Suponhamos que eu não me lembre de quase nada
de meu passado e que subitamente
passe a ouvir vozes e perceba que pessoas estão presas em caixas com rodas, que
descem uma ladeira íngreme. Pouco tempo depois, verifico que eu também estou
numa caixa similar e que um alto-falante me está ensinando coisas muito
variadas, entre elas, instruções que aos poucos começam a fazer sentido para
mim.
O aspecto dessa caixa deslizante é singular:
as laterais são translúcidas, mas sua parte dianteira e traseira são
completamente opacas, de modo que não consigo ver para onde vou e apenas me
lembre daquilo que acaba de passar. Dentro dessa caixa, há diversos objetos que
me mantêm saudável e distraído, bem como posso ver a paisagem que passa pelas
laterais. Aprendo, aos poucos, que posso comunicar-me com as pessoas das outras
caixas e, aos poucos, essa comunicação se restringe a algumas delas, não a
quaisquer umas.
Também elas podem comunicar-se comigo, por
meio de um fone que aprendemos a manejar. Por fim, encontro na caixa um painel.
Posso ler lá muitas mensagens, algumas mais antigas que outras e diversas delas
incompreensíveis. Posso deixar minha mensagem nesse painel também, de modo que
alguém pode vir a ler ou não o que escrevi.
Tudo que faço alterna lucidez e delírio, de modo que, se quisesse, seria difícil distinguir o sono da vigília, a loucura do exercício pleno da razão.
Aos poucos, seleciono as mensagens que me
agradam, releio-as ou procuro similares. A voz que fala ininterruptamente pelo
alto-falante, às vezes de modo incompreensível, me aconselha de tempos em tempos a ler
algumas mensagens, mesmo que não me agradem tanto de início. Estando todas as
caixas em movimento, vejo algumas explodirem quando entram em colisão com uma
pedra (o caminho está cheio dessas perigosas pedras que as fazem desaparecer),
outras explodem aparentemente sozinhas, outras se chocam entre si, causando
destruição mútua.
Além do alto-falante ininterrupto, do painel
e do fone, há dois botões, sobre os quais aprendo que um deles faria minha
caixa explodir e o outro, uma caixa alheia ir pelos ares. Muito já se falou
sobre esses botões. Há ainda uma volante totalmente inútil, uma vez que não se
pode visualizar para onde a caixa vai. Esse volante, todavia, pode fazer-me
desviar de pedras imaginárias ou lançar-me sobre outras caixas.
Posso ligar-me com afeição, compaixão,
medo ou respeito às pessoas das outras caixas ou ainda a outros seres e pessoas
sobre cuja existência apenas li no painel ou ouvi pelo fone ou pelo
alto-falante. Todas essas crenças me moldam, estabelece as minhas relações com
as outras caixas e retardam minhas ações impulsivas.
O contato com o alto-falante, o painel e o
fone fazem-me sentir igual ou diferente das demais pessoas e crer ou não na
uniformidade e no bom-senso das minhas ações.
Além disso, posso imaginar a finitude ou a
infinitude do trajeto descendente, conjecturar se as mensagens que faço são
legíveis para todos, se posso ler, de fato, tudo que lá foi escrito ou mesmo se
o que estou vendo e ouvindo é real. Essas imaginações podem impressionar-me ou
não, fazendo-me feliz, triste ou indiferente, surpreso, desesperado, revoltado
ou intrigado.
Posso imaginar como tudo isso começou ou
como passei a perceber o alto-falante. Posso achar tudo isso interessante ou
lamentável. Posso esquecer-me disso, distrair-me, apenas contemplar a paisagem
ou refletir sobre minhas conclusões.
Independentemente da minha postura, posso fingir estar alegre, triste ou
indiferente, de tal modo que nem mesmo eu posso às vezes distinguir qual é
minha posição frente a essa situação.
Posso, sinceramente ou não, descrever esta
minha situação de prisioneiro de maneira neutra, imaginar-me noutra caixa,
querer influenciar as demais pessoas com minhas opiniões, obrigando-as a agir
como quero; posso compartilhar, ou não, minhas impressões, certezas, prazeres,
angústias, tentar explicar esses sentimentos ou mostrar que seria melhor ignorar
tudo.
Posso ouvir opiniões alheias ou calar-me
sobre elas. Por fim, posso tentar encontrar alguma coerência nelas, mudar a
minha própria.
Isso tudo, como foi dito, pode ser
expresso pelo fone a quem suponho que queira ouvir-me, pode ser gravado sob a
forma de mensagem que suponho coletiva, enquanto a caixa segue sua marcha
inexorável ladeira abaixo, rodeada de perigos.