O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

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Sou um saci sumério de Botucatu.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

... PORQUE, AFINAL, ODIAMOS PROFECIAS!

Convenhamos, leitor. Não há nada mais chato que uma profecia. Profecia é um spoiler, profecia não serve pra nada. Não serve mesmo. Até eu já profetizei muito. Já falei mui didaticamente sobre vírus, parecidos com o que está aí, alertando que há piores. Adiantou? Não adiantou, porque o vírus-homem ainda tem de eclodir e sair de sua não-vida para mostrar que é o dono do castelo que ele próprio erigiu. E quem duvida? Talvez ele mesmo, mas não dá a mão a torcer.

Quando não são chatas por serem previsibilíssimas, as profecias são odiosas, porque nos fazem fugir, como Édipo, para não casarmos com nossa mãe. Fugimos, mas fazemos besteira. O oráculo diz que mataremos nosso pai. Qual será a primeira coisa que faremos? Matar quem aparece na nossa frente,  obviamente, certos de que não era nosso pai. Mas era. E a profecia se cumpre. Ai, Édipo, por que não ouviste a profecia? Por que continuaste matando e casando? Que imbecil.

Mas eu entendo Édipo. Ele não ouviu, porque não só as profecias são chatas: o simples ato de ouvir profecia também é um porre. Preferimos tomar sorvete. Profecia é down. Pra que saber que vou morrer? Prefiro andar de carrinho de rolimã. Mesmo dizendo a profecia que amanhã não haverá  mais sorvetes nem carrinhos de rolimã.



Profecia só sabe falar de colapso, reclamamos. Malthus, com seu transbordamento de gente e falta de rapadura para todos. Marx, com a sua ditadura do proletariado. Harari, novo profeta, não só nos alertou, mas também nos disse com todas as letras que não temos para onde fugir. Mesmo os religiosos ficam irritados com Jesus, que não vem nunca apesar das promessas... E os cientistas? Querem maiores profetas, quando provam que Betelgeuse, umas oitocentas vezes maior que o Sol, vai explodir, levando tudo à sua volta? Vai ser bonito, porque vamos ter duas luas no céu. Quando? Hoje? Não, a qualquer momento, nos próximos cem mil anos. Dá tempo de ir ao banheiro. Que saco.

Fome, destruição, guerras, explosões. Profecia não serve para nada além de nos deixar em desespero? Então, diz aquele que não gosta de pensar no que ouviu: "não ouço e pronto". Melhor ser otimista, dizem. O contrário da profecia é a esperança, não? Esperança de que tudo passe. A camada de ozônio vai escancarar o céu e vai entrar um jorro de calor, fazendo soltar os gases pré-históricos acumulados no permafrost das calotas polares, com os microorganismos que faziam os dinossauros morrerem?  "Ok". Sua água degelada escorrerá pelos mares, fazendo mudar todas as correntes marítimas, inundando todas as cidades litorâneas? "Bom adeus Veneza; bye bye, Amsterdã!"

O povo vai subir a Serra do Mar a pé, correndo e olhando para trás como a mulher de Ló, virando estátuas de sal, engolidas pelas ondas. "Mais sal ou menos sal no mar não vai fazer diferença, convenhamos", diz a Esperança pachorrenta, com sua piteira (ué, sempre imaginei a Esperança fumando piteira! Vamos mantê-la assim na nossa narrativa). "Não esquenta, com perdão do trocadilho", segue a zombeteiríssima Esperança. "Depois que as calotas derreterem todas, a água vai parar. Poços de Caldas não vai ser encoberta. Vai ter praia onde hoje é serra. Olha que coisa boa!"



Aí o povo, ouvindo esses bons augúrios, para de correr. "Até que as ondas não estão assim tão fulminantes. Dá pra subir a serra devagarinho numa boa". Comida? "Por sorte trazemos nossos estilingues e pistolas; matamos passarinhos silvestres e assamos". Olha que gostoso, parece acampamento.

Aí vem um daqueles profetas de que eu dizia e nos lembra que pássaros têm ácaros e piolhos com bactérias ainda não-catalogadas. E que uma delas, experimentalmente, aplicada num camundongo, fez o bicho estrebuchar em cinco minutos, soltando as vísceras pela boca e, como esse comportamento se parecia com o dos pepinos-do-mar, a doença se chamou holoturite, a qual, diga-se de passagem, é altamente transmissível. "Cuidado!", disse isso, sim, mas com fome, o gordo cientista, que de Academia entende muito, mas, de academia desportiva, nada, apagando o seu charuto na brasa (cientista fuma, claro, também é filho de Deus). Faminto, arriscou, enturmando-se com a horda, uma dentada na coxa do bem-te-vi assado, afinal de contas, tinha boas razões para sua contradição: como todo biólogo, místico ou poeta, a morte não o assusta, por ser sabidamente parte dos éons da vida. "Dane-se o que sei", pensou e, em voz alta: "dá-me cá também o pescocinho e o coranchim".

Mas subitamente se lembra das premissas. A razão o atormenta sempre. Cospe tudo, passando água boricada na língua, sobe numa caixa de madeira que levara consigo (igual àquelas para transportar tomate, de feira), frente à plebe ignara e berra, iluminado pela Ciência: "Ouvi!", todos olham, "eu olhei! E eis que estava Pasteur sobre o monte Sião e com ele cento e quarenta e quatro mil, que em suas testas tinham escrito o nome de Darwin. E ouvi uma voz do céu, como a voz de muitas águas, e como a voz de um grande trovão; e ouvi uma voz de harpistas, que tocavam com suas harpas!" 

O povo, limpando nas mangas a gordura da garça recém-assada e do gambá recheado com frutas do mato, parou de mastigar para ouvir. E o cientista prosseguiu: "E liam um novo artigo da Science diante do trono, e diante dos quatro animais e dos quatro anciãos; e ninguém podia aprender aquele cântico, senão os cento e quarenta e quatro mil que foram comprados da terra. Estes são os que não são contaminados pela mídia e pela política; porque são virgens "



Virgem? O menino entendeu e riu. Fez um gestinho circular em volta da orelha, como que afirmando estar lelé o cientista. A mãe também não entendia nada, mas deu um tapa na mão do menino. Afinal de contas, não o ensinou para ser mal-educado e fez questão de escandalosamente mostrar isso a todos, com sua violência doméstica. O fedelho tinha de ouvir o cientista, mesmo que ela também não entendesse patavina. Tinha sido reprovada em biologia, lembrou de relance. O barbudo cientista, ajeitando o pince-nez continuou: "Estes são os que seguem Redi e Spallanzani para onde quer que vão. Estes são os que dentre os homens foram comprados como primícias para o Juízo e para a Ciência. E na sua boca não se achou engano, porque são irrepreensíveis diante do Juízo".

"Então você está pedindo que tenhamos juízo?", berrou um lá do fundo, que estava com dificuldade de ouvir, porque as ondas estavam batendo nas rochas, fazendo um barulhão danado. Bom, verdade que, mesmo que não estivessem, não teria entendido nada, ato contínuo à sua biográfica indiferença a tudo que não fosse futebol, mulher, churrasco e cachaça. Os da sua volta começaram com seu "uuuuuuh" previsível, concordando monossilabicamente com o que roubou o turno da fala do profeta. Arriando as calças, começando a urinar nas ondas, o interruptor completou sua fala, animado com a plateia a seu favor: "outro dia eu vi um anjo voar pelo meio do céu, e tinha o Evangelho eterno, para proclamar aos que habitam sobre a terra, e a toda a nação, e tribo, e língua, e povo, mas ele não disse nada sobre juízo. Pelo menos não ouvi".

Um, que estava do lado, banguela, retrucou: "não é verdade. Falou sim, falou sobre a hora do Juízo, algo sobre temer a Deus, dar-lhe glória, adorar aquele que fez o céu e a terra e o mar...". Nisso, uma onda o encobriu. Todos se lembraram subitamente do perigo e, percebendo que estavam ali bobeando  tempo demais, correram, correram. Até o cientista, levando a caixa de tomate sobre a qual havia feito seu discurso, correu junto com os ignaros. Depois de duas horas, correndo, esmagando-se uns aos outros, sossegaram, acharam-se novamente fora de perigo, porque fugir sem parar cansa. A Esperança, que hipocritamente também tinha corrido e até agora estava quietinha, pediu ao cientista a caixa, subiu, apagou o cigarro de sua piteira nas costas do acadêmico e, com sua voz vulgar e hipnotizantemente melíflua, dedilhou os acordes de seu discurso: "não deem ouvido a essa besta", apontando para o cientista, e iniciou sua ópera: "não lhe deem ouvido, senão serão atormentados pelo Juízo de que fala. A fumaça de seu tormento sobe para todo o sempre. Não terão repouso nem de dia nem de noite. Marquinha de vacina? Tanto faz ter ou não ter. Seguir o Juízo não traz felicidade. Para que descansem dos seus trabalhos e das suas obras, olhem aquela nuvem, olhem o sol que irradia. Vejam como o dia está bonito!"



Mas da nuvem saiu um relâmpago e, começando a chover, as palavras da Esperança, tão logo ouvidas, foram dessorridas e rapidamente esquecidas. O mar chegando mais e mais, subindo o sopé da serra quase todo, cobrira já os corpos dos que haviam sido pisoteados e isso tudo deu azo a uma tristeza inevitável. O próprio cientista, lembrando-se que no dia seguinte cairia um asteroide imenso na Terra, conforme dizia um artigo recém-publicado, deu-se um tiro na cabeça. Por toda parte havia uma tristeza enorme e quem estava por demais deprimido se deixou engolir pelas águas sem resistências, sem correr, sumindo na frente de todos. A caixa de tomate estava ali, porém, ao lado do corpo do cientista. Subiu um senhor maltrapilho e sombrio e vociferou: "Lança a tua foice, Destino, e sega: a hora de segar nos é vinda, porque a seara da terra está madura. Lance-nos no grande lagar para sermos pisoteados. E que o lagar seja pisoteado, para que nosso sangue escorra, como vinho que te embebeda. Assim é a tua vontade".

A Esperança, zombeteira, deu uma rasteira no pessimista, que um ou outro só ouviu. Mais linda que nunca, abriu seu decote, mostrou uma perna longa para fora do robe, de dentro do qual ainda tirou uma sedutora garrafa, propondo: "Hmm, que vocês acham, meus queridos? Essa história de lagar me deu uma vontade doida de tomar vinho. Quem é que me acompanha, hem? Todos levantaram a mão. Um tirou, não sei de onde, uns amplificadores de som. Instalaram-se umas luzes de discoteca entre as árvores e a festança assustou ainda mais os pássaros que estavam já assustados. E foi uma noite imensa de bebedeira e orgias. Isso, obviamente, não evitou onda nenhuma de subir. Chapiscava com sua água salgada os dançarinos bêbados e para evitar essas ondas, com as quais já se haviam acostumado, subiam mais um pouquinho, crentes de que, hora ou outra, a força do mar diminuiria. Não foram poucos os tiros ouvidos entre os dionisíacos. Macacos, pacas e até cachorros do mato serviam para o banquete infinito. E chovia e caíam raios e formava-se uma fenda no céu, com um vermelho que seria assustador, se alguém o tivesse visto, analisado e estudado meteorologicamente. Mas isso já era passado. Na sua apologia à ignorância e à indiferença, a Esperança provava que existia a felicidade. E parecia que estava tudo bem. Apesar de, como o leitor pode desconfiar, não ter havido dia seguinte para continuar a narrativa.

segunda-feira, 30 de março de 2020

FAZER PERGUNTAS RETÓRICAS PRA QUÊ?

Há perguntas e perguntas. Uma das mais comuns são aquelas que envolvem desconhecimento da parte do indagador e que urge obter uma resposta da parte do indagado. A esse tipo eu chamaria de lacuna desejante de ser preenchida. Então se eu pergunto: "que alemão morto em 1954 criou um modelo para explicar as forças intermoleculares nas substâncias compostas de moléculas apolares?" obviamente a resposta é Fritz Wolfgang London. Pois bem, a combinação entre a pergunta e a resposta é aquilo que chamamos de informação. No caso da pergunta, uma informação requerida e no caso da resposta, uma informação fornecida. Pergunta e resposta se complementam. Se estamos na era da informação, não é possível pensar em fatos a não ser mediante instigantes perguntas e suas respectivas respostas.

No entanto, uma pergunta tem além da semântica das palavras que compõem sua sintaxe também uma intenção. Qual foi a intenção daquele que expôs uma lacuna desejante de ser preenchida? Quis saber de fato quem foi o alemão que criou o tal modelo porque também não sabia ou, na verdade, já a sabia de antemão e só quis ver se aquele que responderia à questão conhecia de fato a resposta, como num exame de um curso de química? Pois bem, vemos que há agora dois tipos bem diferentes de pergunta.

Repetindo: pergunto porque não sei ou pergunto, apesar de saber? No primeiro caso, é sincera a minha ignorância; no segundo, é insincera, porém legítima, uma vez que preciso saber se o indagado também sabe. E para que preciso saber? Para avaliá-lo, obviamente. Dito de outro modo, quando pergunto algo ou quero destruir a minha ignorância ou quero comprovar se o outro é ou não ignorante. E para quê? Obviamente, para segregá-lo na hoste dos ignorantes.

Fritz London

Obviamente, a verdade da resposta, dada como informação ou como resposta à avaliação acerca da ignorância alheia, depende do conhecimento do indagado. Suponhamos que eu, que respondo, esteja convencido de que o alemão perguntado acima seja Johannes Diderik van der Waals. De fato, van der Waals teve participação, ainda que independentemente, no modelo que explicam forças intermoleculares nas moléculas apolares, mas: primeiro, ele não era alemão, mas neerlandês; segundo, ele não morreu em 1954 mas em 1923. Em suma, mesmo que a minha resposta não seja completamente absurda, pois haveria alguma semelhança entre o que fez London e o que van der Waals fez, ela seria julgada como totalmente errada. 

Além da resposta tipicamente errada, há uma terceira espécie de resposta, que eu chamaria de manutenção da lacuna a ser preenchida, que não teria necessariamente a ver com questões de falso ou verdadeiro. Em português, essa resposta equivaleria à expressão "eu não sei" ou, na variação diafásica, "sei lá", "não tenho a menor ideia" ou ainda na forma de pergunta-bumerangue "eu vou saber?" ou "e eu lá sei isso aí?". Respostas desse tipo são legítimas para a primeira espécie de pergunta, pois todo mundo tem o direito de ser ignorante, já na segunda, segundo os acordos sociais que nós mesmos criamos, merece punição, pois é sabido que a ignorância deve ser combatida, dizem os representantes dos valores sociais. Essa situação mostra bem o impasse entre o direito privado à ignorância e a vergonha pública do pecado da ignorância. E de fato, não é possível valer-se juridicamente da primeira situação se a pergunta foi proferida numa situação em que sabemos valer a segunda, por exemplo, numa prova de vestibular.

Geopedrados: O físico Johannes Diderik van der Waals nasceu há 130 ...

Suponhamos ainda que, nesse mesmo exame, uma pessoa que respondera "van der Waals" e foi julgada como equivocada alegue que a afirmação de que a resposta certa era "London" também está errada. De fato, a informação de que London era alemão é parcial, pois a situação de cidadania desse cientista era bastante complexa: London nascera em Breslau, que pertencia de fato à Alemanha em 1900, ano em que London nasceu, no entanto Breslau não existe mais, uma vez que em 1954, data de falecimento de London, Breslau já havia se tornado Wrocław fazia nove anos e, desde então, é considerada uma cidade pertencente à Polônia. Ou seja, só com mais essas informações adicionais, concluímos que London nasceu alemão e morreu polonês e, do ponto de vista da sua essência, é difícil dizer se a afirmação de que era alemão está certa ou errada, pois ao mesmo tempo que um alemão-polaco não deixa de ser alemão, nem todo alemão é um alemão-polaco. Pior que isso: London em 1939 emigrou para os Estados Unidos e lá se naturalizou norte-americano, de modo que juridicamente, London não era nem alemão nem polaco. Sendo três coisas ao mesmo tempo (com mais opções que o gato vivo e morto de Schrödinger), é muito simples afirmar que nosso caro London era alemão, diria o impetrador da ação jurídica, de modo que a pergunta não tinha sido legítima e, assim sendo, é irrespondível. Não existe tal alemão da pergunta pelo fato de a esperada resposta prever um alemão-estadunidense-polaco.

Alguém dirá que isso é retórico demais e, de fato, que seriam os questionamentos jurídicos, não fosse a retórica? Essa última pergunta também foi retórica, como a do título. Terceira possibilidade de indagação à vista.

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Voltando à vaca fria: há aquela pergunta que, quando legítima, oferece-nos um locus que deve ser preenchido ao substituir-se o pronome ou advérbio interrogativo pela resposta (fazendo, obviamente, os devidos rearranjos sintáticos) com a finalidade de suprir o vazio de nossa ignorância ou com a intenção de testar o conhecimento (ou a ignorância: estranho sinônimo!) daquele que vitimamos ao perguntar e há, por fim, tertium datur, aquela pergunta com a qual eu não busco preenchimento nenhum, pois é um imperativo travestido de interrogação e bastaria transformá-la na forma adequada ou então ler a mente daquele que pretende que eu faça o que não desejo.

Ora, se eu devo responder às perguntas retóricas com silêncio, não posso fazer o mesmo com as duas primeiras categorias? Sim, em vez de dizer "London" ou "van der Waals" ou o raio que o parta, eu não posso simplesmente fingir que não ouvi pergunta alguma, ignorando-a com uma cara impassível? Obviamente no primeiro caso, sim; no terceiro é até mesmo o que se deseja (pois assim confirmo a hierarquia daquele que me faz perguntas retóricas do alto de sua superioridade), já no segundo caso, haverá punição, se imagina o esperto vestibulando que, ignorando todas as perguntas, o questionador seria acometido de empática compreensão e não lhe daria um redondíssimo zero. Ou seja, apenas o primeiro tipo de pergunta parece ser tolerante e válido para a manutenção das relações interpessoais, já as duas outras são meras ferramentas de poder e de opressão que o bicho humano inventou para atormentar seu próximo.

Será? Quero dizer: será mesmo que a primeira pergunta é assim tão boazinha e tolera o silêncio? Se eu digo "eu vou lá saber?" é uma coisa, já olhar para quem nos honestamente pergunta algo e ficar com cara de paisagem sem dar-lhe nenhuma resposta não causaria, talvez não na primeira, mas na segunda ou terceira tentativa, pelo insólito da situação, uma vontade doida de o ilibado questionador esganar aquele que nunca responde, passando a julgá-lo como um birrento, uma vez que sabe que o indagado não é surdo, que conhece perfeitamente o código da indagação e deveria entender as boas regras pragmáticas de convívio social. Mesmo aquele que não parte para o estrangulamento, comete alguma espécie de crime na sua mente chamando o mudo de esquisitão. Na melhor das hipóteses, não tentaria entender, preocupado não mais com quem foi que teorizou as forças intermoleculares das moléculas apolares, mas com a razão daquele infernal silêncio injustificado? Suspende-se a primeira lacuna e abre-se uma outra ainda maior. Mesmo que eu não tenha a intenção de julgar a ignorância do meu interlocutor ou não queira impor-lhe um modo de ver as coisas por meio de minha retórica, eu também exerço, ao perguntar honestamente, o meu direito a uma espécie de compromisso do qual o indagado não pode evadir-se sem justificativas razoáveis ou compreensíveis. O silêncio do indagado, em vez do devido preenchimento da lacuna do indagador, pode ser interpretado como uma bizarrice ou como uma ofensa e, nisso há novamente uma boa dose da opressão que vimos, uma vez que ninguém, se indagado, aparentemente, tem o direito de não responder a uma pergunta, de qualquer tipo que ela seja.



Um passarinho pia numa árvore e o outro, longe dali, pia como resposta. Sabe-se lá quais são os códigos das aves e a ornitologia está longe de dar respostas suficientemente claras. Uma vez que a maioria dos bichos é muda, será que se o outro pássaro não se sentir obrigado a piar de volta pelos esquemas de seu instinto, haverá algum dolo, passível de ação pela justiça ornitológica (resolvida, por exemplo, com picadas no olho e em outras partes doloridas)? Ou o pássaro que ouve o piado do companheiro pode sentir-se à vontade para piar de volta ou não? Suponhamos que a evolução tenha adaptado esse comportamento a, por assim dizer, uma espécie de colaboração e que esses dois indivíduos formem uma equipe. Suponhamos ainda que o pio signifique algo equivalente à pergunta "tem algum saboroso besouro aí?" e o retropio signifique "sim" e o não-pio signifique "não". O que ouve o pio indagativo, controlando seu instinto de retropiar, pode furtar-se a dar a resposta ao colega e, sabotando o código, romper com a equipe sem que o outro saiba, comendo gostosamente o besouro que não compartilhou com o indagador, mas comendo outro meio besouro quando for a vez do outro agir assim. O que não segue as regras comeria um besouro e meio e o que segue, só meio. Terá sido espertinho, pois dizem que a evolução favoreceu os cascudos e os sacanas. No caso humano, a não-resposta seria sinal de esperteza e lhe conferiria também vantagem sobre seus genes? Podemos pensar em várias situações, no entanto, acredito que não temos nenhuma resposta absolutamente certa a essa questão. Pelo contrário, o sucesso evolutivo humano parece vir porque ele é incapaz de fechar a boca.

Understanding Why Birds Sing

E se todos se calassem? Não digo um voto de silêncio, mas um compromisso de todos os humanos nunca mais nos expressarmos por sons ou por letras, em hipótese alguma? Será que não tendo mais informações ouvidas nem proferidas, conseguiríamos nos mover simplesmente por empatia, como aqueles morcegos jovens e saudáveis recém-chegados à caverna que regurgitam na boca dos morcegos idosos ou doentes, incapazes de sair para fazer sua refeição? Ou será que, em vez dos lindos morcegos. à guisa do pássaro salafrário, definitivamente imersos no mundo diabólico de nossa cabeça individual e uma vez já infectados por signos sociais, daríamos uma banana à empatia e agora, alijados definitivamente da sociedade, como sempre sonhávamos, resolveríamos tudo no muque ou na base da traição, tirando vantagem de tudo, enquanto não somos trapaceados? A ausência de perguntas e respostas, em suma, de informação, se juntaria à nossa vivência, ainda que preteritamente artificial, de modo a, lutando contra nossos instintos tagarelatórios, continuarmos sendo hominídeos, no mau sentido da palavra? E os nascituros do pós-pacto como seriam, uma vez que a evolução, mesmo não nos dispondo de um aparelho biologicamente fonador (como são nosso aparelho respiratório e digestório), equipou-nos com uma mente leitora de formantes sonoros que usamos na época do nosso gugudadá para construir nossos fonemas antes mesmo de entendermos para que servem?

Perguntas retóricas, ou melhor, perguntas poéticas, porque obviamente ninguém sonha em calar sua boca para sempre, mesmo que os mais boquirrotos nos dessem o exemplo. Amamos nossas besteiras proferidas por causa do nosso narcisismo, amamos fazer que os outros preencham nossas lacunas por causa do nosso sadismo e amamos saber que somos ignorantes, por causa do nosso masoquismo.

Ah, ser humano... Acho que não temos emenda não. Não posso, como fez o alemão London declarando-se norte-americano, deixar de ser Homo sapiens por falta de identificação com tua progênie? Estou perguntando à toa. Já sei a resposta.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

A TEORIA GERAL DO CONTEXTO

Estou agora sem meu Dicionário de filosofia do meu xará iconoclasta, o centenário Mario Bunge, em mãos. Lembro-me disso porque penso que ele bem que gostaria de opinar sobre o assunto que versa esta postagem mensal, valendo-se de sua posição sempre veementemente bem definida. Uma pergunta frequente em minhas antigas aulas de Semântica era: o que é um contexto? Essa palavra sempre me pareceu significar tudo e nada. Se eu enuncio algo, a expressão do meu enunciado não significa nada por si só, mas eu chamo de significado as coisas que evoco, ao mesmo tempo que eu, enunciador, julgo se aquilo está ou não está na cabeça de quem a ouve ou a lê. Se está, concluo que há alguma cumplicidade entre nós; se não está, julgo informar algo. A informação é o oposto da cumplicidade.

Acontece que para enunciar, preciso de palavras, que podem ter, cada uma, digamos, dez significados, todos claramente demarcados e com data de nascimento (como fazem muitos dicionários etimológicos) e às vezes de morte. Se assim é, como posso dizer que uma expressão completa associada a "contextos" têm a capacidade de evocar mais do que esses dez significados? Dizer que uma palavra tem um número fixo de significados seria o mesmo que dizer que não há números entre 1 e 2 e que o 0,5 é inconcebível. Contudo, em alguns momentos podemos acreditar que essa afirmação está certa: não há mesmo nenhum número entre 1 e 2. Quem lê essa afirmação peremptória, para ser meu cúmplice, precisa reconstruir o que se passa na minha cabeça, pois, para ter a certeza do que afirmo, concentro-me nos números naturais e não nos números racionais. Então, em minha defesa, postulo a tese de que essa sentença só pode ser verdadeira, pois se a verdade da afirmação depende de um contexto, nesse caso, o contexto será igual àquilo que está na minha cabeça de enunciador, ou seja, estou falando de números naturais e não de racionais. Se não quiser ser meu cúmplice, achar-me-á (menos racionalmente que eu) um idiota que usa mesóclises. Cumplicidade é questão de vontade.

A verdade do que se diz, por conseguinte, seria a soma do que afirmo com a delimitação que teimosamente estipulei na minha cachola, baseado-me no que foi dito ou vivido previamente por mim. Nesse caso, como não disse nada sobre números naturais antes de afirmar que não há números entre 1 e 2, o "contexto" seria quase uma espécie de delimitação obrigatória do meu ouvinte ou leitor. Aquela palavra inicial tinha dez significados? Pois bem, num determinado contexto teria cinco, seis ou - como sonham os cientistas - um só.



Acontece que as palavras estão mais para números racionais do que para naturais ou inteiros. Há significados muito próximos, de modo que eu não tenho certeza se, quando uma pessoa afirma que uma andorinha é uma ave, ela disse tudo, a ponto de eu afirmar que a frase seja verdadeira. Precisaríamos ouvir mais essa pessoa, até concluirmos que a frase é falsa, pois o que ela chama de "ave" inclui não só os pardais e as águias, mas também os morcegos. Se um conjunto como "aves" inclui morcegos e se uma pessoa diz que uma andorinha é uma ave, não posso concordar com ela, pois pela minha autoformação de biólogo, sei que morcegos não são aves: a ave, sobre a qual se baseia a afirmação dela, é diferente da minha ave, que reputo mais correta. Dito de outro modo, segundo meu juízo, a mesmíssima frase "uma andorinha é uma ave", proferida por mim, é verdadeira, mas na boca dessa pessoa, que acha que morcegos são aves, é falsa, simplesmente porque o meu conjunto é diferente do dela e porque eu não abro mão da minha definição de ave, por meio da qual concluí que a outra definição está errada. Por mais que eu veja semelhanças entre uma ave e um morcego, é-me indiscutível que a frase dessa pessoa seja falsa.

O que aconteceu com as orações, que passaram a ser ora verdadeiras, ora falsas, como um gato de Schrödinger? Se as cabeças humanas fazem conjuntos tão diversos com as mesmas palavras, haverá alguma frase que possa ser verdadeira (ou falsa) sempre para todos e ao mesmo tempo não ser um enunciado científico? Pior que isso, se não tenho condições e paciência de vivenciar o suficiente para extrair de todas as pessoas o conjunto total de suas frases expressas, as quais me façam concluir que nossos conjuntos são distintos, como dizer que eu as entendo? Levando-me pelo radicalismo filosófico, aparentemente parece sensato dizer, à la Eric Buyssens, que a comunicação parece ser algo impossível, uma fantasia como qualquer outra. Relativismo à vista! Perigo!!!

Os que têm alergia a relativismo se salvam desse mar bravio também com a boia do contexto. Aquela palavra a que me referi no início teria sim, digamos, dez significados, além de muitos sentidos (alguns diriam "inúmeros"; outros, mais exagerados, "infinitos"), que vêm osmoticamente, graças aos que se apoiam na muleta do contexto, das palavras circundantes, penetrando-lhe a membrana citoplasmática, caso contrário, dizem, não haveria poeticidade numa letra de música, num adágio, numa ode ou numa engórvia.

O que é uma engórvia? Sei lá, deve ser uma palavra que participa de algum gênero artístico ou literário, porque o escritor da afirmação do último parágrafo (no caso, eu) a pôs junto com uma letra de música, um adágio, uma ode e, portanto, concluo, deve ser algo parecido. Está provado: o contexto é algo real e, além disso, é um sematurgo: criaria significados até para palavras que não existem. Atenção, "não existem" não porque não estão dicionarizadas (a mais besta definição de "existência das palavras"), mas porque ninguém tinha incluído uma "engórvia" no Google antes de mim (mas "sematurgo", sim, e, curiosamente, com o mesmo sentido).

Pois bem, se mesmo palavras que não têm história e tradição nenhuma podem adquirir um sentido contextual, que dizer de palavras que já existem? No caso da "engórvia", seu sentido é bem pouco claro (nem os platônicos deuses da etimologia ajudariam a decifrá-la doutro modo): sem dúvida, quem a leu no final do antepenúltimo parágrafo entendeu-a como espécie do mesmo gênero aristotélico a que pertencem "letra de música", "adágio" e "ode". Se o leitor é linguista e não filósofo, entenderá que "engórvia" tem - pelo contexto - o mesmo hiperônimo que a reúne às palavras anteriores e, ergo, faz parte de um paradigma semântico proposto simultaneamente com a enunciação. Este sentido de contexto como algo que se depreende pelos vizinhos parece muito diferente do primeiro sentido, em que contexto estava oculto nas penumbras cerebrais do enunciador.

Conclusão parcial: a própria palavra "contexto" tem vários significados. E eles são depreensíveis pelo ... contexto (desculpa, não me contive agora). Ok, vamos brincar de atribuir mais sentidos a ela? Para isso preciso mudar de assunto.

Ontem os funcionários do zoológico estavam de cabelo em pé. A jaula do contexto estava aberta. Por toda parte procuraram-no: próximo às árvores e nas imediações de um rio. Até ontem havia pegadas profundas nas imediações lamacentas, mas elas desapareceram às margens do rio. Onde está agora o contexto?


(mesmo o ultracético leitor perceberá que um terceiro sentido está emergindo... ou todos os sentidos estão submergindo?)

Enquanto isso, na Câmara Municipal, um contexto subiu ao palanque e vociferou contra a lei do ano passado que impede que contextos sejam abertos nas imediações das escolas, uma vez que isso atrapalharia os contextos que estão estudando. E, de fato, às vésperas do ENEM, os professores relembraram que a questão "o que é um contexto?" foi exigida ano passado na prova de contexto e quanto mais contextos se aprenderem sobre o tema, menos contextos teriam. O motivo disso é claro: sem contexto não dá para entender o que é um contexto.

Ler-se-á a frase acima, dando vários sentidos à palavra "contexto", inclusive aquele travestido com o heterônimo pessoano de ele mesmo (justamente o que estamos tentando decifrar juntos, se o hipotético leitor já não parou de ler e, portanto, já não é um leitor). Esses sentidos, dirá, são do primeiro tipo, i.e. cacholísticos, como o caso supracitado de "ave", mas têm um ressaibo de "engórvia" também, convenhamos. Estou prestes a declarar que acreditar em contextos antecede sua definição. A fé no contexto parece vir antes da sua racionalização definitória.

Digo mais: afirmando que o contexto de uma palavra é o sentido da enunciação para o enunciador, admito que esse mesmo sentido beira o intangível. Por outro lado, se eu digo que o contexto de uma palavra é o sentido da enunciação para mim, intérprete, independentemente do que quis dizer o enunciador, a coisa piora muito de figura, pois verei contextos até onde o bom senso diria não existir.

Digamos que, por alguma razão qualquer transfreudiana ou metajunguiana, a palavra "melão" me faça explodir de fúria e cometer as mais atrozes barbaridades verbais ao ser ouvida. Uma frase como "eu gosto de melão" seria, ato contínuo, uma ofensa imperdoável para este infeliz que não suporta que as sílabas que denominam a odiosa cucurbitácea atinjam sua membrana timpânica. Decerto, esse louco do melão em que ora me transfigurei à guisa de exemplo é só outro radicalismo filosófico. Contudo, quantas vezes não nos ofendemos ou ficamos alegres ou excitados ou deprimidos por palavras ouvidas que só têm aquele sentido para nós por causa de nossa biografia? O contexto da reação inusitada aí é distinto do que vínhamos falando até agora. Não é algo oculto que poderia ser conhecimento comum, se compartilhado claramente, nem é algo que se depreende pela expressão circunjacente, mas algo que causa muito mais ruído comunicativo, porque está circunscrito à minha vida e aos meus valores, que eu mesmo às vezes tenho dificuldade de discernir, verbalizar ou até de refletir, ainda que em meditação.

No caso do primeiro parágrafo lúdico acima, aquilo que fugiu do zoológico obviamente significava "girafa" (ué, o leitor pensou que fosse o quê? Um crocodilo? Por quê?!). Está provado, sem mais delongas, que toda palavra vem junto com um convite à sua decifração. No caso do melão-bomba, contudo, o contexto é algo profundamente inacessível, porque ninguém o decifraria além de mim (se eu conseguisse de fato decifrá-la). A minha epiderme nunca foi usada por outra pessoa a ponto de ser compreensível para o outro evocar os pesadelos gerados pelo pavoroso dissílabo. Nos primeiros casos, "contexto" era simplesmente a chave de uma charada ou de uma adivinha; agora, "contexto" se transformou num túnel escuro que conduz a um enigma indecifrável.



Pois bem, a palavra "contexto", pelo jeito, é usada como foice quando preciso cortar trigo e como pá, se meu objetivo é colher batatas. Que há em comum entre algo que eu tenho de quebrar a cabeça para decifrar e algo que está para além da minha capacidade cognitiva? Aparentemente nada. Portanto, um contexto não é nada? Que palavra complicada, de cuja sinuca de bico sequer consigo fugir!

O texto deveria terminar aqui. Eu tenho porém  um amigo simpático careca que às vezes me catequiza, dançando rumba, com a ideia de que o contexto se distingue sim, de todas as outras abstrações humanas mais comezinhas, pois seu sentido está ancorado em sua essência relevante culturalmente. Isso me faz pensar de fato. Se o mundo é criado a partir da linguagem, também o são não só a semântica, mas também as mais profundas e obscuras obsessões morfológicas. Quando leio textos expressos em línguas sem gênero gramatical, isso fica estupidamente claro: o doctor personagem de um romance que eu, por alguma razão, imaginava ser um homenzarrão bigodudo está operando um paciente, em longa descrição de três parágrafos, mas, de repente, eis que vejo-o travestir-se em Ms.  Lucy Johnson. Peraí: será que a mesma informação do romance não se decifraria de outra forma para outras pessoas? Eu, porém, juro que não pensei num ser assexuado até o aparecimento do nome próprio feminino. Não era um doutor, mas uma doutora após três parágrafos. Também depois, surpreendo-me de novo: o patient não era um paciente, mas uma paciente, após dois capítulos. Eu assumo que me equivoquei? Não. Melhor acreditar que não fiz associação nenhuma anterior e que essa informação não era importante ou que a interpretei de uma forma assexuadamente transcendente, somando significados à medida que as ondas das palavras batiam na minha praia mental, tal como o ribossomo desliza ao sintetizar proteínas por cima de um RNAm. Sem dúvida, é menos humilhante para um racionalista pensar assim do que admitir que se esqueceu do caminho  tortuoso e entrecruzado por fachos de laser que teve de desviar para evitar ser queimado.

Se eu digo, uma pessoa entrou na sala: era uma criança dando pulos e desembesto falando dessa criança sem dar pistas se é um menino ou menina, será que alguém, até que o sexo dela lhe seja revelado por mim, conseguiria suspender o seu juízo e durante dezenas de frases descritas no meu tagarelar, se poria numa posição de abstração tal, que suspenderia até mesmo um dado cultural tão relevante quanto o sexo até que eu lho revelasse explicitamente? Oscilaria, enquanto não se conclui, entre as duas possibilidades ou será que se convenceria de uma construção  qualquer provisória (ou homem ou mulher), enquanto não a argamassa da certeza não lhe dá uma pista indireta, baseada em pequenos indícios que se confirmarão depois? Ou então refaria abruptamente sua construção mental, como aconteceu com a Lucy acima, apagando com a borracha da sua memória recente as imagens que havia feito antes, a ponto de convencer-se que, desde o início, nunca teve dúvidas do que eu pensava? O que ocorre é rápido demais para que eu prove que a última hipótese é a mais correta, mas estou convencido de que o refazimento ocorre, não só quanto ao sexo, como apontam os dois exemplos acima, mas também para muitos outros detalhes. Aposto que essa pessoa havia imaginado, entre suas oscilações de inúmeras experiências com crianças, a sua sobrinha loirinha vestindo amarelo, tal como a viu no último natal, isto é, segurando um cachorro encardido de pelúcia, mas nunca o menino chinês com roupa vermelha de óculos, com a boca suja de macarrão ao qual eu de fato me referia.


Pois bem, há tempos eu acredito que "entender totalmente" significa ter dúvidas muito bem disfarçadas. A referência não está ligada às palavras como cabos que amarram a lona de um circo. O contexto não deixa a coisa ereta e firme. Nem um pouco. Aquilo que chamamos de contexto é tão flácido quanto qualquer daquelas muitas cordas meio soltas, que deixam pedaços mal amarrados da lona balangando com o vento, num circo mais real e empoeirado que ideal. O que chamamos de "contexto", na verdade, é uma certeza que temos sobre algumas apostas de referência. Apostas, como sabemos, viciam, entorpecem e nos fazem afirmar ebriamente, com mais certeza do que devíamos: não há quem acerte sempre o número da roleta, convenhamos. Se houver, tiro-lhe meu chapéu e monto-lhe um altar para venerá-lo diariamente.

Ok, uma última chance ao contexto: digamos que ele seja uma associação, seja lá o que isso signifique também. Não seria bem uma charada em que basta trocar uma palavra ou então um enigma que requer uma exegese intangível, nem mesmo algo que se torna claro só porque aquilo a que me refiro seja culturalmente relevante: contexto seria (além de tudo isso) algo que não tem o mesmo gênero (tradução bilíngue: não tem o mesmo hiperônimo, não está no paradigma das coisas que possam ser substituídas), mas emerge do vão das palavras, como uma barata que não quer ser barata, que está na sinapse de dois neurônios, transversalmente, uma espécie de ectoplasma de sentido que vem de um além, algo que se torna sentido por vias imprevisivelmente tortas, assim como o saco de plástico da minha padaria que, por correntes de convecção e/ou por correntes marítimas, alternadamente, foi levado para o meio do Oceano Pacífico. Para ser mais claro, um contexto seria algo, como reza sua etimologia, "tecido junto com" a coisa (con-textus, particípio de con-texere), algo que o acaso fortuito da semelhança entre uma nesga de um significado e um tiquinho de expressão fonética já me fazem discernir com clareza, algo como o acaso de quando caio na minha estação preferida de rádio singrando por chiados de meu dial. O contexto seria o próprio sematurgo, ou um avantesma sematóforo, a luz de um sentido que me conduz a uma referência límpida ou torpe, a qual arrebata minh'alma de deleite, ou de fúria, ou de contentamento; algo como epifania ou simplesmente algo que me faz explodir de risos, por finalmente entender a piada. Pois bem, pensemos nesse contexto mais translúcido do que os anteriores. O que eu estou dizendo é que os sentidos trazidos por esse novo conceito de "contexto", naturalmente tecidos entre as palavras, são números reais ou complexos e não só números racionais. A metáfora parece boa, sobretudo para aquele que aposta no inefável e que acredita no belzebu da indefinibilidade das coisas.

Para aqueles que torceram o nariz para o parágrafo anterior, uma digressão: convenhamos, quem disse que ao definir uma coisa, reduzindo seu contexto a unzinho só, como fazem os cientistas, estarei chegando perto de entender uma afirmação? Aparentemente, a palavra contexto não se traduz em todas as línguas e posso até imaginar que houve um tempo em que nem existisse na nossa língua. Como então se viravam os pajés da enrolação sem ter consciência do que é um contexto?  Por pura arte retórica? Empregando sentidos contextuais pura e simplesmente? Ora, se toda palavra ou expressão ou frase está ligada normalmente a muitos sentidos (ou pelo menos a um só significado), que fazer quando não está ligado a nenhum? Para um biólogo a frase "anfioxos são oligolécitos, pois a clivagem de gástrulas resulta em micrômeros e macrômeros" é claríssima, mas para quem não é biólogo, isso é pura sopa de engórvia. Quem não entende essa frase, mas não a esnoba, pelo contrário, admite sofridamente que deve haver um sentido nela, acreditará que lhe sobra ignorância do tema ou falta-lhe dicionário em casa para saber sobre "o que é". Parece que o intelectualismo do século XVII fez de fato as pessoas crerem que quando nenhum homem tinha dicionários, todas as palavras eram claras (e todos sabemos que a culpa de existirem românticos é dos racionalistas e vice versa). Nesse éden de clareza e transparência não era preciso nunca decifrar contextos? Ou será que, falando agora qual a serpente dirigindo-se a Eva, nos deveríamos perguntar se não houve sempre um fumanchu que propositalmente lhes afastava o sentido já consagrado pela rotina por razões nada honrosas? Da mesma forma que é bom ouvir um consolo ou uma distração quando me apagam a fogueira e eu, medroso, fico no meio da selva apenas ouvindo grunhidos sem saber de qual grunhidor é, ou então se o grunhidor, que eu gostaria que não fosse aquele que temo, está perto ou não, a incerteza vem o tempo todo à superfície de nossa mente: se admitimos que não ouvimos tudo (tudo, tudo) com clareza, tampouco entendemos tudo (tudo, tudo) com precisão, conviver com o incognoscível parece a situação natural e não um problema. Para o que é natural não há teoria alguma mais simples que a própria natureza. Quem me dirá qual é o exato momento em que a engórvia deixa de ser gênero literário para ser um legume? Quem afirmará, de cara deslavada, olhando nos meus olhos que conhece e distingue claramente todos os hipônimos de um paradigma?

Leitor, pela primeira vez obedeço ao meu título, pois, afinal de contas, não sou um Montaigne. A teoria geral do contexto reza o seguinte: palavras têm sentidos, às vezes vários. Esterilizados, pelo indivíduo ou pela sociedade, tornam-se significados e, a partir desse ponto em que estamos revirando displicentemente o doce no fogão, enxergaremos contextos como o cozinheiro enxerga as crostas da goiabada. Não podemos viver sem os sentidos, que são imediatos e fortuitos, de uma instabilidade mais quântica que a própria física quântica, mas só acredita em contexto quem acha que há diferença essencial entre sentido e significado. Eu, contudo, acho que são a mesma coisa. O fato de um sentido ter pouca tradição ou não ter tradição alguma depende da minha ignorância; o fato de nunca termos ouvido antes esta conotação e ser estranha ou bonita aquela expressão por ser inusitada e poética não serve para apoiar uma suposta diferença entre o significado congelado e o sentido pronto para ser consumido. Se o peixe cru é essencialmente a mesma referência do peixe cozido, não há tempero que eu separe no paladar que justifique a denominação fantasmagórica de que ali há um "contexto" responsável pela metamorfose. Obviamente o peixe cru me dá uma experiência sensorial distinta do peixe cozido e portanto tem outra referência, mas se não é da infinitude dos referentes que estamos falando, por que é que estamos conversando mesmo? 

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

METÁFORAS NÃO SALVAM O MUNDO

É estranha, sempre pensei, aquela pessoa que diz amar as borboletas e, ao mesmo tempo, odeia as lagartas. Meu vizinho decerto as louva como criaturas de Deus, mas se empenha diariamente em verificar suas couves para espremer os ovos dos pobres insetos. Segundo ele, a "borboleta" os bota assim que vira as costas. Refere-se assim a elas, no singular, como se fosse uma entidade, um caipora, um saci. A "borboleta" apronta com ele, lançando uma infinidade absurda de ovos, instrumento inesgotável de sua daninha zombetice. Obviamente esse senhor idoso não entenderá se lhe explicarem que se trata dos ovos possíveis da vida inteira de um indivíduo, que, como ele, pretende manter seus genes vivos. Os ovos da "borboleta", tentariam explicar-lhe, não são o produto de uma máquina botadora, mas parte do ciclo da vida. Matar bebês não é algo louvável, concordaria: oras,  não é infanticídio, do ponto de vista do lepidóptero, a espremeção sistemática dos ovos de pierídeos comedores de couve? Consolo-me pensando que se fosse só isso, haveria alguma tolerância no mundo no que diz respeito à inamistosa relação entre homens e insetos. Se fossem só enxadas que derrubam o mato, talvez a convivência com os insetos não seria algo trágico. É verdade que, desde que o homem criou o ancinho e abandonou a caça e a coleta, para criar seus odiosos porcos, suas inglórias vacas, seus infames cães e seus gatos demoníacos, a fauna e a flora selvagens declinaram,  mas havia um limite entre guerra e trégua, mas precisou que alguém inventasse a luz elétrica, o motor dos tratores, os pesticidas e a motosserra para que os nossos companheiros de simetria bilateral corressem risco real de extinção, face ao ingente macaco doido, o hominídeo moderno.

Não falarei da tragédia dos pierídeos assassinados por serem comedores de couve, mas da minha infância. Moleque, andava no terreno baldio do lado de casa, à procura de bizarrias dos escaravelhos, das pernas longas dos opiliões, de manés-magros, de crisopas e de grilos. De chinelo, sem medo de cobras, deparava-me todo dia - e esse dia eu supunha eterno - com uma borboleta laranja, em meio a tantas outras.




Parte do ciclo dessa borboleta, para mim, portentoso na medida da minha insignificância de moleque descalço do interior de São Paulo, já me era conhecido por experiência própria. A lagarta amarelo-esverdeada, com projeções que pareciam chifres na cabeça e na parte posterior, listrada como um tigre, devorava uma planta, que eu conhecia como "leiteira", cuja seiva branca, que lhe fazia jus ao nome, tinha a fama de ser uma substância venenosa e poderosa, a ponto de ser usada pelos mandingueiros, meu avô inclusive, com o fito de secar verrugas. A lagarta, ignorando a toxicicidade da planta, se tornava gorducha de tanto comer aquelas folhas, as quais visitavam, volta e meia via, também uns besourinhos de um verde metálico, que eu conhecia por vaquinhas  (crisomelídeos, hoje eu sei defini-los melhor). Por fim, a lagarta, satisfeita de tanto veneno gostoso, se tornava numa crisálida oblonga, que mudava de cor: de um verde-leiteira até o alaranjado típico de suas asas. Deparei-me com mais de um tipo dessa mesma borboleta, não sei se outras espécies mimetizantes, não sei se espécies do mesmo gênero, mas a que me chamava à atenção era mesmo a grandona, aquela mansa, a ponto de eu conseguir pegá-la nas mãos enquanto estava hipnotizada pelas flores da leiteira. Seu voo era um planar exuberante, inconfundível. Havia outras borboletas alaranjadas, com as quais desde cedo jamais me confundi, cujos nomes hoje eu sei: Dryas julia, Agraulis vanillae, Dione juno, Euptoieta hegesia, mas nenhuma delas tinha a graça da borboleta da leiteira, que mais tarde soube, pela televisão, chamar-se "monarca" e que foi batizada pela entomologia de Danaus flexippus.

Diferentemente dos pierídeos que se empanturram com a couve do meu conhecido, a monarca não era uma "praga", como tão facilmente os medrosos humanos se referem a tudo que teme derrubar a sua posição de usurpador do trono da natureza. Meu vizinho tem medo de teiú porque dá, segundo ele, uma rabada que causaria inveja em tiranossauros, por isso, alveja-os com sua espingarda. Meu vizinho viu uma irara e deduziu que comia suas galinhas e, por isso, há uma irara a menos na terra. Meu vizinho tem medo que os joás e seus espinhos dominem o planeta dele, que consiste num terreninho bem pequeno, mas parecido com o do seu outro vizinho, igualmente medroso, por isso ambos põem venenos nas saúvas e arrancam as dormideiras e os cipós, porque, senão, eles o afogarão enquanto dorme e esganarão a sua progênie. Para meus vizinhos, tudo que não se come merece uma enxadada, um tiro, veneno.

Minha monarca não era uma praga, sob esse ponto de vista tão utilitário. As filhas apenas comiam uma planta venenosa enquanto a mãe dançava para me alegrar. Só alguém muito tosco poderia chamá-la de "borboleta", esse nome insensível que coloca cento e oitenta mil espécies diferentes sob mesmo rótulo. Cada espécie, obviamente, tem sua história, mas meu espaço é pequeno para falar do um milhão e meio de espécies de animais que existem. Dedico-me a um só, a minha monarca.


Estranho o ser humano! Muitos se ofendem quando são  chamados de primatas e colocados junto com os gorilas, orangotangos, gibões e saguis, porque afinal de contas, dizem (na verdade, um homem disse) que somos a imagem de Deus, que não é um primata, mas tanto faz para o mesmo fulano chamar de "borboleta" a Danaus flexippus, que come leiteira, e a Methona themisto, que comia o manacá da minha avó. Pior, nem veem diferença, e chamam tudo de praga. "Leiteira" também é um nome muito genérico para a única planta que come a lagarta da monarca. Aquela planta de troncos roliços e folhas enceradas em forma de lança, com flores amarelas, laranjas e avermelhadas em buquê, que solta painas no formato de aranhas voadoras, tem nome também: Asclepias curassavica, que o noticiário recentemente resolveu chamar de "asclépia", embora haja espécies vinculadas ao mesmo gênero com o aspecto muito diferente. Eu continuarei chamando a minha planta de "leiteira" porque é a única que eu conheci com esse nome até deparar-me com outras plantas que outras pessoas chamavam, por falta de imaginação, com essa mesma denominação. A história é minha e até parece que eu vou chamar a única leiteira da minha infância de asclépia. Eu não vi a fauna e a flora que meus pais viram; meus pais não viram a mata virgem do interior paulista que meus avós desbastaram; meus avós não viram a mata que os índios da região viram. Meus filhos também não verão nada do que vou contar.

Eu cresci e, nos terrenos baldios por onde andava, via leiteiras. E nas leiteiras sempre uma lagarta de monarca. E não muito distante da leiteira e da lagarta voejavam as próprias monarcas, com seu dimorfismo sexual levemente demarcado. Gostava das fêmeas, de um marrom alaranjado menos brilhante que o laranja amarronzado dos machos, com asas mais avantajadas, com um voo quase erótico ao redor da leiteira. Espetáculo único e, ao crescer e criar barba, já adulto e fora da minha cidade natal, cansado das minhas azáfamas, não lhe negava um sorriso quando, sempre de surpresa, a minha monarca aparecia, dava volteios e piruetas no ar. Bom dia, minha amiga, só você para salvar meu dia.

Um dia, quase por acaso, eu percebi que o calorão tinha apagado os colêmbolos de debaixo dos tocos de árvore, que sempre gostei de revirar à cata de meus amigos opiliões, tão queridos quanto fedidos. Tudo que vivia na amada zona úmida das pedras que jaziam no mato estava sumindo, como uma fotografia de infância que amarela e fica com contornos indistintos. Pouco depois, percebi muitas leiteiras sem lagarta e, em seguida, as próprias leiteiras foram sumindo e, com elas, minhas monarcas. No cemitério do lado de casa, teimava em nascer um pé solitário de leiteira, que transplantei egoistamente para um vaso e deixei na sacada do meu prédio, tentando reproduzir o milagre que pouco tempo antes eu havia feito com um maracujá, cujos frutos não comi, pois doei a planta a outra amiga, a já mencionada Agraulis vanillae, que meu filho reconhece e respeita. Foi quando li estarrecido, não faz muito tempo, uma reportagem da National Geographic. A leiteira, confundida com o calorão dos últimos anos, que secara meus proturos, meus diplópodes e meus tatuzinhos, começou a produzir mais veneno, muito mais do que a minha monarca poderia tolerar. As monarcas, que às pencas se congelavam no caminho do México para cá, provenientes do distantíssimo Canadá, só para me alegrar, estavam morrendo, sumindo e nada podia ser feito. Mas toda leiteira ficou hipervenenosa? Não te reconheço mais, querida planta, quase passei a chamá-la de asclépia, de ódio.


O calor, proveniente do nefando aquecimento global ou não, tinha endoidado a leiteira e ela, qual uma Medeia, matou as suas filhas monarcas. Não era justo isso. Percebi que intuitivamente eu já havia feito como sugere o site da National Geographic: "Plante asclépias que sejam nativas da sua região para que as monarcas possam botar ovos e para que as lagartas de monarca possam se alimentar. Apenas um ou dois vasos já ajudam, de acordo com o Monarch Joint Venture, um grupo de organizações sem fins lucrativos, agências governamentais, empresas e instituições acadêmicas".

Eis que, ciente da hecatombe, achei um pé de leiteira outro dia em São Paulo. Visitei-a até que suas vagens pontudas como lança se abrissem e soltassem a alva paina voadora. Enchi um, dois, três potes com as sementes. Vindo ao interior, não segui à risca o preceito de que as leiteiras deviam ser da região: enterrei-as perto das orelhas-de-urso, que tanto lembram minha mãe, e dos manacás e ipezinhos de jardim, que fazem lembrar-me de minha avó. Rezaria, se ainda soubesse como fazê-lo. O calor torrou o solo, nasceu mato, nada. Cheguei à conclusão que a leiteira era difícil de nascer se não quisesse, tal qual as flores de São João que ainda proliferam nos pastos mas não nascem de jeito nenhum em meu jardim, assim como tudo que é do cerrado. Resignei-me. Não seria dessa vez que eu teria uma leiteira só minha. Isso foi no final de setembro, começo de outubro. 

Em dezembro era época de podar a odiosa grama que engole as plantas queridas: maldita gramínea, só mesmo de tua progênie calculista teria vindo o trigo que, na argumentação harariana, domesticaria o homem. Trigo, parente dessa grama que invade tudo, avô da propriedade e das cidades, pensei injustamente, quase como meu vizinho esmagador de ovos de pierídeos. Mais eis que vejo despontarem por entre a grama umas folhas diferentes. Era ela: a leiteira brotou e meu coração bateu  mais forte. Entusiasmadamente, fiz uma verdadeira proteção, como se fosse uma hortênsia ou uma calêndula, para que essa erva daninha prosperasse e viajei. Em janeiro, abro o portão e vejo as leiteiras floridas. Se fosse só isso, seria apenas alegria, mas era mais, o que me fez chegar ao júbilo: as flores da leiteira estavam ali no meu jardim, em penca, os frutos rachados já lançavam painas e - mais que isso! - as folhas estavam comidas e se estavam comidas, só poderiam estar por aquele único ser que come leiteiras, deduzi. Olhei melhor e vi, ali, amarela e preta, a minha lagarta-tigre, filha da monarca,comendo furiosamente as folhas. E outra, e outra. Umas quatro ou cinco. Fotos, fotos, fotos. O coração latejava. A minha monarca, vinda lá da América do Norte, passando por apuros indescritíveis, encontrou a única leiteira em quilômetros quadrados de puro canavial, de sem-gracice de pastos e hortas, para deparar-se, como se tivesse um miraculoso radar, com a minha leiteira. Obviamente, esses insetos amantíssimos devem ter algum detector de carinho. Essa é a maior prova de todas. Para completar minha alegria, anteontem, ontem, hoje, uma monarca sobrevoa diariamente a minha leiteira e bota novos ovos nela. Há décadas não sentia essa intimidade tão de perto. Obrigado pelo retorno tão carinhoso das brumas da minha infância, querido lepidóptero!

As lagartas comeram, comeram e amalucadamente, fartas e arrotando as folhas de leiteira, sairam marchando para todos os lados. Novo desespero. Para onde vão? Uma delas foi picada por formigas, mas consegui salvá-la, acho. Outra não teve a mesma sorte, pois a encontrei pela metade, sendo devorada pelos mesmos himenópteros, o que me fez sangrar o coração. Outra se pendurou na cadeira da sala e encruou-se. Outra chegou a virar crisálida e está dependurada na porta, ainda com uma cor muito esquisita. A mais gulosa abandonou seu repasto hoje de manhã e estava subindo um muro de mais de quatro metros. Não sabia o que fazer. A natureza segue seu curso, diz o pensamento razoável, mas eu queria ajudar e muros de quatro metros, com seu concreto abjeto, não fazem parte da natureza. Ora, tendo passado as agruras do Canadá até o interior de São Paulo, não é possível que a lagarta não saiba se virar, quis pensar. Mas também é verdade que aquela é a única e mais viçosa da meia-dúzia de filhotes da minha única leiteira. Não, tive de intervir. Retirei-a de lá e pu-la em lugar com um pouco mais de verde. Acompanhei-a mais um pouco e ela inventou de subir em um coqueiro, onde há umas formigonas terríveis. Não. Mil perdões aos himenópteros sociais: há muito bicho para comerem, nada de comida importada hoje! Retirei-a de lá novamente. Por fim, acabei deixando-a num pé de buganvílea. Queria ter visto todo o ciclo, mas o bichinho estava impaciente e não queria estressá-la mais. Pena não ter previsto essa migração toda. Não sei como é esse momentoso preparativo para a metamorfose: resignei-me. Deixei-a lá, confiante que os outros ovos gerarão outras saudáveis lagartas e que a monarca com a exuberância que conheço voltará a tomar conta da situação.



Olho agora para fora. Há minutos estava lá a minha monarca (será a última que verei?). Agora dança lá por sobre a leiteira uma Battus polydamas, que é bonita também e igualmente lembra minha infância, tal como a Heliconius erato,  razão por ter adquirido esta quinta (além dos opiliões, claro), mas há algo no amor pela monarca que a Battus polydamas não substitui. A monarca me enche de esperança, algo raro em mim. Queria que não houvesse metáfora alguma no meu desejo que ora expresso: que o meu leitor também tivesse um vasinho de leiteira e que deixasse as lagartas que lá surgissem devorá-la à vontade.