Não quero, com mais um discurso seco, chover no molhado.
Só há angústia e eu quero ser leve, como essa pluma que cai. Vês? Ela pousa. A pluma cai leve, muito leve, leve… pousa. Enfim, é normal que eu agonize, tentando retomar a origem das coisas: sinto-me dentro delas e fujo. A possibilidade dada hoje ao cidadão comum de expressar infinitamente suas opiniões, compatíveis à sua pobre vivência e a capacidade de encontrar seus pares, os quais comungam com seu pensamento, avalancharam em mim a sensação que descreverei. E agora, quando tudo é pós-verdadeiro, nesse clima em que toda verdade pode ser eternamente questionável, vejo pessoas que são, na verdade, só parcialmente céticas. São céticas para defender aquilo em que acreditam porque têm quem as ouça e reforce suas impressões... Paradoxo à vista: se acreditam em algo, são, de fato, céticas?
Pensando nisso, eis que salta de um cipó diante de mim um ser deveras peculiar: seminu, face pintada de branco e preto, magro, esguio. Convida-me a saltar com ele. Salto. Salto, como dizem, para o meio da vida, como uma navalha no ar que se espeta no chão. E agora, que me desvencilhei de tudo, agora, que sou natureza, não posso ficar colado a ela como uma estampa e representá-la no desenho que dela faço. Não posso porque em mim nada está como é. Tudo, diz ele, com seu sotaque mato-grossense de Bela Vista, é um tremendo esforço de ser. Desconfio que seja um hierofante. E ele me diz com sua voz maviosa: “Não há possibilidade de viver com essa gente e nem com nenhuma gente. A desconfiança te cercará como um escudo. Pinte o escaravelho de vermelho e tinge os rumos da madrugada. Irão de longe as multidões suspirosas escutar o bezerro plangente”.
Essas suas palavras desencadearam em mim a metamorfose que ora entenderá, de tão explícita. E da minha boca sai a sua voz em ritmo de glam rock. Estranho: o meu sotaque agora é lusitano, de Arcozelo; minha mente não se desconecta de João Apolinário. Por trás dele, um coro polifônico. Com atenção se ouvem Vinícius, Pessoa, Bandeira, Cortázar, Cassiano Ricardo, Oswald de Andrade, Solano Trindade. E eu vi as cabeças desses seres iluminados servidas num prato, com broas, linguiça, cebola, grão de trigo e vinho. Parece que no meio da minha linda visão escutei um idiota bradando pela suspensão da liberdade de reuniões e de associações. Acreditai, quem tem coragem de fazer isso não o faz por badalação, mas por tédio. Podem censurar-me a correspondência, que a imprensa se cale como queiram: é chegado o excesso de telecomunicação e de diversão pública que tanto desejávamos.
E no meu transe, eu obviamente não sou mais eu, leitor: lembrei-me que tantos cristãos já não têm mais o menor respeito por mim e que preparam a minha cruz. Se todos agora duvidam do que não precisam duvidar e se não duvidam do que é altamente duvidoso, já estou como Pôncio Pilatos: falta-me apenas apenas que gato preto, o Behemoth, cruze a minha estrada. Meus amigos agora têm poder. E se não é de vida ou morte, é de apertar um botão e dizer-me adeus. E assim, já não me levam mais no bolso, diariamente, a qualquer hora, a qualquer instante. Depois de tomarem uma overdose de auto-estima, preferem hoje acabar com uma amizade de vinte anos a ouvir alguém questionando suas teses delirantes. Que assim seja. É triste, leitor, as paranoias estão aumentando. Pior: quem as controla são desconhecidos que saem do fundo de uma floresta e cortam nossos cordões umbilicais para atá-los aos de outros, desconhecidos, com quem somos mais felizes. Caídas as árvores serradas, saltam as ninfas em nossa frente. Depois que o gato preto passou por debaixo da escada, lá no fundo azul, na noite da floresta, a lua iluminou a dança, a roda, a festa. E que festa essa dos que saíram da lama e foram moldadas pelo novo deus ignoto! Qual a festa vista por Margarita Nikolaevna, nua e embruxada. Que milagre medonho o desse deus que lhes deu voz para nomear tudo. O novo deus apostou na falta de senso crítico da maioria e, isolando-os numa nova canaã, venceu. No meio da noite, no meio do medo, aos olhos insones os fantasmas passeiam, no canto do galo, no uivo do cão, nas vozes do vento, no galope, no relincho, no meio da solidão. Que ideias são essas que me vêm a mente, Ney? O escuro esconde zumbis, lobisomens, os bichos do mato, o medo mulato. A morte passa num calafrio que corre dos pés à cabeça tapada. Socorro, João Ricardo; valei-me, Luli e Gerson Conrad. E nesse mundo de luz e som, que não me ofusca nem me ensurdece, não vou buscar a esperança na linha do horizonte, nem saciar a sede do futuro na fonte do passado. Nada espero e tudo quero. Sou quem toca, sou quem dança, quem na orquestra desafina. Quem delira sem ter febre, só o par e o parceiro das verdades à desconfiança. Obrigado.
Mas eu fui belicoso, dir-me-ão. Quem tem alguma ascendência sobre alguém pode simplesmente jogar as diferenças para debaixo do tapete, evitando o conflito daquele que nos provoca. Isso, não te iludas, reforça mais o "ponto de vista" dele e gera nova espécie de hipocrisia. Não tardará muito, ó, conciliadores: uma hora dessas o belicoso encontrará seus pares e promoverá algum tipo de ruptura. É sangue o que eles querem. Não nos iludamos. Não existe a simples e suave coisa coisa nenhuma que em ti amadurece. Não há mais a sombra, o silêncio ou a espuma, nem a nuvem azul que arrefece.
É o que a mediocridade sempre quis, a doce mediocridade do nada sábio homem, mas sempre ficou calada e agora seus discípulos, ó, mediocridade assumida, temerária e arrogante, têm vossas cabeças na bandeja. Recomeçou a guerra contra quem detém o conhecimento tradicional e abre-se a porta para um novo Peabiru. Como quando surgiu aquela loucura persa que afirmava nada mais que o absurdo para a antiga sabedoria, que um são três na sua matemática ingsoc, que o noos se consubstancia numa fatia de pão ditas algumas palavras mágicas e o êxtase pleno advém taurobolicamente ao bebermos o sangue do fruto da união de uma virgem com a divindade. Loucura, mas durou e tem durado milênios por causa da voz humana delirante, das suas instituições, dos livros e das atuais redes.
Um grito de estrelas vem do infinito e um bando de luz repete o grito. Enquanto viram lobisomens, enquanto bailam corujas e pirilampos entre os sacis e as fadas, eu escuto: eu não sei dizer nada por dizer. Se você disser tudo o que quiser, então eu escuto. Fala! Se eu não entender, não vou responder, então eu escuto. Eu só vou falar na hora de falar, então eu escuto. Fala! Todos sabemos que nos fios tensos da pauta de metal, as andorinhas gritam por falta de uma clave de sol. Não seria diferente. É tudo questão de abrangência. Mas… ainda há uma nesga de dúvida na minha mente: se o primeiro rompimento gerou mil anos de Idade Média, o que gerarão esses fóruns e redes sociais atuais? Não consigo ver nada para o futuro diferente do que vi em Mad Max.
Sim, o verme passeia na lua cheia. Jurei mentiras e sigo sozinho. Assumo os pecados. Ah vida, meu verdadeiro amor! Eu só queria o amor da flor de cáctus, mas ela não quis. Eu dei-lhe a flor de minha vida e vivo agitado. Eu já não sei se sei de tudo ou quase tudo, mas eu só sei de mim, de nós, de todo o mundo. Eu vivo preso à sua senha; sou enganado. Eu solto o ar no fim do dia; perdi a vida. Eu já não sei se sei de nada ou quase nada: eu só sei de mim. Oh, minha vida, mulher infiel, traiçoeiramente ativa. Minha vida consumida pelo teu jeito, pelo teu peito saliente, eficiente nas horas vivas e nas horas vagas-pagas. Não era para a razão ser o patrão nosso de cada dia, dia após dia?
Mas quem tem consciência para ter coragem? Quem tem a força de saber que existe e, no centro da própria engrenagem, inventa contra a mola, que resiste? Quem não vacila, mesmo derrotado? Quem já perdido nunca desespera e, envolto em tempestade, decepado, entre os dentes, segura a primavera? Afinal de contas, diz o hierofante usando minha boca, se os ventos do norte não movem moinhos, o que me resta é só um gemido. O bico da ave que voa é a proa da nave, cujas vigias são os seus olhos. Seu coração é o motor e as asas são de ambas. A alma da ave que voa é a alma do homem. Todas as cores e outras mais procriam flores astrais.
Não: não digas nada. Supor o que dirá a tua boca velada é ouvi-lo já, melhor do que o dirias. O que és não vem à flor das frases e dos dias és melhor do que tu. Sê graça no corpo nu que invisível se vê. Rompi tratados, traí os ritos, quebrei a lança, lancei no espaço um grito, um desabafo. Em que ano estamos? Enquanto eu entoo as preces do hierofante pela primeira vez, Vanucchi Leme já sumiu e pelo menos outros setenta e quatro. Quem merece medalha pela coragem? O que me importa é não estar vencido: minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos, meu sangue latino, minha alma cativa, mesmo pensando nas crianças mudas e telepáticas, nas meninas cegas e inexatas, nas mulheres, rotas alteradas. A ferida é uma rosa cálida, hereditária, radioativa, estúpida, inválida.
E não são só os que te faltaram com o respeito que tombaram e tombam. Aquele preto de barba branca, aquele olhar tão meigo de quem espera ganhar um sorriso incolor, pedirá que tirem esse peso do meu coração: “não é de tristeza, não é de aflição: é só esperança, leve, aérea... ah, livrai-me dele, senhor capitão!”. Mas peso mais pesado não existe não: às duas horas da madrugada, ele anda de terno velho, quando aparece o guarda, fazendo cena. Bem apontado ao nariz chato, não acredita na cor. O resto todo mundo sabe: o velho morre e o guarda é o herói, por que, segundo dizem, é preciso ser assim e assado. Pausa para um suspiro... Com cirrose, a rosa é uma anti-rosa: sem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada. Que fim levaram todas as flores que o preto velho me contava? Que fim levaram todas as flores de que a rainha louca não gostava? Que a lapela morta carregava? Que o olhar de todos me lembrava? Que fim levaram todas as flores que qualquer coisa não estragava? que fim levaram todas as flores que a criança às vezes me pedia, em qualquer dia que podia, com grande amor e alegria?
Nesse exibicionismo solitário, que me permite ser o profeta de algo que já aconteceu, lancei-me na mesma prece cósmica de quase meio século atrás: “que os quatro como num teatro conservem a mão sem nenhum gesto, que o vinho quente do coração lhes suba à cabeça espessa, que do bolso de cada um dos quatro como num teatro voem pombas brancas... e amanheça”. E fez-se a mágica. Finalmente eu vi El Rey andar de quatro, de quatro caras diferentes e quatrocentas celas cheias de gente, de quatro patas reluzentes e quatrocentas mortes, de quatro poses atraentes e quatrocentas velas, feitas duendes.
Nasceu um novo dia que sol o veste de vermelho, o homem de preguiça, o verde de poeira. Seca os rios, secam os sonhos. Seca o corpo a sede na indolência. Quero beber o suco de muitas frutas, o doce e o amargo indistintamente, enfim, beber o possível. Sugar o seio da impossibilidade até que brote o sangue, até que surja a alma dessa terra morta, desse povo triste. Mulher barriguda, que vai ter menino, qual o destino que ele vai ter? Que será ele quando crescer? Haverá guerra ainda? Tomara que não.