O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

terça-feira, 17 de outubro de 2017

SABE DE NADA, ONISCIENTE!

Há muito tempo eu penso na questão da onisciência. Não é algo tão fácil quanto explicar a onipotência e a onipresença. 

Há quem imagine que, na história humana, juntaram-se os atributos poderosos de todos os seres na forma de uma potência ilimitada na atuação de um Ser. Esse argumento parece razoável para explicar a onipotência: o Senhor das Guerras teve de ser aquele que dispusesse de forma ilimitada o potencial destrutivo dos hominídeos. A onipotência é um desejo exclusivamente humano.

A onipresença também é algo derivado de uma limitação, isto é, algo que está ligado com a consciência do limite de não poder estar em toda parte ao mesmo tempo. Assim sendo, lida-se com a onipresença quando se tem a capacidade de assumir empaticamente o ponto de vista do outro, algo que, não é só humano, mas também está visivelmente na mente de mamíferos carnívoros e aves de rapina. 

Dito de outro modo, só o Homo sapiens quis ser onipotente, mas há muito tempo na Terra os bichos almejam a onipresença, quer para atacar, quer para fugir de quem ataca. 

E a onisciência? Esta, penso eu, é ainda mais primitiva, compartilhada até mesmo com animais unicelulares, desde que não sejam sésseis como corais, anêmonas, esponjas do mar e cracas adultas. Uma planária sabe que levou um choque do cientista e, como não gostou dele, consegue prever um choque futuro mediante a apresentação de um mesmo estímulo. Dito de outro modo, há algo ali em sua memória além do mero condicionamento, em alerta para evitar a dor vivenciada. Sou tentado a acreditar que o que há na memória das planárias é uma pretensão à onisciência, igualzinha à nossa.


Qual a necessidade para a vida de desejar a onisciência? O ser que se julga onisciente se autoilude. Esse candidato a onisciente, aparentemente, pensa que sabe tudo e arrisca-se andando pelo mundo em vez de ficar paradinho, como planta ou anêmona. Mas saber tudo é obviamente tão impossível quanto ter todo o poder para si ou estar em toda parte.

Ser onisciente é algo como a fórmula de Laplace, é como acompanhar os desvarios de Pascal. A onisciência é aquilo que foi deixado de lado por irracionais mais espertos, que apostaram numa onipresençazinha a cada emboscada. Para começarmos a imaginar o que vem a ser a onisciência de fato, seria preciso entender o que é uma onividência total e atemporal: isso é mais fácil do que imaginar a onissensciência de quem sente todos os cheiros presentes, pretéritos e futuros do universo ou ouve todos os sons atuais, já produzidos e que se produzirão pela eternidade adentro ou tem todas as sensações táteis de tudo ao mesmo tempo numa espécie de oniexperiência infinita. Isso tudo, ao mesmo tempo! O onisciente conheceria as profundezas do núcleo atômico rumo aos contornos do universo, conhecendo tudo desde a pespectiva de um ácaro, de um besouro, de um rato, de uma águia, de um ser humano ou até mesmo de um Galactus, ou daquele extraterrestre de Men in black que quer a galáxia que está na coleira de um gato, ou, pior, de um ser superior que tudo sabe porque tudo sente não sei com que sentidos: haja sistema nervoso para esse ser!
 
Mas tua mulher saiu triste e voltou toda sorridente e nem isto tu sabes explicar. Sai de teu plano filosófico e põe os pés na terra! De onde veio essa ideia absurda da onisciência? Da ingênua ciência não foi, pois antes dela a solene religião já falava disso e, penso, nem foi a religião a responsável por este conceito, já que estava nas premissas filosóficas. Teve a filosofia algum início? Talvez na arte? Mas a arte não nasceu da transformação da superstição em rotina, as quais se fundam no medo? Na verdade, não há nada que acompanha mais as espécies que representam a vida terrestre do que o medo. E isso não é prerrogativa humana, de jeito nenhum: medo até os seres mais primitivos têm: toca-se um besouro e ele finge de morto, mexe-se de leve na água e o peixinho foge como louco, toca-se a teia de uma aranha e ela, estranhando a tensão exagerada de um dedo humano, corre na direção contrária à de que se a teia tivesse sido tocada pelo movimento de uma potencial vítima, como uma mosca. Foi o medo que fez pelos urticantes nascerem em lagartas, fez feras terem presas agudas, fez as cobras e sapos serem venenosos, fez até plantas criarem espinhos e bioquímica poderosa em suas folhas para evitar que suas folhas fossem comidas. O medo, portanto, é muito antigo, pois até vegetais têm medo: apareceu bem antes da consciência e de encéfalos rombudos. Se não foi a ciência, a religião, a filosofia, a arte, a superstição, mas o medo que nos enrolou no poço viscoso da onisciência, que pode ser mais primitivo que o medo para gerá-lo em nós, criaturas vivas? Desconfio que haja algo mais primitivo que o medo: o pool genético da vida já é onisciente. Até vírus talvez tenham, com toda probabilidade, a onisciência dentro de si.


Se não, vejamos: acidentes históricos da evolução explicam o desenvolvimento de pinças e presas, de comportamento voraz e agressivo, de uma mente planejadora ou de veneno nas folhas, de espinhos, da capacidade de enrolar-se nos tatus, de patas aptas a fugir nas gazelas, de uma mente atenta ao menor ruído. Antes de o indivíduo nascer, o medo é a condição que norteia o seu corpo, seja como presa, seja como predador. Os genes já contam com o medo para o sucesso de sua cega transmissão. Os genes já sabem que o medo é um dos integrantes mais importante do mundo em que o indivíduo viverá por alguns minutos. A onisciência é quase um problema de química! Mas como os genes podem saber se o medo é algo que se vivencia? O macaco pequeno não tem medo do rabo da jaguatirica, mas só o adquire depois de puxar-lhe o rabo. Mesmo se for devorado por ela, experimentará o medo entre o puxão enxerido e a corrida para fugir do feroz felino. Se o macaco tem de vivenciar o medo para aprender o que é o medo, para lidar com ele pela primeira vez, como seus genes de antemão o prepararam com agilidade, braços longos e fortes para se pendurar num galho, voz estridente e cauda preênsil que se torna um quinto membro além das patas? O medo preexistia antes de ser vivenciado? O medo, onisciente de que a cena da jaguatirica existiria um dia ou teria chance de existir, já lhe equipou com o reconhecimento da situação e com o mecanismo de fuga como reação? Como assim? Há informações dos genes da jaguatirica nos genes do macaco? Ou pior, há abstrações como "predadores" nessas informações, que são um punhado de moléculas? Como o ambiente, o mundo e seus componentes poderiam, de alguma forma, selecionar o que é bom para se continuar vivo? Há julgamentos de valor nos genes? A onisciência então se limita a experiências possíveis entre macacos e jaguatiricas, nativos do mesmo ambiente, e nunca entre seres que não se encontrariam jamais na natureza (embora sejam vistos no mesmo ambiente de um zoológico) tais como um rinoceronte e um bicho preguiça? A jaguatirica estaria codificada no gene do macaco bugio mas não no do chimpanzé? Ou um conceito abstrato de felino, que inclui jaguatiricas e leopardos, vindo talvez do mundo das ideias, é conhecido pelo sabichão do gene? Se tudo isso parece absurdo, há limites na onisciência, mas, nesse caso, que sentido faz chamá-la de onisciência? Existe semionisciência? Onisciência parcial? Onisciência pero no mucha?

Dirá alguém que não são os genes que são oniscientes, mas o Arquiteto dos genes, que conhece o mundo e dá genes de chimpanzé a chimpanzés e genes de rinoceronte a rinocerontes. Mas por que faria isso? A resposta a essa pergunta só um ser ainda mais onisciente saberia. E duvido que alguém tenha a resposta. Nesse caso, é melhor só vislumbrar o mundo, pois a explicação seria muito ruim. E de fato, misturar fé com explicação racional é uma combinação pior que aliche com doce de leite.

E faz sentido falar de mais ou menos onisciente ou de limitações de onisciência? Obviamente não. Melhor pensar que a onisciência é mais um dos muitos saci-pererês da mente, impulsionados por essa informação que vem de algum modo dos genes. Aliás, a onisciência é viciada em informações. E informações se acumulam hoje diariamente na internet. Aparentemente nunca soubemos tanto sobre nós mesmos quanto hoje. E a tendência é aumentar de forma gigantesca. Isso todo mundo sabe. Será certo dizer "aumentar de forma ilimitada"? Não, a menos que fôssemos oniscientes e sabemos que não somos, apesar de, como as amebas, ácaros, hienas e cucos, pensarmos que somos. 

O aumento ilimitado de informação seria saber absolutamente tudo: os fundamentos que norteiam o espectro de radiação do corpo negro, as raízes do Efeito Compton, o sentido da equipartição de energia, a compreensão perfeita da não-localidade quântica, a intimidade com os bósons, detalhamentos precisos do universo primordial, descrição exata dos quasares, o elo entre a matéria e os archaea, as evidências lógicas do surgimento dos organismos eucarióticos, a reportagem sobre o primeiro ser alado, o passo-a-passo da tolerância a lactose, a conversa que o rei Sin-shar-ishkun teve com sua concubina voluptuosa em 17 de março de 614 a.C. e até mesmo o que fez teu filho durante a hora em que se trancou no banheiro. Convenhamos: é preciso de uma mente, mesmo artificial, para saber absolutamente tudo? A mente não serve para ALGUMA COISA justamente porque NÃO sabemos tudo? Saber tudo significa jogar a mente na lixeira, por pura inutilidade.


Saber tudo-tudo, portanto, é prova de demência. Por um lado, os genes sabem em que mundo e em que experiências o indivíduo vai se meter e protege-o como uma mãe coruja, mesmo que um gene nunca tenha sido um indivíduo para fugir de uma jaguatirica, por outro lado, um gene me parece bastante destituído de mente. Se o pré-requisito para saber algo é ter uma mente, o pré-requisito para saber tudo parece ser totalmente destituído dela. Escolhamos: queremos ter uma mente ou ter onisciência?

Afundar na matéria ou para além dela é o pré-requisito para adquirir o conhecimento cósmico e universal, qualquer místico sabe disso. Dito de outra forma, a vida é o primeiro entrave para a onisciência. Só os enxames de fótons, glúons, quarks e neutrinos parecem saber direitinho o que fazem, com ou sem gatos de Schrödinger, com ou sem mecânica, com ou sem intenção, com ou sem finalidade, com ou sem causa alguma. No nível da química, tal informação já parece ser problemática. E nós, nos níveis biológicos e sociais, como ficamos? Entra o estraga-prazer em cena e diz com voz bem grossa: all we are is dust in the wind.

Mas, peraí! Se é assim, não basta ler Eclesiastes, tomar um pileque e ficar no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar? Sim, meu caro, se concordou é porque teu desejo de onisciência é maior do que teu desejo de viver.

Para aquele que pensa que ter onisciência não quer dizer nada ou porque não entende o problema ou porque nunca pensou nele, para aquele ignorante cujo pouco que sabe basta, para aquele que curte conhecer sempre mais sem desejar a demência da onisciência, sobretudo para aquele que sabe que é limitado e não idiota o suficiente para imaginar que já é onisciente, em suma, para esses seres iluminados há outra toada e outro conselho: não um carpe diem, dito por uma caveira sarcástica, mas a proposta concreta de um gozo orgástico. Merece, por ter sido sensível o suficiente para perceber que conseguiu abrir os olhos hoje de manhã, que é um ser livre, que é um ser saudável, que não tem preocupações com alguém que queira matá-lo hoje. Não fazer essa oração prova a nossa ingratidão com a vida. Quase ninguém a faz, preocupado logo de manhã com sua onisciência fantasiada ou com a onisciência alheia. Infeliz deveria ser, teoricamente, só quem não pode de fato fazer tal oração de maneira sincera por estar realmente preso nas amarras de um destino nefando. E não me venhas dizer que não há infelicidade pior do que o de uma cabeça sensível à tristeza desses infelizes no mundo. Se pensas assim, vá ouvir Kansas ou ler Eclesiastes. Mas faça isso não por um segundinho, só para imaginares orgulhosamente que és iluminados: terás de ouvir Kansas e ler Eclesiastes o dia todo até desmaiares exausto no teu sono: assim me provarás que não és um hipócrita! 

Se conseguires, parabéns, és um caso clínico bem severo.