O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

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Sou um saci sumério de Botucatu.

domingo, 18 de março de 2018

A DIVERSÃO DO DIVERSO

Eu sempre gostei de classificações, mas nunca gostei de ser classificado. Por exemplo, indagado sobre minha religião por um aluno numa aula de filologia românica, quando lecionava, décadas atrás, numa faculdade particular, interrompida minha exposição da invasão dos suevos, alanos e vândalos na Península Ibérica, não hesitei em definir-me imediatamente como um seguidor do durvalismo (como fazia um amigo), razão pela qual, ato contínuo, vi o aluno questionar seu colega ao lado: "essa religião existe?". Se a pergunta era sobre o time de futebol por que eu torcia, dizia - sem pestanejar  - ser o XV de Macaé (e eu nem sabia que esse time de fato existia quando fazia essa brincadeira). Não há nada mais incômodo que os carimbos que lascam na nossa testa nos dias neomaniqueístas de hoje.

Da mesma forma que gostava de classificar, tenho de confessar, leitor, meu fascínio por aquilo ou por quem é inclassificável e isso serve tanto para um Fernão de Oliveira quanto para um Hieronymus Bosch. Foi-se o tempo em que ornitorrincos e seus mal conhecidos irmãos équidnas me causavam espanto por ser mamíferos que botam ovo. Há tempos chama-me mais a atenção o fato de os orictéropos, também conhecidos como aardvarks, serem a espécie única de um gênero único de uma única família de uma ordem feita exclusivamente para agrupar sua família de ser órfão. Corrija-me, prof. DNA, se eu estiver desatualizado, pois não duvidaria mais se alguém tivesse provado recentemente que esse animal e a batata doce formassem um clado com muitas sinapomorfias somente perceptíveis pela química. Haveria espaço para perguntar se não teria caído genes de minhoca nas lâminas de laboratório preparadas para se analisarem os DNA de ambas as espécies? 


"Somos o que somos, somos o que somos", diria Arnaldo Antunes, com participação de Chico Science, na sua antunológica canção Inclassificáveis, seu terceiro álbum, do longínquo ano de 1996. Antunes parecia reclamar dos "I hate" e dos "I love" dos anos noventa, pululantes já no Orkut, premissa para os "eu sou assim" do Facebook do século seguinte, já tão ironicamente expressos nas perturbadoras personagens de Nelson Rodrigues, com direitos a murros autoafirmativos no peito, em seus contos publicados no jornal A Última Hora, já nos anos 50. Profeta como é, diante do novo século que se avizinhava, o qual, como em todos os séculos pregressos, exacerbava-se o radicalismo, o autor neoeuripídico de Doroteia vislumbrou que não haveria espaço mais para figuras ambíguas como o Sport do filme Taxi Driver, expressão moribunda dos já longínquos anos setenta. Sharon Acioly despontava no horizonte de 2007, fecundando o embrião com o earworm da máxima funkeira "ado, ado, cada um no seu quadrado".

Fato é que a oricteropidade das coisas foi esquecida nos tempos atuais. Não há terreno atualmente para esses mamíferos tubulidentados pois a dança do quadrado parece ser a regra na dança mental dos hominídeos. Há muita confusão no planeta e é preciso classificar, classificar, classificar. Quem está fora da casinha, vai dançar. Agora sou eu quem está se metendo a profeta. Explico-me com uma outra história pessoal, embora não seja muito afeito a isso fora de uma mesa de boteco.

Deparei-me recentemente com uma árvore, no interior paulista, que me chamou a atenção. Os frutos, muito semelhantes a uma azeitona, nasciam de uma árvore gigante. O antigo proprietário do terreno disse-me que aquilo era azeitona de fato e que até tinha feito umas conservas de salmoura com aqueles frutos. O sabor, contudo, era ácido e eu já tinha visto oliveiras. Não, aquilo não era azeitona coisa nenhuma. Demorou um pouco para descobrir o que era. Graças ao Google, as respostas para tudo hoje se conseguem num tempo muitíssimo menor do que quando eu era jovem. Não se gabem, contudo, atuais jovens e futuros velhos, de disporem dessa ferramenta maravilhosa: pessoas que abriram livros e frequentavam bibliotecas fazem muito melhor uso dela, se não estiverem com a cara enfiada no Facebook, no Twitter, no Instagram, no Whatsapp, no Tinder o dia todo. Orgulho-me de ter saído desse tal Facebook há oito anos e de nunca mais ter querido voltar. Oras, voltando ao fio da meada, a tal azeitona misteriosa era, na verdade, uma eleocarpácea. Informação que, para mim, já era um avanço. Chamou-me a atenção, na época, mais o fato de se tratar de uma planta asiática, da Índia ou de Sri Lanka, ali, totalmente desenvolvida no cerrado do sudoeste paulista. Não preciso dizer que isso já me deu azo para filosofar sobre a necessidade dos portugueses indianizar a flora brasileira e trazer consigo suas jacas, carambolas, mangas e caquis; moral da história: meus planos de manter o cerrado e sua fauna entomológica parece cada vez distante e cada dia que passa entendo que a flor  "nativa" que tenciono plantar é mexicana ou do outro lado do mundo. Mas isso é outro assunto. Estou dispersando-me.



Voltemos ao que quero discorrer e deixemos de lado, por ora, a azeitona do Ceilão (nome "popular" da eleocarpácea dado por algum agrônomo): ela voltará brevemente ao texto. 

No meu afã de preencher uma lacuna horrivelmente vazia no meu conhecimento, resolvi estudar com afinco a taxonomia da Botânica. Envergonho-me de admitir que não sabia lá muita coisa de como as plantas se classificavam cientificamente, justo eu, que reconheço, desde criança, só de bater o olho, um inseto pelo menos pela ordem (quando não pela família, gênero ou espécie. Espanto: as plantas deixam a solidão dos orictéropos no chinelo. 

Apresento-te, ó leitor não-botânico, a ordem das Oxalidales. Nela há sete famílias, 67 gêneros e 1754 espécies. O que justifica esse agrupamento? Sei lá, ainda não entendi. Explica-me, ó leitor botânico, pois a Wikipedia me desampara, seja em inglês, português, espanhol, francês, italiano ou alemão.  Preciso consultar mais livros. Mas minha insipiência incipiente não é desdouro para que eu direi, se fores sagaz na leitura. Pela informação wikipédica, parece que eu posso dizer que uma planta é uma representante das Oxalidales se sua flor tiver de cinco a seis sépalas e pétalas. Grande coisa, pensei, aposto que há dezenas de outras espécies em outras ordens com as mesmas características. Fuçando ainda mais descobri outros traços ridiculamente vagos: folhas ímpares, estilo presente, estigma seco, epiderme externa do integumento interno com traqueídeos etc. Mas se bem sei, para tudo isso há exceção. Mas o que chama a atenção das Oxalidales, mais do que as Proteales (que incluem coisas tão díspares quanto uma macadâmia e uma grevílea) é a fantástica variedade de formas. Basta dizer que entre as Oxalidales estão coisas tão distintas quanto aquele trevo azedo que nasce no meu jardim, a carambola (igualmente azeda), a minha querida azeitona do Ceilão (também azeda) e uma planta carnívora (Cephalotus follicularis, que não dá vontade de provar para saber se é azeda). Como pode isso? As dimensões e o aspecto dessas plantas são fantasticamente diferentes. Será a vitória definitiva de Platão? A verdadeira forma das Oxalidales está no mundo das ideias? Essas disparidades se dão até no nível das espécies. Por exemplo, Ceratopetalum gummiferum é um arbusto simpático, já sua irmã Ceratopetalum apetalum é uma árvore de 25 metros! E coisas assim estão longe de ser exceções nas plantas: o lótus pertence à mesma ordem do plátano! 



Momento de reflexão.

Minha recém-iniciação na botânica eleva à milésima potência aquilo que já sabia em parte por meio do conhecimento da entomologia: o aspecto físico não tem importância alguma para a classificação. E chegou o megafone do DNA para anunciar este slogan a todos que possam ouvir. Abaixo o fenótipo! Diz o prof. DNA.

Espera um momento. Todo mundo sabe que o que existe de fato é só a espécie. A espécie é o que há. Algo como um gênero, já se sabe desde Aristóteles, é uma abstração das espécies. E pensando assim, uma tribo, uma família, uma ordem, uma classe, um filo, um reino e um domínio são, nada mais, que ampliações dessa abstração genérica. Na direção contrária, diz a cladística, há acúmulo de sinapomorfias. Enfim, representa cada clado o nó para onde convergem as abstrações ou algo que realmente existiu? Ou podemos cortar com a navalha de Ockham essa conversa, pois talvez estejamos discutindo sobre a quantidade de anjos dançantes na cabeça de um alfinete? Refaço a pergunta: se há a espécie gummiferum e se há a espécie apetalum, onde está o Ceratopetalum? O gênero de uma espécie perdida para sempre seria o ancestral comum de todas espécies atuais? Aceito, por mais perturbador que seja o argumento, que o tamanho e tudo o mais que é puramente sensorial para nós, humanos, não tem importância alguma, mas, se isso parece razoável, não falaremos das dimensões do ancestral. Então, sobre que podemos falar se não for sobre algo empírico? Só sobre a química do ancestral? Que coisa chata! Eu quero mais é saber como se efetuaram as mudanças fenotípicas para que o lótus seguisse a sua trajetória nelumbonácea de planta aquática e o plátano a sua platanácea trajetória de árvore! Como era a mãe das UrProteales? Como era a mãe daquilo que seria trevo ou azeitona do Ceilão? Haverá mesmo esse ancestral ou se trata de um hiperônimo boitatazoide, um remendo de nossos miseráveis sentidos? Uma ilusão pascalina?

"A explicação está na Química", repetirão alguns, disfarçando seu fanatismo recalcado com tom blasé, respondendo aos que também perseguem a angústia da minha dúvida. Mas, peraí, estamos no degrau seguinte da Biologia! Isso significa que para entender ESTE degrau acharei explicações no degrau anterior? Mas e o salto entre um degrau e outro? Isso não conta? A flecha de Zenão de Eleia não era uma piada! Segundo Hume, não há vitória na partida de sinuca, pois o taco nunca atinge a bola. Comofas? Entre a biologia e a química, desculpem-me a ignorância, um gap, como entre a física e a química, como entre o mundo quântico e o que vem acima, como entre a biologia e a sociedade. Essa coisa da subserviência de uma área de conhecimento à outra do degrau anterior nunca deu bons resultados. Há estratos no saber e gaps na nossa mente. Um bambu é uma grama gigante, ok, mas para tudo há limite! Convido o leitor para ir atrás das mesmas informações acerca das Oxalidales que tanto me perturbaram e ver com seus próprios olhos. Aproveita que levantaste e aumenta o som da música Inclassificáveis, no trecho em que os quadrados se indefinem: "cafuzos, pardos, tapuias, tupinamboclos; americarataís, iorubárbaros".

Farsas como as dos tasaday são fáceis de se expor. Basta duvidar deles como do bule celestial. Parece não fazer sentido em dizer que há uma população tasaday que vivia ainda na pré-história mas que falava uma língua aparentada com a dos seus vizinhos. Somente o fato de terem esse aspecto cultural particular (a língua em intersecção) já joga no lixo a possibilidade de outras preservações culturais. No máximo, hábitos trogloditoides supostamente verdadeiros dos tasaday seriam algo que equivaleria às homologias biológicas: um mantídeo e um mantispídeo. Caso encerrado. Ou é farsa ou um verdadeiro e comprovável retorno às cavernas não é preservação cultural coisíssima nenhuma. Quando o problema é no nível biológico, aí sim, dá nós no nosso bestunto.


Na área biológica, a existência de seres inclassificáveis me infundem um prazer comparável ao do êxtase de Santa Teresa de Ávila. Segue meu pensamento: as Oxalidales (ordem à qual pertence a minha azeitona do Ceilão) são eudicotiledôneas, mas entre suas parentes há ordens fora da casinha. Não importa. Subamos a árvore: eudicotiledôneas, como as monocotiledôneas (entre outras), são mesangiospermas, que, obviamente, são angiospermas. Mas há angiospermas que não se encaixam e há ordens inteiras para verdadeiros orictéropos vegetais. Um exemplo é Amborella trichopoda, única espécie do único gênero de uma família feita só para ela. Não nos espantemos com a Amborella, pois a escalada nos reserva espantos maiores. Sigamos adiante. Angiospermas e gimnospermas (nome considerado hoje "parafilético" por incluir seres muito distintos como pinheiros, cicadáceas, gingkos e gnetófilas) formam o clado das espermatófitas (ou fanerógamas), mas nem toda espermatófita é angiosperma ou "gimnosperma": pois havia as extintas pteridospermatófitas. Ok, seres extintos são esquisitos mesmo, portanto, posso acalmar minha necessidade de colocar todas as coisas em seu quadrado dizendo ad hoc que seres extintos não valem. Contudo, veremos que as fanerógamas não estão sós, se agruparmos um grupo acima, o das traqueófitas: licopódios, cavalinhas e as samambaias são esquisitices  também. Juntemos as traqueófitas e as "briófitas" e chegaremos ao ancestral embriófito. E é aí que a coisa complica: embriófitas e muitas outras famílias isoladas de algas formam as estreptófitas, cujo ancestral devia estar no oceano do Gênesis, uma das grandes divisões das chamadas "plantas" e aí sim tudo fica nebuloso. Uma planta (abstração para dizer algo tanto sobre uma tiririca quanto para um sequoia) se distingue de uma rodófita, de uma glaucófita, apesar de ainda ser o suficiente próximas para dizermos que são arqueoplástidos, os quais, junto com hacróbios e os inclassificáveis criptistas e picozoários, estramenópilos, alveolados e rizários, se agrupam todos como diaforéticos, que se opõem aos excavados e aos Unikonta, os quais, por sua vez, englobam os amebozoários, os Opisthokonta e os Apusomonadida. Todos eles são seres eucariontes. Esclareço apenas, no caso de te teres perdido e para teres a ideia de onde estás, que tu, tal como eu, somos Opisthokonta, pois somos animais e não coanoflagelados ou filastérios, embora os três sejam filozoários. O nome Opisthokonta serve para agrupasr os holomicotas (fungos e rozelídeos) e os holozoários (que incluem não só nós, filozoários, mas também os mesomicetos e os Corallochytridium). Em suma, somos muito mais próximos dos fungos do que das plantas: qual é o génos aristotélico que nos abarca? Fácil de responder: o fato de sermos eucariontes não-diaforéticos e não-excavados. Fim.

Mesmo assim, apesar de tudo estar no seu quadrado, conforme reza a filósofa Sharon Acioly, há seres inclassificáveis como os crilouros, guaranisseis e judárabes de Arnaldo Antunes. O ser nomeado Breviata anathema é sem dúvida um eucarionte, mas não é um obazoário normal, pois não é nem Opisthokonta, nem Apusomonadida. "Que preto, que índio, que branco o quê?".  Em escalas menores, há muitos seres assim: Maundia triglochinodes é a única espécie da família das maundiáceas, da ordem das Alismatales; Scheuchzeria palustris é a única espécie da família das Scheuchzeriaceae, da mesma ordem. Acontece que quando falamos de Breviata, estamos dizendo que se trata de algo que não é animal, nem fungo, nem Apusomonadida, embora seja Unikonta. Isso não é pouca coisa. A esquisitice do ornitorrinco perto disso é fichinha. "Orientupis, orientupis, iberibárbaros, indo-ciganagôs".


E a coisa não para aí: os eucariotas formam um dos três domínios da vida, juntamente com as bactérias e os bizarros Archaea, que adoram uma vida radical, dentro de fontes termais e lagos salgados. Isso não é nada perto do bizarro Parakaryon myojinensis, descoberto em 2012, que é um ser indiscutivelmente vivo (ou seja, nada parecido com um vírus), embora não seja nem eucariota, nem bactéria, nem do domínio dos Archaea. "Orientupis, orientupis, ameriquítalos, luso-nipo-caboclos".

Meu caro, diante de tantos "egipciganos", "caribocarijós", "orientapuias, mamemulatos, tropicaburés, chibarrosados, mesticigenados oxigenados debaixo do sol" haverá alguém que discorde que "não tem um, tem dois; não tem dois, tem três; não tem lei, tem leis; não tem vez, tem vezes; não tem deus, tem deuses; não tem cor, tem cores"?

Que espanta mais? As sinapomorfias crípticas ou as homologias atordoantes entre seres sem ancestral comum imediato? Escuta a música: ele diz "Não há sol, há sóis" ou "Não há sol a sós"? Não é o encarte do CD ou a letra num site da internet que vai me obrigar a optar por uma dessas leituras. Afinal, numa música, é o som ou a letra que conta? É a razão ou o que nos fornece a empiria? É Descartes ou Locke? 

Está o mundo a nos desafiar, pobres animais classificadores que somos nós, pensando que somos únicos, prostrados diante do indecifrável Parakayon myojinensis!