O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

sábado, 7 de agosto de 2021

NEM RAZÃO, NEM FÉ

“Não! Não! Não!

Eu não vou escrever mais”, decidi hoje mesmo. 

De que me adianta levantar-me, pegar minha pena e traçar palavras mensais? De que me vale escrever longas mensagens encarameladas na mais pura verdade, extraída das minhas vísceras humanas se, depois há uma longa ventania de silêncio ou, quando muito, um adjetivo polido ou uma menção fática do tipo “tem razão”. No mais, apenas o eco das minhas palavras. O mundo se voltou para si. Não há mais o que fazer.

Normalmente pedimos atenção para algo que será esnobado por ser óbvio, mas quando nos mostram algo óbvio, que fugiu de nossa atenção, a bola está conosco: ou mudamos de assunto ou dizemos que isso não importa. É assim que deve ser o comportamento do recatado homem civilizado moderno. É nisso que nos tornaram as redes sociais: um enredamento de coisas evidentes, que sequer merecem comentários. Só cegos não veriam. É nessa terra imaginária que residem os novos sacis e lobisomens. O mundo moderno, cheio de informação, voltou a ser o do nossos avós não só em forma, mas também em conteúdo, porque era preciso que o mistério voltasse a rondar nossa vida tão determinada pela tediosa razão, língua falada por uma minoria. No fundo, o chorado descalabro do retrocesso é apenas o grito travestido do antigo bom-senso, esse boitatá recalcado. "Eu me lembro", alguém dirá, para nosso desassossego.


Ai de ti, jornalista, que ainda acredita na novidade!

Para entender o futuro, costumo ler notícia velha. O presente não é uma novidade, como creem os ingênuos jornalistas, mas uma prestação de contas com um passado que nunca termina, às vezes bem recente, esquecido. Quem acredita que o passado passou mesmo é cristão não hipócrita, que boia conforme a água leva, como a folha numa enxurrada, mas quem produz as enxurradas é inevitavelmente um porta-voz de algo em que não acredita.

Por isso tudo, decidi hoje falar apenas sobre o básico, ou seja, sobre o que nos move dia a dia, a arrogância. Como sabemos (ou devíamos saber), a arrogância não é o mesmo que altivez. Aliás, a coisa mais rara do mundo é um altivo suportar um arrogante. Não são sinônimos, nem antônimos. Mas é muito difícil encontrar quem distinga bem aquilo que os une. Altivamente tentarei fazê-lo. Se o meu mudo leitor não concorda, ou é outro altivo e um interlocutor em potencial, ou é um arrogante, de quem quero distância. Impossível concordar ou discordar daquilo que não se entende. Se o que me lê já fez isso, é porque não é nem altivo, nem arrogante, mas uma pessoa cujas ambições estão todas depositadas fielmente em outrem. Se é esse o caso, lamentaria muito pela sua condição, se essa não fosse a condição mais natural do mundo, desde o princípio da vida que bruxuleia nas águas e rasteja na terra, condição que hoje em dia mamãe internet e papai videodrome nos fizeram acreditar que se trata de uma condição doentia. 

Vejamos, afinal, as óbvias diferenças. Um altivo pode abaixar o tom perante alguém que sabe mais que ele, mas um arrogante não. Um altivo recolhe-se, às vezes, arrependido e sentindo-se culpado por ter sido idiota propalando e disseminando o erro, mas um arrogante jamais. Como dito, um altivo por vezes recua, um arrogante apenas avança. Porque o arrogante simplesmente se arroga com um direito que não tem, movido por uma força externa, que não é a sua própria. Um arrogante acredita que uma profecia que ouviu (nem que seja proferida pela sua própria cabeça) há de se cumprir, quer com sua ajuda, quer passivamente. Um altivo apenas detecta o rumo das coisas e diz, pintando com cores da certeza, que ninguém deveria ter, qual caminho é o mais adequado a percorrer. O altivo, por vezes, se engana e sabe disso; o arrogante nunca o admitirá. Na superfície, um altivo é muito parecido com o arrogante, mas nos genes que formam sua essência são completamente opostos. Não é raro vermos o altivo pedindo perdão, algo impensável para um arrogante. Se não ouvimos o pedido de perdão do altivo, vemo-lo nas suas ações, que, se bem interpretadas, sem nenhuma arrogância, denunciarão o seu remorso. 

Aí, meu caro ou minha cara que me lê, é apenas questão de perdoar ou não; difícil quem, na atmosfera cristã do Ocidente, não tenha ouvido falar da boca de religiosos sobre o poder miraculoso do perdão. É preciso ser muito incoerente ou muito arrogante. O perdão é um elemento intrínseco de nossa sociedade e é o que nos torna às vezes, bem raramente, seres dignos, ao mesmo tempo que nos destrói. Pedir perdão, enfim, é comprovadamente algo que revela uma fraqueza nossa até então latente. Quando o arrogante pede perdão, porém, tem em vista a sua sina e precisa de nosso esquecimento para poder destruir quem não o louva. Já o raríssimo pedido de perdão do altivo é sincero, enquanto o pedido de perdão do arrogante, de tão falso, é algo absurdamente ameaçador. Um arrogante jamais se porá do lado dos fracos, já o altivo terá sempre o direito à náusea.


Se alguém te disser que és arrogante, saberás que o arrogante é quem, por comparação, afirma não o ser. Acautela-te! Nenhum altivo te dirá que és arrogante; apenas lamentará que sejas estúpido. E ser estúpido não é crime, embora irrite o altivo. A arrogância não só ofende, mas destrói. Não há arrogância passiva, pois nela se dissimula o veneno, à espera da chance de que passes ao lado, para que o mesmo veneno seja inoculado em ti, veneno há tanto tempo acumulado e remoído. O arrogante quer, o quanto antes, a tabula rasa. O arrogante quer mudar tudo que está por aí e, por vezes, consegue. Por vezes, dão-lhe a oportunidade sonhada. Se não lhe dessem, morreria com seu veneno, calado; morreria como todo mundo; não seria nada além de ser arrogante.

Mudanças são boas ou más. Mas a mudança do arrogante não recua como a mudança do altivo. A mudança do arrogante vai adiante, porque ele sabe onde quer chegar, sem discutir com ninguém. O arrogante prefere o silêncio, pois está sempre certo e não volta atrás. O arrogante tem todas as respostas prontas; é surdo, embora fale em abundância se lhe derem um microfone. Há quem apoie o arrogante, pensando que o lugar aonde ele quer chegar é o mesmo de quem o apoia, mas o lugar aonde o arrogante quer chegar é apenas o lugar aonde só ele, o arrogante, quer chegar, mais ninguém. Apoiadores de arrogantes são suicidas e, se aonde o arrogante quer chegar é o suicídio, quem sabe quem o apoia tenha razão em apoiá-lo. Infelizmente, nem todos arrogantes desejam o suicídio, pelo contrário, a maioria deseja a vida eterna.

Por isso, quem apoia um arrogante é uma figura paradoxal. Há arrogantes que odeiam negros e são apoiados por negros;  há arrogantes que odeiam mulheres e são apoiados por mulheres; há arrogantes que odeiam índios e são apoiados por índios; há arrogantes que odeiam gays e são apoiados por gays; há arrogantes que odeiam gordos e são apoiados por gordos. O que marca e distingue um altivo de um arrogante é seu ódio. O que marca e distingue um apoiador de arrogante é talvez algum ódio a si mesmo ou alguma crença na pouca literalidade das palavras. "Afinal", dirá a quem o questionar, "o que é algo literal?", perguntará, subitamente relativista, pronto para perdoar quem não perdoa ninguém; jamais sentiu ou sentirá a náusea de ter errado. Quem quer o apolíneo, enxerga o apolíneo. Quem quer o dionisíaco, enxerga o dionisíaco.

Mas que o leitor me entenda bem: quem apoia a arrogância não é ingênuo, por conseguinte, não é uma vítima nem mesmo no sentido mais estrito da palavra: o apoiador quer percorrer a picada recém-aberta pelo arrogante porque se vê nela. O apoiador estava ali, sempre esteve, esteve latente, esperando, triste por não ter sido visto, com os olhos bem abertos e ansiosos para ser visto. E o único que o vê e tem condição de vê-lo é um arrogante. Se quem me lê pensa que tem um quê de altivo, mas se afasta do arrogante que descrevo, deveria acautelar-se quando perdoa esse apoiador do arrogante. Ele não é ingênuo, mas tu poderás sê-lo e é tudo que o arrogante quer. Com ele, depois, virão outros apoiadores, pois a ingenuidade é coisa rara: no mundo abundam altivos, há alguns arrogantes e, obviamente, há muitos que não são nem uma coisa nem outra, prontos para subir-lhes à garupa, de tão cansados que estão de andar a pé. Pedir que um apoiador de um arrogante volte a andar a pé, do lado dos cavalos onde cavalgam altivos e arrogantes, é um pedido demasiadamente ridículo. Ninguém gosta de andar a pé, havendo quem possa levá-lo a cavalo.

Assim, ó altivo, sabes agora quem és, depois de remoer a tua consciência e o quanto te distingues do arrogante, que agora galopa diante de teus olhos! Não te esqueças que és um cavaleiro como ele, que tanto te despreza. Olha para o chão e vê que os pedestres precisam de uma garupa. Ou dá-lhas ou sê um altivo mudo, porque tua voz afinada destoa da histeria promovida pelo arrogante. Se nem todos cabem na tua garupa, lamenta, pois é a única coisa que te resta. 


A arrogância venceu e, parte da culpa disso foste tu, altivo, que não olhaste para o chão e não viste que não existes apenas para ser louvado, mas para ajudar quem tem feridas nos pés. Azar o teu, altivo ingênuo: o monstro arrogante, que só pensa em si, olhou agora mesmo para aqueles pedestres. Bastou-lhe apenas acenar com a possibilidade de haver um dia longínquo em que terão sua garupa, ou melhor, um cavalo próprio e agora o amam, ainda caminhando, imaginando tudo isso.

Ouve, ó altivo, o alvoroço que se afigura lá na frente. O arrogante a cavalo, a horda cantando à sua volta absurdos. Se não pensam, não lhes custa repetir: é-lhes melhor repetir que têm a promessa insensata de um cavalo a repetir uma sequência lógica de coisas sensatas que não lhes dará cavalo nenhum. Não os chame de interesseiros, altivo. Antes desce do cavalo, dá-lho, desiste de tua altivez e começa tudo de novo. Ou então permaneces sobre o cavalo e lamenta. Tertium non datur

Ou desces ou choras, altivo. Se desces, terás longo percurso, sem que tenhas mais tempo para terminá-lo: vês quão longe está o arrogante e a horda barulhenta? Se choras, és esse palhaço, eternamente altivo, dono de tudo que é verdadeiro, abalado por tudo que despossuíste, sem louro, sem festa, sem pompa. És só um altivo que ficou para trás por não ter estômago ou coragem para te desfazeres de teu único cavalo e dar ao primeiro que, com certeza, não te garantiria nenhum tipo de gratidão. Era isso que querias o tempo todo, altivo, gratidão? 

Agora é tarde, vê a horda, no máximo, perderás teu cavalo e tudo continuará igual. Mas talvez seja o melhor a fazer. Afundando nas penumbras da angústia de ter perdido o dom mais precioso de sua vida, até agora insabido, procurarás a sabedoria, que anda no sentido contrário à da arrogância? Se tua mente ainda funciona, ainda há tempo de alcançá-la e, quem sabe, um dia te regozijarás. Espero que no teu caminho não encontres a esperança, que te aliciará com outro cavalo, o qual mudará o rumo enquanto dormes para a exata direção para onde caminha a horda que celebra o dom futuro do arrogante. Dizem que o sol do conhecimento não se confunde com a esperança, mas ainda é bem melhor que o ocaso da arrogância. Só mesmo caminhando, um sábio, convicto de que esse é o caminho a percorrer, descobre, aos poucos, o que há de vaidade nisso e o que há de verdadeiro: nesse momento, a horda lhe parecerá distante demais.

Recobro uma nesga de razão. “É muito discurso individual esse da sabedoria; há nele pouco projeto coletivo”, penso. É lamentável admitirmos que o nosso pior inimigo é um completo imbecil, pois, se ele for de fato imbecil, que mal isso nos faz à nossa narcísica auto-estima! Normalmente vemos nosso inimigo como gênios quando o imbecil seríamos nós mesmos... Enfim, não sei se com toda a razão do mundo, ou apenas com fome e sede, volto ao livro que lia ontem. Após quatrocentas e tantas páginas lidas, entendo finalmente tudo hoje:“Rhodiorum oraculum. Dirseha da/ pregunta paruoa & de pouca sustan/cia, porque os Rodios sacrificando a/ Minerua , & estando muyto tempo/ junto dos seus altares , preguntarão/ ao seu Deos se lhe seria licito leuar cõ/sigo mijadeyros? respondeo que si, tornarão a preguntar se serião de co/bre se de barro? importunado ho/ Deos dixe q̃ nem hum nem outro”.

Delirante, penso: "grande modelo para meu projeto de sabedoria! Se um dia eu voltar a falar sozinho com quem me lê, será assim também, na forma de perguntas".