O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

domingo, 30 de maio de 2021

PELO SIM, PELO NÃO

Cada vez que falas, eu, espantado, me calo. Cada vez que as palavras saem de minha boca como torrentes é a vez de tu te calares. Percebes, leitor? As palavras, essas excreções do pensamento, são desnecessárias. Desnecessárias como são nossos pelos, que pararam de crescer por algum bug genético. Os nossos pelos não ficarão maiores no inverno, para nos aquecer. Não importa se isso acontece conosco, humanos, e por isso inventamos mantos, como disse o biólogo, ou, justamente porque inventamos mantos é que pararam de crescer, como disse o sociólogo. As duas teses apenas são palavras para explicar o que é inexplicável e, sem pelo e com inverno, é preciso se mexer. Mas, como Artur Bispo do Rosário escrevera em seu manto: Eu Preciso Dessas Palavras escrita e por isso, meu caro, o impulso de falar me parece tão forte quanto o que o pelo teve quanto decidiu parar de crescer por instrução de um DNA mau gestor. Words, words, words


E não há coisa mais inútil que uma palavra. Com meu silêncio, mostro-me austero. Sem me responderes, dizes mais do que com palavras fáticas. O império do silêncio é idêntico ao das nossas palavras desnecessárias. Desnecessárias porque revelam as idiotices da nossa alma, nossas obsessões, nosso oco interior. Bom mesmo é imaginar o que o outro é, mas ouvi-lo falar é enfadonho e decepcionante. Por isso o novo parece tão bom. Enquanto não ouvimos o novo falar o suficiente, temos tempo de projetar nele as nossas obsessões, mas basta que haja intimidade e veremos que nos enganamos. O outro é o eterno mesmo, porque nenhum outro sou eu. Piscis nequaquam est, nisi recens. "Nã he peyxe, senão fresco. Dirseha do ospede, que nã agrada senão em quãto he nouel", como carinhosamente compilara Jerónimo Cardoso, pouco antes de morrer e ver seu mundo desabar sob as veleidades de Dom Sebastião. Tudo é Panidis suffragium, cousas de homem parvo e tolo, que não sabe julgar, como foi Pânis, rei de Cálcis, que dizia que Isiodo era melhor que Homero.

Aquele que tem um projeto de austeridade, com o seu silêncio já se revela eficazmente, com parca meia dúzia de palavras, ser um idiota para o seu ouvinte; aquele cujas palavras não ouvimos o suficiente não teria direito a chamar-se um ser humano pleno, daqueles que acorda de manhã, arria as calças e defeca, como todos fazemos. Sua estratégia de silêncio destaca-se no xadrez do bando humano, mas, como todos, arrota, fede e é tão idiota quanto os que falam e eu preciso de deuses, quer para adorar, quer para criar imagens deles para, em seguida, feri-las com um surto iconoclasta. Fiz-te a ti, à minha imagem e  à minha semelhança, mas não estou contente comigo mesmo, por isso lanço-te, desapegadamente, uma marretada na cabeça e estilhaço tua estátua em mil pedaços. Sorrindo ou chorando, agora junto os cacos, dissolvo-os, parto para a próxima imagem e esse novo círculo, pintado de mil cores, formado com mil pincéis, cuja margem terá infinitos detalhes, cada vez mais complicados ou cada vez mais simples, voltará a se instaurar e assim será, até que eu, indivíduo, faça a única coisa da qual tenho certeza: morrerei, por meio de uma força tão forte quanto aquela que impede que meu pelo cresça no inverno em defesa de meu corpo.


Mas enquanto isso, que custoso é desenhar esses círculos de dentro dos quais minha pouca imaginação não consegue sair! Eu quero falar ao mundo uma coisa sobre a qual me engano conhecer e sobre a qual tenho convicção ainda maior do que a morte, no entanto, para verbalizar essa mesma coisa, preciso de uma vida toda e mesmo assim, não compreenderás e, sendo sincero, eu também nunca compreendi.

Porque “eu sou assim” é a frase mais entediantemente repetitiva, que sai de todas as bocas rodrigueanas ao mesmo tempo, acredite quem quiser no “assim” do outro. Em momentos de profundíssimo tédio, tampam-se os ouvidos e ecoa apenas o “eu sou assim” provindo de si mesmo; mas quando o tédio atenua um pouco estamos dispostos a babar ouvindo essas palavras vindas da boca de outro, como se fosse a mais original de todas. E, no entanto, são as únicas palavras que qualquer ser humano consegue dizer, mas para isso inventou línguas com vocabulários extensíssimos e regras gramaticais absurdas e, não contente, escritas canhestras para o deleite dos olhos, porque no fundo só queria, exausto, após uma dia de forrageamento ou de labuta com a enxada, ficar sentado em cima de uma árvore, pedir para tirarem-lhe os piolhos, olhar as coisas sem entender direito e, sobretudo, brincar.

O brincar - portanto, tu, que dormiste na primeira linha desse texto e já não estás me lendo – é o único ato possível, uma vez que nada, nada, nada, substituirá, saciada tua fome de frutas e besouros, aquele pensamento tão inverossímil que é o “eu sou assim”, o qual fundamenta a tua má-fé, a tua autoimagem e o teu desapreço por tudo aquilo em que não te refletes, ó mais narcisista de todos os seres, pois sequer percebes que isso é necessário e disso não fugirás com teu infernal raciocínio. Pensamentos são zumbidos e as palavras, seus arremedos.

Perdeste o pelo, ó símio, ninguém sabe como e não culpes os piolhos, meu caro analista da evolução. O teu pelo não cresce no inverno, azar o teu. Antes perdeste tua cauda e agora teu olfato desaparece, abrindo alas para teu cérebro invasivo. Ó mais desamparado de todos os seres, que garras inúteis e quebradiças! Que desengonçado és! As árvores não são mais tua extensão, divorciaste delas! Qualquer leopardo te engole, agora, pois teu ombro não consegue lançar o peso de teu corpo em direção às copas e desaprendeste valer-te dos cipós! Do alto de tua miséria tiveste que levar teu bando para um lugar cheio de ovelhas e mamaste no ubre delas no auge de sua famélica existência. mas, como tantas esquisitices que tua sortuda neotenia te reservou, com o fim de preservar tua hedionda progênie, surpreso, percebeste que a alergia à lactose não era disposição da maioria dos teus. Foi aí que nasceste e depois disso, faltou pouca coisa: um ferro fundido para fazeres o machado com o qual sulcaste a terra e  a cabeça de teu próximo, para ampliares teu domínio e aí sim, só depois disso tudo, é que nasceu o teu tédio ou percebeste que ele existia. Tudo que fizeste depois foi fruto desse grande tédio, desse colossal tédio, desse abismal tédio. O mesmo sempre, sempre, sempre. Tédio e medo do leopardo: a isso te resumes, ó venerando ser dos renascentistas! 


És o mesmo quando saqueias a aldeia ao lado, quando exploras teu irmão, quando saltas a janela de teu vizinho à procura de sua coleção de tranqueiras ou de suas filhas, quando diriges um tanque de guerra ou um avião, quando discursas perante muitos que não te ouvem, mas te dão toda razão, porque é em si mesmo que pensam. Na verdade, danem-se palavras, lógica e razoabilidade, o que importa é que ao final do dia, estejas mascando seu último besouro, de barriga bem satisfeita e que possas ser coçado, o resto são apenas percalços que esperas sejam menores amanhã. E nada de realmente útil fazes para que o sejam.

E o Bem e o Mal? Onde estariam nisso tudo? Mal mesmo seria terminares o dia faminto, seria não teres quem te coces, não teres como impor a tua autoridade no bando por estares velho e decrépito, fora isso, meu caríssimo, nunca existiu nem existirá bem algum, mas um dia a tua falta de olfato fez que uma palavra saída da tua boca adquirisse um aceno a esse Bem e depois dela, muitas outras vieram, todas significando a mesmíssima coisa e nunca te enfadas, exceto quando te apercebes dessa ridicularia toda e, chateado de ter sido enganado, preparas a corda para teu próprio enforcamento.

Pilum non habet, "não tem de seu hũ pelo. Dirseha do que nada tem de seu", leio no velho dicionário. Nec obulum habet unde restim emat, pobre quem não tem sequer condições para comprar essa corda com que se enforque. É na verdade a fome o mal, meus caros, e a nossa fome hominídea é infinita. Fome de comida, fome de saber, fome de destruição. O único jeito de acabar com o Mal, o verdadeiro e único,  esse de que tanto te temes, foi gozar diante dos baobás caídos. Só ao massacrar quem não é assim como tu, sobretudo o mais frágil, que não te oferece resistência, advém-te o único gozo possível para essa tua espécie delirante com tendência ao enforcamento. O Mal não está na maldade humana, mas - para ti - na impossibilidade de exercer essa tua maldade. "Que tudo me seja tirado, mas se minha maldade for anulada, deixarei de ser humano e isso é o verdadeiro Mal: estar de mãos atadas para hostilizar", disseste ou pensaste, tanto faz.

Mas o silêncio não seria a solução? Se o Mal é tão intrínseco à alma do macaco sem rabo, de pelo inútil e de cabeça grande, se esse Mal se consubstancia no verbo, não bastaria abortar essa palavra hedionda, reflexo desse pensamento torpe, criado nesse lobo prefontal usurpador do trono do meu preciosíssimo olfato? Se eu fizer meu voto definitivo a Harpócrates, não estarei de uma vez por todas enclausurado inofensivamente no meu silêncio deletério, suportando o insilêncio alheio como um Buddha, livrando-me de todo o mal que poderia cometer? Não está aí a solução? Consciente do mal inexorável que nasce de qualquer abstração comezinha que venha das minhas profundas circunvoluções cerebrais, desde o meu hipotálamo, se eu cercear qualquer movimento muscular de minha boca ou de minhas mãos loquazes, não estarei eu, doravante apenas observador, no profundíssimo do abismo do meu nirvana simplesmente contemplando a loucura do mundo sem nela intervir e sem contribuir com ela? Com algum esforço, eu poderia até mesmo treinar um sorriso nos lábios, que não significaria nada, mas teria a função de evitar ser morto, a menos que o interpretem como riso de escárnio…


Se eu não tivesse concluído que a saída é o voto de silêncio a que há três meses anseio com quase volúpia, eu diria finalmente que necessitas molesta. Bom, mas se digo que a necessidade é enfadonha, dou a entender que tudo o que se faz, segundo a nossa natureza, nos é deleitoso e o que se faz contra ela nos parece áspero. Isso, porém, custa muito para que nos calemos de uma vez por todas. A nossa voz é mui maviosa e enquanto gostarmos dela, sentar-nos-emos no galho e deleitar-nos-emos com alguma recordação, mesmo que seja uma só, mínima, ouvida por meu ouvido interno como o canto de um rouxinol. Por outro lado, diziam os sábios - que nunca se entendem - e concluíram bem - se eles não são umas bestas arrematadas em que idiotamente me fio - que necessitas magistra. A necessidade é boa mestra, porque faz inventar todas as coisas. De todas essas coisas inventadas a palavra talvez seja a mais importante, pois no princípio era o verbo. De quase entranhada em meu corpo híbrido, como o daqueles estranhos seres que Cronenberg colocou em seu filme eXistenZ, meio criatura de carne, osso e tendões, meio criação provinda de uma loucura coletiva e individual, a palavra, com sua face de Jano, me seduz com sua perfídia mentirosa e canhestra, a qual observo, entendo, desprezo e a ela me declaro, do profundíssimo de meu ser fadado ao abismo da morte, que a amo justamente por não ser eu mesmo. Amo-a histericamente por ser imorredoura, mas talvez o melhor mesmo seja, como fazem os neuróticos, só virar-lhe as costas durante o ocaso, temeroso de que falte algum besouro para mascar em cima da árvore no final do dia seguinte, e só observar o trânsito do mundo, com alguma boa memória que me reste.