém algum poder e o usa para impedir a reimpressão das obras do agora ex-excelente acadêmico ou para tirá-las do mercado, ainda que nelas não se encontre uma única linha compatível com a declaração infeliz que fizera. Mesmo que o tenha feito por justificada senilidade.

O mito do Homem Integral é gerado pelo non sequitur da disposição daquele que recebe a mensagem e a julga com seus valores permeados de amnésia seletiva, numa afrontosa violência à lógica e à razão. Cadê tu, Homo sapiens, que te vanglorias de teu raciocinar?

Será o poeta que eu tanto gostava de ouvir agora insuportável por ter-se declarado leitor de uma obra que abomino? Será o psicólogo que me analisava brilhantemente agora o epígono da incompetência só porque assiste a uma novela pavorosa e porque torce pelo meu time rival? Serão os laços de longa amizade esfacelados porque meu amigo aderiu a uma seita alternativa que me é desprezível ainda que eu, como seu amigo, entenda conscientemente que assim o fez para amenizar alguma angústia existencial que não desconheço? Não levarei mais a sério aquele competentíssimo professor de geografia porque foi flagrado numa festa de sexo grupal? Será o pintor que eu amava agora um idiota conceitual porque se declarou fã de um conjunto musical de péssimo gosto? Será a cantora de ópera uma incompetente por não saber dar a opinião ecologicamente correta sobre casacos de pele? Será o médico que me atende agora uma pessoa indigna de confiança porque foi preso junto com um traficante num baile funk? Será meu marceneiro alguém que nunca mais contratarei por estar respondendo a um processo judicial que me escandaliza? Por mais que odeie a atitude de alguém, convenhamos que não há razão na passionalidade. 

Alguma razão do escândalo, do desprezo e da punição só existiria se a atitude fosse contraditória, mas a contradição não está entre a função da pessoa que julgo e a atitude lamentável que cometeu. A contradição, se há, encontra-se entre a imagem equivocada do Homem Integral (competente, belo e ético) idealizada a partir do nada e a atitude individual incomum que incomoda. É aí que nasce o que supra-individualmente chamamos de "errado". Talvez haja mesmo uma diferença entre ética e moral. Não houve violação por contradição com o instituído, apenas uma espécie de desvio de conduta inesperada para a minha visão pessoal daquilo que se configuraria como uma pessoa boa. 



Ninguém achará imoral se o leão devorar o funcionário do zoológico, mas acharia estranho se um urso panda o tivesse feito. A atitude do panda nos pareceria imoral, por trair as nossas expectativas advindas de sua pretensa fofura, ainda que saibamos que tenha tamanho, garras e dentição para agir como o leão. A surpreendente ferocidade do panda romperia o nosso status quo, porque ele nos parece consciente de sua força e, ao mesmo tempo, equilibrado em não a usar para nosso mal. Mereçamos essa deferência ou não, o panda é-nos mais confiável que o leão. Pelo mesmo motivo, ninguém ficaria admirado se o funcionário saísse ileso da jaula do urso-panda mas sim da do leão. 

Nossa moral humana é uma espécie de etologia do Homem Integral, um ser ideal, um Sócrates ou um Cristo. Mesmo no plano das ideias, não nos cansamos de nos decepcionar e, mesmo assim, diariamente rompemos relações, riscamos nomes de nossa agenda, paramos de ler livros, de ver filmes, de apreciar o que nos dava prazer e nos causava admiração. Em nome desse Homem Integral, restrinjo minha vida, paro de ousar, paro de conversar, paro de expor o que penso e, paradoxalmente, torno-me mais convicto, mais feroz. O mundo é o culpado. O mundo está tornando-me assim. Sou uma vítima! Será? 

Será que a imensa massa de informação nos tornará milhões de seres ferozes? Um dia será normal esperar que devoremos quem entre na nossa jaula? Pior: um dia se admirarão porque não devoramos quem entrou na nossa jaula? É essa a etologia que criamos, protegendo-nos do mundo que nos ameaça e que lamentamos existir? Serão nossos ídolos todos quebrados pela decepção? Serão todos nossos amigos e parentes afastados por impossível convivência e por divergência de opinião? Será que, enfim, a tolerância se tornará palavra arcaica, mito do passado, algo que só supostos idiotas pregaram? Enfim, será desfeita a comunicação, as línguas deixarão de existir e as pessoas sobreviverão emitindo grunhidos óbvios, num apocalipse à la Mad Max? Um pensamento paralelo enviesa nossa lógica para a área de nossas fobias e alavanca nossa paixão e nosso ódio, nosso instinto animal e nossas defesas de sobrevivência. 

Não conseguimos desenvolver a razão pura que imaginamos ter, quando fingimos ser setecentistas. Quem justifica o que faz mediante essa razão contaminada e enviesada, esconde a vontade de fazer calar, de impor, de destruir o outro. E quanto mais alguém for inconsciente de que sua razão é espúria, maior será a sua má-fé: com mais convicção chegará ao termo de seus objetivos, mandando matar ou aniquilando com as próprias mãos. Para chegar a esse ponto, basta desconhecer que tudo aquilo em que crê é apenas um ídolo construído a partir do medo daquilo que não aprecia. Todo julgamento negativo é assim.

Será parecido o julgamento positivo? Infelizmente sim. Se amo, defenderei, custe o que custar. Tenho medo de perder. Novamente, aguçarei minhas garras de animal e prepararei minhas presas. O bicho mais feroz é o acuado que se defende. E só se defende aquilo que se ama demais.

A lógica não ama nem odeia porque, como mostra John Stuart Mill, tem um defeito intrínseco em seus silogismos:a conclusão faz parte da premissa maior. É inútil: mero brinquedo para passar tempo. Por que o homem seria lógico? A vida dele é preciosa. Não tem tempo para brincar de coerência. A maior parte do tempo do homem é preocupação com sobrevivência, o resto é carência. Só o fanático perde o pé da realidade e se imagina numa trincheira eterna. O que mais quer o fanático é a paz para sempre. Por isso explodiria o planeta.


A passionalidade é tida como oposto da racionalidade, mas isso não precisaria ser assim. Da mesma forma que é possível a sandice fria e apática, também pode haver lógica inflamada e rigorosa. Se há loucos para todos os gostos, verifica-se que a genialidade convicta tampouco precisa ser necessariamente aloprada. Talvez o que dificulte o entendimento disso seja  o cacoete mental ocidental que associa o herói ao embaixador do ético. A nossa encarquilhada visão repetitiva será a maior causa de nossa destruição. O mito do bom velho que aprendeu e serenou-se confunde razão com impotência. Mas a razão, para ser eficiente, precisa ser vigorosa, caso contrário, dá margem às bacantes do non sequitur e à sua orgia irrefreável. Se não queremos que dominem, não lhe deem microfone, nem caneta, nem teclados. O alucinado faz sua função de alucinar. Não podemos cobrar-lhe razão. Isso é função de quem se diz não ser alucinado ou não quer ser alucinado por não achar graça na violência contra a lógica e por não sentir prazer nos abusos do non sequitur.