O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

SIC TRANSIT GLORIA MUNDI

Nuvens escuras sobre a cúpula de cristal do planisfério terrestre. Vazio e grisalho. E eis que um brabantino solitário e boiando no nada falou e tudo se fez, ordenou e tudo passou a existir. Pedras e plantas. Há algo que já lá brota. Avancemos, à esquerda e à direita, e a cor se fará.

No fim do início, nus e rosados, esticamos a nossa feminina mão para o toque do sagrado conosco, enquanto masculinamente nos sentamos, para que possamos vê-la, a nossa outra eu, ser abençoada genuflexa. Coelhos, faisões e pegas testemunham a cena. E, por trás, um turbilhão de andorinhas e aves amarelas azulejam o que antes era cinza, dançando entre as formas orgânicas das pedras, que tanto acima de nós exceliam. Uma delas açafroou-se, redonda e vazia, pétreo livro e penas com que se escreveu esta história. A dança hirundina passa por dentro dela. No cíano horizonte, outras formações intrigariam geólogos e botânicos, pois são mistos de seus objetos de interesse. E brancas, e negras, de um jalne e de um castanho-avermelhadas, outras aves torneiam, entram em como que ovos e cogumelos de pedra, saem e pastam. Dir-se-ia que tais formações foram feitas por homens, pois se parecem umas com rodas transversas por troncos, outras, verdadeiros cabeços, despontam de jalecas. E junto aos pássaros, vislumbram-se cervos. Um, se atentos, teríamos visto, está morto e devorado por um carnívoro já presente entre a alimária. Entre os de compleição bem definida, há os perseguidos por javalis. Haveria quem dissesse que os espinhos histricídeos também apontam para algum destino aziago. Descuidados, nós três não vimos, cercados de pachorrentos elefantes guiados por macacos, calmas girafas, ursos a brincar, raposas, bois, cavalos, cães bípedes e unicórnios, que, próximo à fonte rosada, de aspecto tão arquiteturalmente vegetal, descia uma serpente de uma tamareira, algo que também nos poderia ter sido relatado pelo lagarto negro. Entre o pavão e o estranho pássaro de cauda espinhosa encontra-se, no orifício perfeitamente redondo da fonte-flor, infausto mocho, a olhar para o sopé, onde alquimística reação borbulhante, de um tenebroso azul escuro, suja a água com vidros que continham algum amavio (ou será um filtro?) e dele rastejam macabros anfíbios, alguns tricéfalos e negros, outros brancos e envoltos em bordado casaco, com cara de rato, outros ainda em concha, cheios de pernas, com sua cauda longa. Patos e cisnes não veem nada disso, pelo que tudo indica. À margem, pomar opíparo, onde nos encontramos, ao lado de um pândano engavinhado por frutos que se assemelham a morangos, não fossem tão grandes. E nesse verdeio, enquanto o ato se consuma, não percebemos ao nossos pés, nova fossa de água escuríssima, e nova hecatombe de répteis e batráquios, da qual participam felinos e aves, os quais convivem com monstros: aqui pavões tricéfalos, ali pássaros de língua de cúspide, um deles bípede com cauda de lagarto, acolá outro similar (não fora o bico de castanhola), fora peixes com cabeça tresquiornitídea ou com feições de cavalo de batalha e de galinha, outro com asas. Um deles, com cabeça anatídea e mãos humanas, está tranquilamente a ler. Lê sobre esta vetustíssima descrição que o entorna ou sobre aquilo que ainda se sucederá?


Acordados, a cena é outra: vemos a azáfama do mundo e nele, o homem, antes tão solitário, em meio à bicharada, agora tudo dominando. Humanos alados, com suas asas rosadas e azuis, desafiam as aves, após terem vencido os peixes. O próprio grifo, domado pelo homem, tal como peixes, aves e plantas, leva em seu voo um urso morto. Está em justas com um ser sereniforme, paramentado para a guerra, singrante pelos céus em seu peixe voador, o qual está sendo enganado pela fruta e pela vontade de tê-la. Aos bandos, outros tantos cavaleiros, semelhantes a esse, se encontram no rio e, por meio da fruta, aliciam peixes e narvais. No rio, amam às sereias outros tantos cavaleiros e homens. São humanos agora, de variegada tez, e não mais os antigos animais, que dominam a cena. As antigas lajes, ora fundidas à química dos homens, brotam, amolecidas, com a mesma textura de corpos e de plantas, repletas da nudez humana, que se exercita, penetrando-as, escalando-as, roçando-se ou fazendo acrobacias nelas. Da laje azul também brota a flor rosa, ornamentada por um vaso sobre o qual está o maldito fruto, cercada de hastes por onde vão e vêm os humanos. No centro do rio, o formato esférico do fruto em obra de mãos humanas, em mármore, num carmim nascente do azul, erige jorroso ícone, dentro do qual se entreveem lascivos folguedos. À margem, de um arremedo do ícone, que também lembra o fruto, rodeado de papagaios e colhereiros, saem símios. Ao longe, vários casais caminham e conversam, vários caçadores carregam suas presas às costas. Aquele animal cascudo, de que já havíamos falado, com sua concha às costas, cheio de pernas, está com eles, arrastando sua cauda longa.

Aquém desse rio, circunda o lago redondo imensa quantidade de humanos, montados em cavalos, asnos, dromedários, bois, cabras, cervos, unicórnios, grifos, leões, panteras e ursos. Os peixes e aves  parecem finalmente rendidos e há frutas em abundância. Mesmo o porco-espinho, potestade d'outrora, agora se vê convertido em mero estandarte, fanfarrice bravateira dos humanos. O pássaro-fruta, com seu bico desnorteantemente longo, fora vencido e está sendo trespassado por horda que, de ponta-cabeça, se apinha ao seu redor, desfigurando-o. Passivamente vê toda essa cena o rato-cabra e vaticina a sua própria extinção. Do lado oposto, transformada em cornucópia de nádegas, junta-se ao círculo outra malta. Em outro frenesi cambaleante, levanta-se uma sereia por entre as pernas de malabaristas. Dentro de frutas, outros ainda há, que veem a tudo já saciados.


Mais próximos de nós, ficticiamente oniscientes, bem mais distinto se vê um regato, onde pássaros se sobre-excelem aos homens, pouco percebidos e muito apercebidos. Entre imensas poupas, pintassilgos, gaios, corujas, patos e martins-pescadores sempre esteve o homem, a despeito da orgia de domínio. Junto a eles, percebemos que há até mesmo uma margem ao tédio, afinal, alguns homens já se acinzentam de tanta fruta comida. E eis que o homem cresceu e se frutificou e a fruta se fez homem. Muitos já nascem de uma baga. Aprisionados ao fruto, tanto ao da terra quanto ao do mar, veem silentes ratos e os pássaros o retorno de seu domínio e, conscientes disso, alimentam os humanos, insaciavelmente famintos do fruto, que lhe nascem às costas. Tomados por gula infinita não pararão de colhê-lo enquanto a ciranda dará voltas, voltas e voltas. Antes senhores do mundo, da água e do ar, perderão terreno, por culpa do fruto e da ciência alquímica, para seres alados, não só os implumes, mas também para imensas borboletas, que, despreocupadamente, pousam em cardos muito maiores que os homens que os rodeiam, e para peixes que, fora d'água, ali convivem despercebidamente entre eles.

O conhecimento e o frenesi de que adiantaram para o homem? O céu agora é outro: está totalmente tomado de trevas e tudo o que foi construído se desvanece em explosões. Muitos se precipitam em fornalhas e mal conseguimos ver, ao longe, o trágico final do indivíduo. Desaba o construído e com ele, seu construtor. Mas os exércitos parecem não se importar e continuam destruindo ainda mais. Vê! As orelhas humanas foram cortadas e nada mais podem ouvir. Não é socorro que terão, ao estenderem os braços, mas somente forca, tortura e tormento. Agora metade humanos, metade animais, o fruto do antigo ventre arrasta multidões para a destruição. Tínhamos a chave e agora estamos mortos, dependurados nela. Nosso alicerce é uma ossada imensa: se pudéssemos olhar para trás, veríamos, e riríamos de nossa estupidez. De nosso corpo oco trespassado por chifres e galhos, entrevê-se mais tédio e auto-engano, aplacados vãmente entre fúteis risos pelo comer e pelo beber. Na nossa cabeça entoa a vaidade de uma charamela e de seu fole: levam-nos pela mão figuras altivas e absurdas, num arremedo da ciranda antiga. Alicia-nos agora o inseto com bico de ave para subirmos, feridos, escada acima e agora são tresquiornitídeos os monges que nos aconselham e macacos os que nos baloiçam em sinos. Dessa nau de dupla base, sob fina camada de gelo, nada se espera a não ser mais perdição de um futuro desabar: vemo-nos atravessados por espadas inimigas e devorados por cães, violentados pela guerra, pelo odre e pela navalha.


Mas isso é o que se vê ao longe. Fora das penumbras, bem à frente de nosso olhos, a cena ainda é pior: serpentes nos enlaçam em cantilenas que embriagam despudoradamente todo nosso corpo. Confundimo-nos com os instrumentos e seres de tez já obsoletamente rosada parecem dar-nos a pauta. Essa música assim orquestrada serve para deleite do mocho de corpo humano azul com potes nos pés e caldeirão à cabeça, que nos devora inteiros, no alto de seu trono e nos dejeta, fazendo que as primevas andorinhas saiam de dentro pelos nossos orifícios e que caiamos em fossa imunda onde se vomita e se defecam moedas de ouro. Sob os pés desse portento só há mais abusos e absurdos: um lúdico decapitar, um atroz perfurar, um cruel esquartejar. Atormentados por ratos-arraia, coelhos que tocam trombeta, cães que nos devoram, porcos-freiras que nos violentam, continuamos importunados por seres rastejantes nas suas antigas armaduras, com seus imensos bicos afilados.

Falei do ontem, do hoje e do amanhã. Mas e a eternidade? Ora, ela já existia antes disso tudo. Deverá existir também se à esquerda e à direita voltarmos à cúpula de cristal do planisfério terrestre mencionado no início.