O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

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Sou um saci sumério de Botucatu.

terça-feira, 30 de julho de 2019

A MODA AGORA É FALAR TUDO

Leitor que desmaia quando descobre que não sabia o que todos estão comentando desde o meio dia de hoje, eis agora uma chance única de atualizar-se, de ajoelhar-se perante o novo ídolo, a informação, e sair por aí humilhando quem não sabe de nada. Acontece que, há muito, a informação não é nada mais que o óbvio. O óbvio, portanto, é o que vem movendo as cizânias e as alegrias do dia a dia. Então que fazer? Falaremos o óbvio daqui para a frente? Há algo mais para descobrir, se uma descoberta nada mais é que aquilo até há pouco encoberto e agora nos aparece epifanicamente? Mas se algo descoberto não é óbvio, qual o sentido de descobrir algo? Coberto ou encoberto, o óbvio não tarda a emergir, pondo seu longo pescoço para fora, para nos encarar e dizer: "olha para mim, não sou um déjà-vu? Não sou aquilo que sempre esperaste ver? Não sou eu que estou ao teu lado, dia após dia, noite após noite?". O óbvio encoberto, descoberto sem o encanto da ciência, deixou sua cripta para escancarar-se perante nossos olhos. O óbvio é a mais verdadeira das verdades que toda lógica sempre buscou. Nenhuma carta extra na manga: só pode ser aquilo que já se é. E o óbvio é obviamente aquilo que todos desejávamos, eu e tu, nós e vós, ele, ela, eles e elas. 

Mas o que é uma coisa óbvia? Por exemplo. O que lês, leitor, é uma postagem de um blog. E na postagem de um blog há palavras escritas. E palavras escritas são sequências de letras, que não se juntaram aleatoriamente, mas foram escritas por alguém. E esse alguém sou eu. E eu sou um homem, nascido em 1968 em Botucatu, e desde lá continuo sendo homem e botucatuense, apesar de não viver mais nessa cidade. Então eu sou algo e estou algo também. Mas nas minhas letras e no que escrevo não estava óbvio quem havia escrito, nem quem sou eu, nem o que penso sobre isso ou aquilo, nem para que time torço, nem se gosto de pequi: tudo isso são essas palavras que dizem. Se eu dissesse que eu sou uma adolescente nascida em Maragogipe, que mora atualmente em Maceió, eu também me construiria, mas estaria mentindo ou fingindo. E eu saberia que estou mentindo ou fingindo, a não ser que eu tivesse algum tipo de personalidade que me fizesse crer ser uma adolescente maragogipana de fato. Quando um romancista, um ator ou um cantor, apesar de masculino de nascença, se coloca num eu feminino, estaria mentindo? O que cultua o óbvio diria que sim. Mas outro dirá que "mentira" é obviamente uma palavra inadequada, porque uma mentira é muito diferente de uma encenação. E se alguém recebe um santo, estará necessariamente mentindo ou encenando? Não há espaço algum para acreditar que ele de fato se torna o santo, na subjetividade de seu ser? Que achas, meu leitor? Se te tenho em boa conta, acreditarás que o óbvio se torna cada vez mais difícil de se definir à medida que outros exemplos mais sutis te sejam apresentados. Se a fórmula que define o óbvio subentende a verdade e se a verdade está associada ao subjetivo, então é preciso definir a qual verdade, veritas, aletheia, emunah, estou me referindo. Ou seja, definir o óbvio não é tão óbvio assim.



Mas tudo é subjetivo? Eu posso achar que a terra é esférica; tu, que é plana; ele, que é dodecaédrica? É tudo questão daquilo que ponho na minha boca, sinceramente (dizendo a verdade verdadeira ou dizendo a "minha" verdade) ou insinceramente? Ou há algo em que me posso fiar e que não é subjetivo, como diz a ciência? Por exemplo, sinceramente declaro que hoje, dia em que escrevo estas linhas, é 30 de julho de 2019, e isso é verdade verdadeira, agora e amanhã ou daqui a três mil anos, quando algum arqueólogo digital decifrar minhas palavras nessa língua em que me expresso. Isso é uma verdade diferente da verdade da minha afirmação enlouquecida, mas da qual eu poderia estar plenamente convicto, de que hoje é dia 25 de dezembro de 2222, portanto, Natal. Por mais que eu ame o Polo Norte, as renas e os gnomos hollywoodianos que eu aprendi viverem com Papai e Mamãe Noel, não convenceria ninguém, apesar de não ter dúvida de que meu delírio seja verdadeiro. Essa verdade (percebes?) é de outra ordem da primeira afirmação. Posso dizer que nas duas eu tenho boa fé, mas a primeira verdade é comungada por todos, já a segunda só é verdade para mim. Essa segunda verdade é que eu chamaria de subjetiva. A primeira verdade seria intersubjetiva: na verdade nem todos concordariam com ela ou concordaria com ressalvas. Ambas as verdades, subjetiva ou intersubjetiva, dependem de com quem eu falo. Um judeu entenderia que há alguma verdade quando afirmo que hoje é 30 de julho de 2019, mas acredita que também hoje seja 27 de Tamuz de 5779. Haveria, portanto, duas verdades intersubjetivas que responderiam à pergunta de que dia seria hoje. Se eu começasse, contudo, este parágrafo dizendo que hoje é 27 de Tamuz de 5779, muitos não entenderiam e pensaria que eu estivesse tão louco quanto se eu afirmasse que hoje é 25 de dezembro de 2222. Um judeu normalmente conhece o chamado calendário civil, mas quem não é judeu não saberia nem sobre o que estou falando. Aliás, a coisa não para aí: um muçulmano diria que hoje é 27 de dhuu l-Qa´dah de 1440 e, para cristãos ortodoxos, o dia 30 ainda vai demorar treze dias, pois hoje seria ainda 17 de junho de 2019 no calendário juliano.

Apesar de tanta heterogeneidade cultural, sabemos que outras intersubjetividades não-culturais também existem. O que parece bizarro é que alguém diga que hoje não é 27 de Tamuz de 5779, nem 27 de dhuu l-Qa´dah de 1440, por aceitar unicamente a resposta de que hoje seja 30 de julho de 2019. Uma mente preparada para o óbvio tem de depor as armas de seu fanatismo e dizer: sim, a coisa mais óbvia do mundo é que hoje estamos no ano de 2019 e de 5779 e de 1440 ao mesmo tempo em contagens completamente diferentes e que todas elas são fruto de convenções. Se eu penso que apenas uma dessas datas está correta, desprezamos o outro como se fosse um sub-outro. E não existem sub-outros, a não ser na cabeça do fanático. 


A existência de sub-outros é fruto de uma aberração da antiga mente hierárquica. E hoje em dia, todos querem ter o direito de dizer em alta voz suas asneiras. "Faz o que tu queres, pois é tudo da lei", já dizia Raul Seixas. Então tomemos banho de chapéu, discutamos Carlo Gardel e outras coisas abnóxias. É o que está acontecendo? Por um lado, nunca seguimos tão à risca a Lei de Thelema, mas, por outro, acontece o óbvio, decorrência inconcussa dessa filosofia: se fizermos tudo o que quisermos, poderemos, por exemplo, querer destruir quem diz que hoje não é dia 30, poderemos querer impor somente a nossa única verdade e isso é exatamente a consequência aberrante de crermos em sub-outros. 

O jeito é convivermos com os outros, sem querermos impor o que é nossa verdade subjetiva, por mais asco que cause a verdade subjetiva daquele que quer nos destruir e impor a sua verdade subjetiva? Parece algo meio pateta: até um ruminante se protege de um felino voraz desenvolvendo uma velocidade que deixe o bichano comer poeira. Para não vermos ninguém como sub-outro e não sermos vistos como sub-outros, precisamos tolerar a violência alheia e dar um jeito de desenvolver pernas velozes para fugir? Duvido que alguém que faça isso não torça para haver outros menos patetas que concordem comigo e que pensem diferentemente de mim, a ponto de vencer nosso inimigo comum. Enquanto isso, qual meu conselho? Filosofa-se?

Até a mais séssil das plantas tem uma ajudinha evolutiva da seleção natural e desenvolve venenos nas suas folhas e como não há veneno eficaz para todo tipo de herbívoro, foca-se no inimigo mais antigo: por isso alguns venenos de plantas são eficazes apenas contra alguns insetos daninhos regionais, que co-nasceram com elas há muito, muito, muito tempo, diferentemente de quadrúpedes que vieram mais tarde e desenvolveram buchos eficazes para devorá-las. Os inimigos antigos foram driblados, mas os mais recentes foram otimizados, pois o herbívoro que come uma planta, defecará suas sementes de difícil digestão e contribuirá para a vitória da espécie supostamente desprivilegiada. Eis que uma única grama cortada com os dentes equivalerá a dez outras que nascerão na próxima estação.

Distanciei-me demais do óbvio. Voltemos a ele para uma última imagem. A coisa mais óbvia do mundo para mim sou eu. E como me definir? Eu tenho uma série infinita de atributos que se reúnem nessa palavrinha de duas letras, "eu": um sobrenome, uma vida, dois braços, dez dedos (ou vinte, dependendo da língua que me descreve), uma picada de abelha recente no braço esquerdo, algumas reações químicas nesse local da picada, estou vivo (seja lá o que isso significa), enxergando e não enxergando (dependendo de estar com ou sem óculos), percebendo e não percebendo as coisas (dependendo de estar acordado ou dormindo), raciocinando e não raciocinando (dependendo do nível de vigília em que estiver), tendo vontades e não tendo vontades (dependendo do grau da minha  euforia ou de minha depressão), tendo desejos e não tendo desejos, tendo planos e não tendo planos etc. Estou ora sentado, ora de pé, ora deitado, rarissimamente de ponta-cabeça (a não ser em algum brinquedo radical de parque de diversões que pouco frequentei), estou com fome ou não, estou com vontade de ir ao banheiro ou não, estou tomando banho ou já tomei. Essa lista é grande demais. O que eu sou não é fácil de dizer. Mais fácil dizer o que estou fazendo agora. O que seria? Agora estou terminando esta frase com a letra A, minto, terminarei com um ponto final, que ainda não teclei, mas ei-lo sem mais delongas:. Pronto! Mas... um momento! O ponto final não estava no agora, mas num futuro proximíssimo, que julguei irrelevante e te enrolei (ou me enrolei?) na frase acima em que tentava relatar o agora. Se futuros se mesclam com o agora e não há agora para mim sem a minha história, de modo que o que eu sou é isso que já fui (e não sou mais) pensando no que serei, o agora é uma ilusão que não se pega com as mãos de jeito nenhum? Embora "eu sou" esteja no presente do indicativo, não há nada que sirva de referência na realidade para esse tempo psicótico. Dir-me-ás: ô Heráclito da Cuesta, afinal de contas, isso que acabaste de falar é a mais óbvia das obviedades ou uma descoberta filosófica? Se é uma descoberta filosófica, é de primeira ou de quinta categoria? Eu é que te pergunto, leitor: se é de quinta, qual seria a quarta categoria? E qual seria a sexta? Estou começando a achar que a coisa mais difícil do mundo é falar o óbvio. Espero que tu também.


Mas vejo-te novamente apelando para "razão" e "bom senso", vomitando aquilo que supões obviedades! Deves entender de uma vez por todas: o óbvio não se confunde com o polígono do verdadeiro e, mesmo se confundisse, o verdadeiro, ainda que concordássemos ser uno, seria necessariamente heteróclito, a menos que te assumas, olhando nos meus olhos, que, sim, tu és o maior ditador intolerante que o planeta já viu ou que Hollywood já sonhou nos seus wildest dreams, tão intolerante que, decerto, depois de dizimar todos os que supões ser sub-outros, continues teu hecatombe com os teus outros gêmeos, e, por fim, após toda esta terra estar arrasada, ao te veres num espelho, acabes por decidir que o mais óbvio teria sido apenas isto: eras tu quem deveria ter perecido, mais ninguém.

domingo, 2 de junho de 2019

EM BUSCA DE ALGUMA SERENDIPIDADE

É possível abrir os olhos e não querer nada? Se o olhar teleológico do mundo está presente na mente rudimentar, a despeito de sua existência, é porque, no dia anterior ao nosso sono, fomos bem-sucedidos em algo. Mas é falso que o bom sucesso seja a regra, já nos disseram dias anteriores a esse. Ou seja, estamos em guerra contra um mundo desde o momento em que abrimos os olhos pela primeira vez e, em vez de líquido amniótico, vimos a luz. Não foi o insucesso que nos fez chorar, nem ele que nos traumatizou, mas sim a indiferença do mundo, que caminhou por cima de nós como um rolo compressor. Sair de baixo dele às pressas quotidianamente já é um sucesso. Assim, apegar-se à vida é fácil, mas melhor mesmo é apegar-se a uma vida boa. E nossos pequenos sucessos já não nos bastam desde que tínhamos quatro anos. Precisamos manter nossos grandes sucessos, para não termos uma sobrevida fugindo de rolos compressores ameaçadores. Por isso, quando acordamos, já queremos. Queremos manter nossos grandes sucessos e, nesses momentos, buscamos por mais pequenos sucessos imediatamente. Acontece que nem sempre os encontramos e fechamos os olhos no final desse novo dia em que nossa bateia não pegou nenhuma pepita, não frustrados, mas entediados. Em meio às buscas, apenas gozamos a sobrevida garantida pelos grandes sucessos anteriores e eis que, vez ou outra, um vento conduz uma flor cheirosa ao nosso rosto. Não buscávamos flor alguma nesse dia, mas a surpresa foi agradável; não é um grande sucesso, nem mesmo um pequeno, é apenas algo agradável que nem procurávamos, é apenas - interpretamos assim - uma mensagem da traiçoeira esperança de que o mundo não é tão ruim assim. A flor cheirosa que agradavelmente pousa no nosso rosto, conduzida pelos volteios do vento, sem que quiséssemos flor alguma, é a visão de Serendip. Não é apenas acaso, é um acaso que sem querer nos agrada, pois flores não evoluíram para ser admiradas por humanos, mas coevoluíram com abelhas polinizadoras e para elas não fará diferença alguma - e até um certo prejuízo - se as acolhermos em nossa casa e as pusermos risonhos num vaso para egoistamente nos alegrarmos. Lá ela murchará e lá será esquecida pelas abelhas e por nós mesmos e, logo irá para o lixo.

Cruelmente falando, leitor, não houve destino preocupado com nosso alegramento. Houve apenas vento e toda infernal soma vetorial que gera algo que para nós seja uma direção. A flor não tinha culpa de não ter o peso do Morro da Urca. Se o vento fosse mais forte e conduzisse uma placa arrancada, a qual estatelasse na nossa cara, não haveria serendipidade alguma, apesar de ser um acaso como o anterior. Não colocarias a placa num altar e te alegrarias com ela. O julgamento do acaso, se é bom ou se é mau, vem daquele que é atropelado pelo acaso e não do que nos atropela. Não há ser vivo ou não-vivo que não seja atropelado pelo acaso o tempo todo. 


Se há leis físicas, o acaso não deveria existir. E de fato, se não há teleologia no acaso e nem propriamente acaso algum, aparentemente tudo está em movimento, tudo pode chocar-se com tudo, basta ser material, basta ter massa, basta que trajetos se cruzem, trajetos claramente determinados, se houvesse o demônio de Laplace prevendo o momento seguinte. Com isso, conclui-se de fato, que nem livre arbítrios há? Chega de determinismos! Parece que o século XVIII já foi superado em algum momento da loucura do XIX. Mas onde?

Se não há a Grande Fórmula do Mundo, o vento, além de todos os vetores, que conduziram a flor, teria algo mais, diz a mente paranoica. Um sensato, contudo, diria que não: tudo seria exatamente igual se o vento passasse por uma outra planta na mesma posição, com uma flor de espécie diferente, mas com um cheiro não tão agradável, mas com mesmo peso e com as mesmas dimensões. Peso é importante para a física, cheiro não, nesse caso. Só há um problema: essa planta é hipotética e não aconteceu isso. A ciência quer prever o futuro sobre coisas que nunca existiram? O que houve foi aquela planta, com aquela flor, levada por aquele vento, em direção ao rosto daquela pessoa. Isso é o fato. O resto é teoria robusta, mas inodora. Uma flor idêntica à flor que voou não é algo que exista, mas é tão simplesmente a mesma flor de que falávamos até então. X=X só faz sentido no raciocínio, mas nenhum sentido no mundo. Se o cheiro depende de substâncias químicas compostas de átomos com pesos diferentes, a fórmula do mundo já não seria a mesma. Seria preciso que a hipotética flor de cheiro desagradável mas mesmo peso tivesse uma substância que não afetasse em nada a rota entre o despegamento do caule e a nossa fuça. Mas duas substâncias assim, tão diferentes e tão iguais, não existem. Então deixemos as coisas hipotéticas no seu rincão da lógica e vejamos o mundo, com os seus ventos e relâmpagos.

Seja como for, isso tudo nos conduziria a algo bem terrível: se tudo é acaso e nossa felicidade, motivada pela flor, malgrado os planos de sobrevivência da mesma flor, também foi um acaso, a serendipidade não vem de deuses que nos querem alegrar. Os deuses não pensam na alegria de ninguém, porque deuses sequer existem. A felicidade, para o demônio de Laplace, seria apenas o nome para uma, dentre muitas matrizes, embutidas numa transformada integral gigantesca.


Se tivéssemos morrido à noite, sem sentir nada, de uma morte súbita qualquer, porém tranquila, nem sequer teríamos aberto os olhos e nos preocupado com nossos pequenos e grandes sucessos, nem sequer teríamos gozado da felicidade serendípica e, mesmo assim, o acaso de termos morrido teria atuado. Basta isso e não conjecturas racionais para mostrar que há um acaso mais profundo por trás daquilo que chamamos "acaso".

Quando admitimos que tudo é acaso, haverá de fato alguma ação? Houve de fato um momento de não-ser, um anatta cósmico, um pré-big Bang, uma não-causa, um nada que criou a singularidade do universo, ou até isso foi um acaso, como quando uma membrana, cheia de moléculas replicantes, lançou no mundo as primeiras arqueias e protistas? Será que a palavra "acaso" tem mais de um sentido ou, por acaso, estamos usando-a de forma ambígua? Sim. O demônio de Laplace se curvará à nossa pergunta: se não há acasos, houve pelo menos um, profundissimamente singular, e é esse paradoxo que justifica não haver acasos mais, pois a máquina foi posta para funcionar. Máquinas? Pensei que estivéssemos falando do Mundo.

Vênia concedida! Contudo, vejamos: a máquina da Física é bem diferente da máquina da Biologia, pois na Física não há escolhas e, salvo engano, mesmo conduzidos por forças do inconsciente, hormônios, fungos ou vírus programadores, é possível que eu, diferente do Morro da Urca, me arraste até a janela aberta e a feche ou não a feche. Independentemente do que eu fizer, parece-me que um ser vivo é algo muito similar ao que está agora circulando no mundo quântico e se eu, complexíssimo, com minhas milhões de células e tendões, sou igual aos sub-átomos no limiar entre a existência e a inexistência, posso chamar sim de "vontade" o que bem quiser e não posso deixar de ver partículas subatômicas querendo algo e bagunçando a cabeça do demônio  de Laplace. Se o termo "acaso" é ambíguo, nada me impede de chamar de "vontade" algo muito mais profundo do que aquilo com que Schopenhauer sonhou. E não há definição de "vontade" sem uma pitada de tempero teleológico, prato cheio para não só ficar perplexo, mas também me arrogar na mauvaise foi de criatura humana estúpida e ocidental, que o mundo se iluminou e eu sei os ingredientes do mingau do universo e, pior que isso, em vez de contemplar, quererei ensinar e punirei severamente quem não aprendeu a minha mensagem particularíssima, verborrágica e desarrazoada. 


Confesso, leitor, que fico feliz que, de mãos dadas comigo, finalmente quando contemplo as coisas junto contigo, vejas que este meu texto fez algum sentido e se tornou também momentaneamene serendípico. Se por acaso voou contra teu rosto, como a flor que não só hipoteticamente, mas realmente voou, fazes-me contente. Se abri uma pequena janela na tua azáfama, rumo à manutenção de tuas grandes conquistas e à tua lide em direção a pequenas conquistas, fica sabendo que também me alegraste. Podes fechar os teus olhos agora e dormir, porque amanhã tudo continuará igual. Não é necessário sonhar comigo. Nem a mula de sua Alteza, o príncipe de Serendip, com seu olho direito cego me teria ensinado tanto quanto um sorriso teu. E é de conhecimento que minha alma sempre gostou de ser repleta. Se não fiz isso, larga minha mão e desvia teu rosto daquela flor que vem voando ali.

sexta-feira, 10 de maio de 2019

CERTEZA E CONFUSÃO

Crê-se piamente que o Homo sapiens é um ser racional e perante esse dogma, o maior pecado é dizer o contrário, isso é, que sua razão é tão confusa quanto a de qualquer outro animal irracional. Como em todo dogma, a dúvida não é muito bem-vinda da parte dos dogmáticos, enquanto a grande maioria pouco se importa honestamente com a verdade ou a falsidade de afirmações como essas. Será que só é mesmo racional o ser humano que honesta e dogmaticamente acredita que o ser humano é racional?  Mas é possível ser honesto e dogmático ao mesmo tempo? Para não se cair no pecado da irracionalidade, deveríamos ser claros e valermo-nos de definições para cada termo empregado em nosso discurso? Mas isso é possível? Dizem os que acham que a racionalidade é possível que sim. 

Por exemplo, se eu digo "bombril", podemos falar de uma marca registrada específica de uma lã de aço ou então vagamente de uma lã de aço qualquer e, a não ser para os empresários da Bombril S.A. ou para um usuário fiel das palhas de aço Bombril, que não abrem mão de seu Bombril stricto sensu, os dois significados, apesar de distintos, são iguais, apesar de haver questionamento quanto ao objeto a que se refere. Essa sutileza é por demais sutil. Vamos para outro exemplo.


Em língua portuguesa, a palavra "dado" é, como a maioria das palavras de todas as línguas, um item lexical bastante confuso ou, dito de outro modo, a sequência d+a+d+o pode ter vários significados que nem sempre coincidem. Um dado, por exemplo, pode ser um objeto cúbico usado tradicionalmente em jogos de azar ou um dado, entre outras coisas, pode ser algo conhecido sobre o qual formulamos um juízo. Assim, se eu disser que tenho dois dados, os quais, lançados têm a probabilidade x de caírem  com a face virada para cima, apresentando o número seis em ambos, e, após o lançamento, constatado o resultado, tenho um dado extraído do que os dois dados me fornecem e, relançados, tenho dois dados a partir dos mesmos dois dados e, outra vez lançados, temos três dados a partir dos mesmos dois dados, estarei sendo, no mínimo confuso. Só vou me fazer entender se disser que o leitor deve ser perspicaz e, pelo contexto, interpretar às vezes o uso "dados" com o sentido do inglês "dice" e, outras vezes, com o sentido do inglês "data". Para evitar esse tipo de confusão, um bom iluminista me dirá que preciso de sinônimos, a fim de se evitarem os homônimos. 

Mas alguns linguistas dizem que sinônimos não existem e têm provas de que, de fato, tem razão. Mas não é razão de que seja, de fato, tão certo, a ponto de se cobrarem provas nas provas dos alunos que sofrem, sem razão alguma, para seguir seu raciocínio. Isso é uma prova de que a prova sobre a prova da inexistência de sinônimos não é uma arma de doutrinação eficaz contra a praga dos homônimos. Nem é a razão de que a razão sobre a razão humana seja tão certa quanto duvidosa.

Matemáticos contornam esses percalços expressivos chamando a um dos homônimos de x e ao outro de y. Mas, enfim, uma simbologia, aplicada de maneira histérica, para evitar a falta de clareza da linguagem natural, pode também conduzir à total obscuridade da expressão formulaica da linguagem artificial de lógicos e formalistas afins. E, logicamente, nem tudo pode ser expresso logicamente e é incerto que a certeza não seja comprometida por esse excesso de clareza. 

Uma coisa é certa (ou não): falta de clareza não é confusão. A falta de clareza vem de uma definição pobremente estabelecida enquanto a confusão é a aplicação (in)consciente da falta de clareza. Mas quando paramos tudo, decididos a sermos claros? E, pior, o esforço de ser claro, por mais honesto e/ou necessário que seja, é algo que gera imediatamente uma clareza? Ou ainda alguém se valerá do nosso conceito claramente definido para usá-lo como quer, criando confusão, a ponto de o criador do conceito e dos termos definidos a partir dele não conseguir entendê-lo quando aplicado?


Quero ser claro. Paro tudo e resolvo definir tudo que conheço desconfundindo palavras confusas: evito que sejam homônimas ou que tenham seus escopos de aplicação nebulosos. Não adianta. Alguém perceberá que "dado" não é apenas algo que conheço, a partir do qual posso raciocinar, mas, de forma mais estreita, algo que é resultado da aplicação de um raciocínio. De fato, um fato que a natureza nos fornece é um dado e o resultado de um longuíssimo cálculo computacional, no limite da impossibilidade da cognição humana, também é um dado. Poucas pessoas o negarão. Mas por quê? O cálculo computacional arvora-se numa lógica (e não nas premissas que servem de input) e o fato natural é algo que só se penetra cognitivamente por meio de premissas fundamentadas em pressupostos, imersos no pântano mental de uma época, impossível de ser entendida por si só e profundamente desinteressante para as épocas seguintes a não ser por historiadores.

Um dado, assim, pode confundir-se tanto em seu resultado quanto em uma de suas premissas e isso é profundamente perturbador. Um dado, corrigir-me-ão com uma definição "melhor", é um enunciado apresentado à consciência, independentemente de sua origem, e que serve de base para minha cognição. Independente por quê? E se a sua origem for completamente mítica? Um boitatá é um dado? Alguém virá com sua mangueira de incêndio berrando "não": um dado precisa ter uma raiz empírica... Desculpem-me: isso é confuso.



Pois bem, se minhas premissas têm boitatás e são inseridas num computador, que se vale logicamente delas, o que resulta será um dado, mas um boitatá ele mesmo não é um dado. Um boitatá regurgitado, mastigado e olhado por óculos antropológicos, independentemente das premissas viciadas que esse olhar antropológico tenha sobre o boitatá, é um dado, mas o boitatá, tal como uma entidade, não é um dado. Não é um dado para quem? O meu vizinho viu um boitatá com os próprios olhos. Para ele é um dado, sim senhor, e não me venha dizer que viu porque estava bêbado, que interpretou mal um fogo fátuo, que é míope e o tal boitatá testemunhado na verdade era uma fogueira do outro lado do rio, que é uma recordação atrapalhada, que é um louco, que é o delírio momentâneo de um insano. Para meu vizinho, o boitatá de sua experiência única e pessoal é igual ao cometa Halley que apareceu há pouco tempo: é raro, mas existe, portanto é um dado e acabou a conversa. Ele tem razões para não tê-lo fotografado e se o fotografou, mas o borrão que aparece é inconclusivo, dane-se. Ele tem certeza e quem está fazendo confusão é você que não tem certeza e diz que sua certeza é confusa.

É preciso ser muito irracional para escrever sobre a certeza e é preciso ver-se como muito racional para escrever sobre a confusão. A certeza, concluo, dificilmente se separa de alguma confusão. A certeza advém de convicções que têm raízes não só em dados, mas também na má-fé e no delírio coletivo ou individual. Uma palavra abstrata qualquer causa esse delírio: "paz", "guerra", "amor", "ódio", "infância", "família", "segurança", "alegria", "estupidez". Tudo que é abstrato e tem raízes quilometricamente distantes do real é muito pouco passível de uma definição inequívoca. Tudo isso é um espermatozoide que, unido ao óvulo social, concebe a confusão. A confusão é muito mais que apenas um problema de definições claras. A confusão é o oxigênio, veneno terrível que corrói, transformado em certeza por causa de nossa vida aeróbica dependente da razão. Definir é um momento raro: parece-se mais com o relato espontâneo de Oliver Sacks, quando dizia que, ao mergulhar, sentia-se indubitavel- e profundamente feliz. Definir nos dá uma certeza, conduz-nos à felicidade, sentimo-nos impermeáveis ao ar infecto da confusão, mas após essa ebriedade, voltamos ao real porque - para dizer algo intimamente perturbador - sentimos saudades da confusão.

Veja bem, a confusão não é o delírio absoluto, muito menos o delírio da destruição. A confusão é o momento em que se fundem certeza e incerteza. É o momento que nos incita a viver. Se vivêssemos só de certezas, seríamos profundamente infelizes, porque a felicidade eterna conduz-nos à vontade de ser mortal e muitos deuses do Olimpo sentiram essa tristeza quando conceberam semideuses. A confusão, pelo contrário, conduz-nos à necessidade de termos certeza, mas é na confusão que somos mais bem adaptados. Na confusão distante do delírio absoluto somos menos suicidas do que na certeza: a esperança diabolicamente nos ajuda a sobreviver. Se cada ser humano, dotado de uma torturante consciência, se matasse assim que se deparasse com a náusea da confusão, não haveria um só humano sobre a Terra. 

Há, porém, como dito, vários graus de confusão. Mas se a confusão é desordenada, como dizer paradoxalmente que segue um crescendum? Pasmos, vemos que "grau" também se move pelas ondas inconstantes da polissemia. Uma coisa é dizer que o dia está quente porque reflete uma temperatura de 38 graus Celsius, outra coisa é dizer que um texto confuso por ser mal escrito é menos confuso que o delírio de um Lautréamont e esse, por sua vez, é menos confuso que o discurso de um surto esquizofrênico. Falta de ordem, falta de clareza, falta de método são confusões distintas, da mesma forma que são nomeadas como confusões os embaraços morais, as atrapalhações, as expressões pouco detalhadas, as expressões que visam propositalmente ao tumulto, os meros equívocos, uma infinidade de situações, algumas pérfidas, outras lamentáveis, outras corriqueiras, outras banais e/ou divertidas, que só são malvistas pela pessoa de escafandro no Mar da Certeza, topônimo que não consigo localizar em mapa algum.


Quanto mais me fio na lógica, mais lógicos encontro que desmontam as premissas brutalmente irracionais em que se fiam as premissas e o instrumental de que se valem meus silogismos. Quanto mais alegria encontro, borbulhando debaixo d'água, mais sombras incaracterísticas nadam à minha volta. Não é preciso estar à tona para deparar-me infeliz- e novamente com a confusão. Meus limitados sentidos, aqueles que me conduzem a uma parte de minha certeza, e meus limitados juízos, que me conduzem à outra parte, nasceram defeituosos por não serem oniscientes. E a onisciência não é prerrogativa de nenhum ser alado, rastejante ou vegetativo que eu saiba. Mas quem disse que eu sei tudo? Pode ser que os onicóforos do parque de Ibitipoca tenham o dom da onisciência, algo que jamais conheceremos, porque nem a certeza nem a confusão jamais nos deixarão chegar a essa premissa mínima. A chance de chegarmos a uma premissa mínima por meio da loucura, infelizmente, é ainda menor, penso eu, mas a chance de essa frase estar errada é igualmente tão imensurável quanto a de qualquer certeza ou a de qualquer confusão.

Por que tenho tanta certeza de que não podemos ter certeza de praticamente nada? Não estarei fazendo alguma confusão? Certeza e fé: eis dois sinônimos (e como já disse, sinônimos não existem). Ambas não são dadas apenas por instintos, mas por medos e por caminhos a ser evitados. E esses perigos são enunciados por palavras e palavras têm estruturas, têm obsessões morfológicas, têm regras de boa convivência sintática, têm a roupagem da moda de seus fonemas. Palavras não são coisas como onicóforos, boitatás ou direitos. Palavras são primevas conexões entre a certeza e a confusão, entre a felicidade e a loucura. Palavras têm casos morfossintáticos e não é o caso de nos esquecermos que sentimos seus sentidos em contextos, com textos ou sem textos: o significado nasce depois da palavra, senão, no início seria o significado e só depois a sua carapaça fonética, mas não: primeiro é o ruído, o som, o acaso de significar, só depois, bem depois, sentimos vontade de mergulhar, organizar, para dominar o outro, para dominar o mundo, porque percebemos que somos frágeis. Até esse momento éramos invencíveis: davam nossa chupeta quando pedíamos, riam quando fazíamos qualquer bobagem, manipulávamos, éramos felizes, até que o inimigo, que é nosso próximo, nos negou aquilo que era importantíssimo para nossos caprichos mais fundamentais. A partir daí, nasceu em nós a vontade de nos retrair, de observar e de falar como o outro. A partir daí tornamo-nos perigosos. E, destemidos e inconsequentes, não pararemos até o mar primevo tornar-se o nosso pretendido oceano de plástico: temor de consequências para quê? O futuro não está sempre sob controle do nosso presente? Essa nossa certeza nos conduzirá à confusão e, depois que estivermos totalmente confusos, em meio à destruição a que nossas premissas nos conduziram, perguntaremos: poderia ter sido de outro jeito? Pelo jeito não.

Nesse dia, caro leitor, nossa espécie irá definitivamente para o além-vida, onde já estão nossos primos trilobitas e nossos irmãos dinossauros, antigos donos do mundo, aos quais inconscientemente nos equipararíamos na proporção exagerada massa nitrogenada, se tivéssemos sido de fato racionais. No momento do trespasse da nossa espécie, nossa história terá sido finalmente escrita. E ninguém mais questionará se essa história foi certa ou confusa, talvez só os onicóforos de Ibitipoca.

segunda-feira, 29 de abril de 2019

ONDE ESTÁ TEU NEMATOCISTO?

Um grupo de animais chamado cnidários desenvolveu, em priscas eras, um mecanismo engenhoso. Trata-se de células altamente especializadas chamadas cnidoblastos, que têm um pequeno cílio, o qual, levemente tocado, abre um alçapão e projeta uma seta pontiaguda serrilhada e embebida em veneno. Como são frágeis, muitas vezes muitas dessas células se perdem com uma única presa, no entanto, tais seres têm a capacidade de regenerá-las em algumas horas. Existem animais, porém, que têm a habilidade de comer essas células, como algumas lesmas do mar, e, por cleptoplastia, usa-as como se a evolução lhes tivesse dado essa arma.

A morte é tão antiga quanto a vida: é tão difícil imaginar o primeiro conjunto de células replicantes que se organizou em um indivíduo vivo, quanto o primeiro insucesso de sobrevivência que resultou na primeira morte. Antes da vida, tudo era morte (isto é, física ou química), mas uma vez havendo vida, a morte passou a ser não mais uma condição eterna, mas um momentoso segundo na biografia de um indivíduo. Nesse segundo, o ser antes vivo está agora morto, tenha ele vivido muito ou pouco. Tudo que é vivo um dia morrerá, tautologia e contradição que nos atormenta. E nesse mundo atual de vetustos silício e alumínio e moderno plástico, envenenado pelo oxigênio das fotossínteses, que aprendemos a respirar embora nos corroa, conferindo-nos vantagem de sobrevida para os não-imortais que somos por não suportarmos o sulfeto ferroso e o gás sulfídrico da quimiossíntese dos autótrofos, nem a fermentação alcoólica dos heterótrofos primevos, com seu etanol e gás carbônico, rastejamos expulsos do ventre da nossa mãe que desaprendeu a pôr ovos e da sua carne que lhe escondeu o esqueleto, ramelentos, chorando, sem entender nada até o último dia de nossa vida, amaldiçoados pela consciência. Nascemos sem nematocistos.



Nascemos sem acúleos, nascemos sem quelíceras, esses órgãos que trazem a dor e a morte, tão belamente esculpidos pela evolução nos corpos dos artrópodes, nascemos sem o mimetismo dos polvos e dos camaleões para fugirmos, nossa tez nua, negra, amarela ou rosada, se destaca do verde da mata à vista da harpia e à vista do leopardo, sem a velocidade de uma gazela para correr, sem a habilidade de escalar as árvores de nossos primos de primeiro grau, sem rabo de anquilossauro, na verdade, sem rabo algum. Pelados, corremos e ficamos atrás de pedras, dentro das covas. Medrosíssimos nascemos, interpretando um urro acolá, um chacoalhar de cascavel aqui, descalços pisávamos sem cascos as pedras pontudas e a mata que escondia seres proteróglifos e solenóglifos diversos. Como fazer?

Sim, nus, sem couro, sem espinhos, sem cascos, nem nematocistos, sem rabo, sem acúleos, sem quelíceras, lentos, com o esqueleto dentro da carne: um mero tropeção (pois não somos cabras monteses) e despencamos para a morte, levamos nossa prole desajeitadamente no colo, não em marsúpios, nem nas costas como os pipídeos, morrendo com o frio demasiado, morrendo com o calor demasiado, sem dentes caninos decentes para rasgar a carne de nossas vítimas, sem unhas pontiagudas, mas quebradiças e inúteis, com um pelame que crescia incomoda e infinitamente do nosso rosto e da nossa cabeça, expostos aos vermes que penetram pelos pés, aos infinitos protozoários que fazem do nosso corpo o seu lar por meio das picadas dos mosquitos, volta e meia mortalmente ferroados por abelhas que apareciam tão logo uma folha era puxada para passarmos. A generosidade da natureza com nossa espécie parece que foi nula. Nosso olfato é o pior de todos, não enxergamos à noite e, durante o dia, só vemos e ouvimos a uma pequena distância, nossos músculos são franzinos e sequer temos vomerolfação. Como o ruminante, que parece existir apenas para alimentar o leopardo, nossa missão nesse mundo, aparentemente, era ser repasto de feras. Éramos sem dúvida a mais frágil das criaturas, muito mais do que os moles insetos que esmagamos com os pés ao caminhar sobre a relva, sequer percebendo que lhes tiramos a vida.


Será possível que há alguma vantagem de termos perdido o tórax de um gorila, de termos dispensado o rabo de um macaco-prego? Que vantagem é essa que nos fez como somos? Será que o nosso cérebro chupou, como fofocam por aí, todas as nossas forças primevas, arrancando-nos pêlos tão úteis, músculos tão importantes, caudas tão oportunas, para converter em mais mielina para nosso encéfalo, num plano a tão longo prazo? O cérebro pensou que, para nós, seria melhor um Leonardo Da Vinci do que uma gorila Koko? Que vantagem o cérebro viu em nos alijar de todas as nossas armas preciosas dadas pela natureza, de nossos venenos corpóreos, de nossas carapaças de tatu, deixando-nos indefesíssimos enquanto nosso cérebro não parava de crescer, e crescia lentamente? Havia um plano sádico de matar milhares de gerações para, no fim, sermos a glória que somos, o mais arrogante dos animais, que se imagina a imagem do Deus que imaginamos para nós e para os outros? 

O leitor biólogo estará meneando a cabeça num conspícuo "Não" face à ignorância que se esconde nessa minha última pergunta. Dirá ele, explicando: "ora, seu hegeliano, não há causa final alguma, não há plano, não há nada: tudo é acaso. Tudo somente sempre foi e será acaso. O DNA enlouqueceu um certo dia e multiplicou os anéis do corpo das minhocas; o DNA enlouqueceu um outro dia e tornou o teu lado direito igual ao teu lado esquerdo; o DNA enlouqueceu novamente e aglutinou todo o teu sistema nervoso perto da boca no plano transversal e não perto do ânus; o DNA mais uma vez enlouqueceu e te pôs de pé, ó hominídeo, para que andasses ereto, equilibrando o peso da tua cabeça, porque isso é de algum modo muito vantajoso. O acaso te põe em apuros, ó verme: ou aguentas o que ele inventa ou o teu nascituro morre. E se aguentas e disso tiras vantagem, haverá um parceiro que assegure que o teu acaso te eternize e, de tua prole, nascerá um comportamento novo, com o qual o mundo de silício e de alumínio terá de se adaptar. Tudo é acaso e sorte de teres tido alguma consciência da vantagem que o acaso te proporcionara no seu sádico enlouquecer".



Não há plano, tudo é acaso. Verdade. Mas vermos vantagem num órgão nascido por acaso não é um acaso. É hora de nos defender da sabedoria do que nos humilha em nossa inocente reflexão. Olhos se formam sem que conseguíssemos ver vantagem quando ainda eram simples células fotorreceptoras. O acaso vê necessidade de construir ropálios nos cubozoários que não estão integrados num sistema nervoso centralizado, mas mesmo assim têm cristalino, córnea e retina. O acaso gosta de jogar dados e gargalha quando o dado cai numa vala e fica na transversal, mas Deus não joga dados, segundo Einstein: de que acaso estamos falando? Falo do acaso que conduziu ao pódio, como campeão, um ser esquisito e complicadíssimo como um briozoário, cujos indivíduos ou caçam, ou procriam, ou sustentam os demais. Esse mesmo acaso conduziu outro campeão, que parece um cuspe que anda, que é um placozoário. Se não há plano (e creio que não haja), qual é o critério desse acaso ao eleger os campeões da sobrevivência, se cada forma de vida, séssil ou vágil, autótrofa ou heterótrofa, bilateral ou radial, é um campeão? O acaso não sabe o que quer e é preciso que um novo Zaratustra proclame que Hegel está morto. Cada encruzilhada que permite a antítese é, na verdade, um caminho já trilhado pelo sucesso de outro ancestral. E há poucos bons caminhos, porque muitíssimos nos conduzem a sendas na escuridão que terminam em despenhadeiros que nos sacrificam. A esperteza do hominídeo foi anotar (primeiro na cachola, depois nos incunábulos e agora digitalmente) todos os caminhos que nos conduzem a uma fria. É uma pena que o bicho homem só sabe anotar e raramente volta a ler o que escreveu. E quase nunca reflete sobre tudo que escreveu à luz de alguma coerência que de fato faria jus à sua autoimagem comtiana de bicho que sempre progride. Se assim fizesse, não morreria afogado, não com gás sulfídrico natural, mas com todos os produtos residuais dos quais foi artífice.

Enquanto o mundo se entulha no plástico hominídeo, a evolução está ali, matando muitos e dando chance a criaturas inimagináveis que nos sepultarão. Custo a acreditar que quando cair o próximo asteroide haja nesse mundo apenas tardígrados e arqueas. Custo a acreditar que um bicho que teve a esperteza de deixar seu esqueleto do lado de fora sucumba antes de nós. O veneno em que nossa cnida maledicente se encontra não será suficiente para nos redimir: é metafórica demais.

domingo, 31 de março de 2019

DESCULPAS PARA DESCULPAR-SE

Quem acredita que as coisas existem apenas quando lhe dão um nome pode entrar numa enrascada medonha ao descobrir que não é bem assim que o mundo humano funciona. O mito de que a existência de algo provém da existência de um nome ganhou força, como tantas outras inverdades, do esforço iluminista. Assim, um termo em Física como força não se refere à estupenda qualidade fisiocultural de um Gregg Valentino ou de um Arnold Schwarznegger. Para começar, essa força se atenua com o tempo e desaparece com o falecimento de quem a detém. Uma definição corta as asinhas da polissemia, dando ao termo um só significado. Depois disso, a palavra passa a se comportar, lobotomizada, como um x qualquer de fórmula. Se isso é bom ou ruim, não discuto aqui, porque nem sei se faria sentido, mas fato é que as palavras preexistem aos termos e, portanto, são mais interessantes do que ficar falando de x ou y.



A mente iluminista parece ter entre os seus grandes mentores a figura de Claude Favre de Vaugelas (1585-1650). O anedotário ironiza o seu purismo extremado, dizendo que suas últimas palavras no leito de morte seriam "Je m'en vais, je m'en vas, l'un et l'autre se dit ou se disent". Eu gosto mais de uma versão aproximada (que eu não sei se fui eu mesmo que involuntariamente criei na minha mente fantasiosa ou se li isso no livro Introduction aux études de philologie romane, de Erich Auerbach, traduzido do turco), que afirma que suas últimas palavras teriam sido "Je m'en vais: je ne m'en vas pas!", usando uma fórmula parecida com o anônimo gramático do Appendix Probi. Gosto mais dessa última versão da fake news, porque, de fato, Vaugelas não se foi, Vaugelas está mais vivo que nunca. Se Vaugelas aceitava ou não a forma "je vas" era problema dele, convenhamos. Fato é, contudo, que essa obsessão, que eu poderia chamar de vaugelaisite aguda, seja Vaugelais o primeiro que a transmitiu, ou não, acometeu e acomete desde então tantos seres cultos e incultos, que a gramática normativa e o senso do que é uma língua nunca mais foram os mesmos. Desse modo, de fato, Vaugelas ne s'en est pas allé.

A vaugelaisite é uma doença que atinge o cérebro e tem alguns sintomas muito claros: num primeiro estágio, o doente acredita que letra e som são a mesma coisa, em seguida, o doente acredita que uma palavra só tem um significado, por fim, o doente acredita que apenas uma forma cabe em uma flexão de uma palavra e, no estágio terminal, acredita que significados de uma palavra são ordenados em uma escala de honra e dignidade. Se provamos que a letra <a> não tem nada a ver com o som [a], que palavras têm vários sentidos aceitáveis em qualquer situação e que pãos ou pães é questã de opiniães, o acometido do surto vaugelaisítico dirá que delirante é quem afirma tais coisas e que as provas que apresento (gravadas e escritas) simplesmente não existem. O primeiro comportamento dos vaugelaisíticos, quando têm poder, é demitir quem fala errado e censurar (em casos extremos, bater e matar em nome da única língua existente e nacional); se tem alguma cultura, a vítima de vaugelaisite sairá editando gramáticas, cursos, vídeos, numa cruzada contra os erros de linguagem, crendo piamente que a "forma correta" foi ditada em algum monte Sinai e vem de uma esfera mítica. Alguns cultos, menos surtados com esse delírio napoleônico, não agirão de forma menos pior: afirmarão que as formas corretas estão nos autores clássicos e são capazes de esgoelar contra quem afirme o contrário ou mesmo rasgar a obra do seu venerando autor clássico, se seus contestadores mostrarem passagens que sirvam de contraexemplo a suas hipotéticas verdades. Fato é que o mundo do vaugelaisiano não é aquele mundo real, onde dados refutam teorias: não há ciência alguma em quem evoca o bom falar, o correto pronunciar ou a única forma correta tolerável de se conjugar um verbo. Na verdade, o hospedeiro do verme vaugelaisiano acaba sendo explorado por outros tarados, sedentos de poder, em nome do qual línguas inteiras foram torturadas para se conformarem aos seus preceitos ideiais, vide os contorcionismos dos "linguistas" no expurgo de termos árabes na língua turca durante a época de Atatürk.



Gramáticas tradicionais não eram assim até o período de Vaugelais. Obviamente os povos todos são etnocêntricos: os gregos chamavam os não-gregos de bárbaros e os índios kayapó pensam que a região do Murena é o centro do mundo. As primeiras gramáticas ocidentais, portanto, tinham a finalidade de entender os textos clássicos e não a linguagem, como um todo. As gramáticas mais antigas são mais interessantes, porque os clássicos ainda não se definiram, por isso Varrão é mais interessante que Quintiliano e Fernão de Oliveira é infinitamente mais interessante que Rocha Lima. Antes do período em que o vírus vaugelaisítico se espalhou no planeta, pode-se dizer que se as gramáticas tradicionais valorizavam sim a expressão das classes mais abastadas das capitais de seus reinos ou impérios ou então a expressão de alguns queridinhos (párocos ou escritores), antes do iluminismo, contudo, ninguém em são juízo afirmaria que não existe a expressão por ser dialetal, rural, iletrada ou simplesmente longe da sede do governo. Se eu ouço alguém falar que "menas" não existe, mas, momentos antes e momentos depois, eu ouço gente que fala "menas", então quem está delirando? Eu ou quem diz que "menas" não existe? Estarei ouvindo coisas? Se eu sou louco, por ouvir coisas que não existem, por que implicar com coisas inexistentes? Seria o mesmo que fazer um míssil nuclear contra o bule celestial de Russell. Veja, uma coisa é dizer que algo está certo ou errado, pois nessa afirmação haverá sempre alguém poderoso querendo oprimir ou alguma instituição fundada sobre valores morais, religiosos ou étnicos querendo tomar as rédeas da situação, mas algo completamente diferente é afirmar que algo que eu ouço e vejo não existe. Isso beira uma acusação. E minhas provas não serão provas por pura tirania de quem acusa.

A Real Academia Española e a Académie Française nasceram nesse espírito. Um paraguaio deve pedir desculpas a Madrid por não conseguir falar caballo como deveria; um canadense deve sentir um autodesprezo por se expressar de maneira inconvenientemente não-parisiense. Os vaugelaisíacos são vítimas de uma demência cujo maior resultado é gerar milhões de outras vítimas, infectadas ou não pelo mesmo vírus. Muito mais eficaz que o vírus da ideologite, a vaugelaisite chegou para ficar e é corroborada por professores, governantes, religiosos e pela mídia de direita e de esquerda. Só deixará de existir quando sucumbir o último ser humano do planeta. Na língua inglesa aparentemente esse problema parece menos grave, não sei por quê: ou a roupagem gráfica bizarríssima do idioma inglês tornou a sua gramática misteriosamente imune à vaugelaisite terminal ou os ingleses, com seus próprios Bacon, Locke, Hume, Berkeley, Newton, Stuart Mill, desreprimidos desde que aprenderam a decapitar reis, deram uma banana parcial às esquisitices francesas, tão influenciadas ora pela religião, ora pela anti-religião ou pelo rousseauismo (as quais não foram guilhotinadas na Révolution, como a francesada pensa). Que o diga o pobre Descartes, fugindo de mala e cuia para a Suécia, o mais mascarado e medroso dos filósofos.

Quem me lê pode pensar como então a vaugelaisite chegou tão atenuada a Portugal e consequentemente ao Brasil, até mais do que na Inglaterra. O vaugelaisítico lusófono só reconhece (erroneamente) sua forma típica em poucas pessoas, que são levadas a sério por uma horda que tem surtos esporádicos (embora muitas vezes intensos). Os acometidos falantes de português não levam tão a sério o discurso delirante que motiva a vaugelaisianite e mesmo os nossos melhores juízes, professores e gramáticos se permitem errar uma horrenda concordanciazinha de vez em quando, são fiéis adeptos da pan-próclise, são afeitos a termos imprecisos, beirantes ao chulo, enfim, podemos dizer que é uma espécie diferente de vaugelaisite, que poderia ter o epíteto de hipocrítica. Convenhamos: ridiculizamos às pampas os discursos de Astromar Junqueira ou de um lendário Jânio Quadros ao mesmo tempo que os veneramos como "falantes de um português certíssimo". Mas por que os lusofalantes são assim e não como os venerandos franceses e os invejados espanhóis que introduziram a vaugelaisianidade em sua hemolinfa? Ora, leitor, esqueceste-te do Terremoto de Lisboa, que tanto assombrou Voltaire? Sim, contra a disseminação de uma loucura como o vaugelaisismo nada foi mais eficaz que o terremoto de 1755. Nessa época, o sortudo Bluteau já tinha falecido. Conclusão: nossa língua tem dicionários fenomenais (que não devem nada aos dicionários árabes em dimensão e picuinhidade), mas tem gramáticas que parecem mais com buzinas que chateiam do que com uma incômoda e enlouquecedora microfonia. Todo mundo que é lusoparlante enche a boca para perorar seus discursos com frases como "'cumê' tá errado, o certo é comer (com r trilado)", "entrar pra dentro é burrice", "existe diferença entre 'onde' e 'aonde': não saber isso é vergonhoso", "a regência do verbo 'assistir' quando se refere a 'ver algo' requer a preposição 'a'", "num existe 'avua', é 'voa', seu jegue", "num é 'minino' que se fala, é 'mEnino'", frases que calam a boca de qualquer um, rebaixam a autoestima do ouvinte, apontam para Jericó e prometem uma terra que não existe, evocam tábuas glotomosaicas ditadas por semideuses que ninguém cultua por não saberem onde ficam seus templos.

Alguém se perguntará neste momento se eu também não fui infectado por esse vírus, pois estou escrevendo numa variante que não reflete nada da forma como eu me expressaria quotidianamente. É verdade. Sabe, amigo leitor, a frase anterior me sufoca como se eu estivesse dentro de uma eiserne Jungfrau. Para teres alguma ideia disso, reproduzirei seu original e farás tua comparação: um doceis gorinha memo vai me perguntá se o num peguei ess diabo de vírus, por caus que o tô escreveno dum jeito que num tem nadavê co jeito que o falo tudo os dia. Eis-me, leitor, em meu estado mais feliz, lançado para fora desse casulo horrendo, que é a norma culta. Mas quem me leria? Já até pensei seriissimamente sobre filosofia quinhentista no primeiro documento da expressão botucatuense que existe e ninguém me tomou a sério (em sério?). Obviamente, mesmo na escrita da minha expressão nativa, sou propositalmente conservador, porque achei melhor manter os grafemas <o> e <e> para as postônicas finais, afinal de contas, a tradição escrita não é vaugelaisítica, apenas normativa, no sentido prevaugelaisiano.


O que irrita o autor deste texto não é a norma em si, mas o impedimento de alguém ser o que é e o consequente extermínio de sua expressão. Apoio quem ensina aos filhos e netos expressões de seus avós: não são apenas ararinhas azuis que precisam ser conservadas. Palavras e estruturas morrem de forma miserável com seus falantes e ninguém sente pena. Um dicionário como o de Jerônimo Cardoso (c1508-1564) remetia a uma pessoa culta, feliz, boquirrota e folgazã; já um dicionário pós-vaugelaisiano é soturno e nele se sentem as tesouradas de quem odeia a glotoexuberância. Até na lexicografia houve quem desse pitacos sobre o que existe e o que não existe. E essa pseudo-ontologia lexicográfica (cujo êxito inegável é resumível no mantra "só existe o que está nos dicionários") ocupa meandros sinistros da mente até mesmo dos mais sóbrios pesquisadores da linguagem.

Um vaugelaisiano é um boçal que se imagina cientificamente amparado por sua filosofia. Por exemplo, se alguns significados vocabulares são mais verdadeiros que outros, que devem ser abolidos porque adviriam da ignorância ou da inexistência, ninguém falaria nada nesse planeta e os robôs já  lhes estariam tomando as rédeas. Somente quando isso ocorrer, curvar-me-ei aos vaugelaisiólatras.

Por exemplo, se eu penso bastante na palavra "desculpa" poderei conseguir ver nela uma outra palavra ("culpa"), que é negada pelo seu prefixo "des-". Se eu perguntar a um sábio que revira seus olhos por ter bebido muito da cachaça vaugelaisiana, ele dirá que esse "des-" é um prefixo que significa negação. Ora, se uma desculpa é uma não-culpa, chego a concluir que a palavra "desculpa" seja sinônima da palavra "inocência". Se a cachaça ainda não afetou o hipocampo do prescritivista, ele dirá que não se expressou bem: a desculpa é uma não-culpa no sentido de que quando uma pessoa se desculpa ela pede para que a outra lhe retire a culpa. Podes ver, leitor, que ele já está apelando para a desrazão, porque estávamos falando da palavra "desculpa" e não da palavra "desculpar".

Mas, vá lá, "desculpar" é de fato tirar a culpa de alguém que se sente culpado ou que é de fato culpado. Um padre desculpa o pecador, um juiz não desculpa um culpado de um crime, mas uma pessoa cristã desculpa o próximo, seja ele culpado ou não. Nesse sentido, vemos que o alemão diz entschuldigen, que é a mesma coisa, ou seja ent-=des-, Schuld=culp-, -ig-=-ad-, -en=-ar... Uau, que coisa fantástica é a mente decalcada! Não posso esquecer-me de um dia escrever sobre isso. Mas, por hoje, chega de tergiversações.

Ok, uma desculpa é de fato um ato de desculpar alguém? Acho que não. Se o padre perdoa o pecador, ele não está usando uma desculpa. Se o juiz não incrimina o culpado, também não. Ambos perdoam e incriminam baseados no poder que lhes conferem sociedade e tradição. A desculpa ou é algo que eu peço para alguém (e nesse caso, é o imperativo do verbo "desculpar" e pode aparecer também em outras formas: "desculpe", "desculpem", "desculpai") ou então é algo que dou para alguém, justificando-me por não ter feito o que era esperado.

Pedir desculpas, portanto, é essencialmente diferente de dar desculpas. Quando eu peço desculpas, concordo com o que o outro diz, concordo com meu crime ou com meu pecado. Quando eu dou desculpas, essa consciência não é tão clara, pois estou obnubilado por aquilo que Sartre chama de mauvaise foi. Eu sei, no fundo, no fundo, que eu sou culpado ou que tenho culpa, mas minto para todos e sobretudo para mim mesmo. Pedir desculpas revela o máximo de consciência (ainda que deformada pelo superego), já dar desculpas é o contrário: trata-se do máximo da inconsciência ou da cara-de-pauzismo. Nem mesmo um lógico vaugelasiômano concluiria que pedir é o contrário de dar.


Se eu te peço dinheiro, tu mo dás ou não. Os atos estão associados, mas um não é o contrário do outro (pedir é o contrário de não pedir, dar é o contrário de não dar). Pedir ou não pedir faz parte do meu papel de pidão, já dar ou não dar faz parte do teu papel de concedente. Eu posso dar um tapa sem que a pessoa peça, a menos que haja a desculpa de que essa pessoa "pediu esse tapa", mas de novo, quem assim argumenta estaria soltando névoas no raciocínio lógico por puro cara-de-pauzismo (que termo feio para esse sintoma! vaugelaisiemo-lo, chamando-o mascaradamente de xiloprosopismo): ninguém pede um tapa de fato!

É nessa hora que o vaugelaisiano vem com a desculpa de que esse sentido é metafórico. Diz que há sim um sentido verdadeiro e único e o resto é figura de linguagem. Com argumentos assim, tal como um jundiá ensaboado, o vaugelaisianista escapa, valendo-se de sua lógica particular (outra vez um termo modificado por má-fé), valendo-se daquilo que nega: o pulsar vibrante da linguagem, que não é única, antes é infinitamente fragmentada e sem qualquer ranking a não ser os ditados pelos caras-de-pau. Precisaram surgir uma filosofia e uma filosofia da linguagem para percebermos isso, mas mesmo esses conhecimentos volta e meia caem na esparrela vaugelaisiana e repetem tudinho o que está nas Grammaires raisonées da vida. Dito de outro modo: o vaugelaisianismo é um inferno e essa doença do capeta nunca nunca nunca mais será extirpada da face da Terra.

Assim sendo, resignemo-nos, querido leitor, siga o seu gramático preferido, evite encher a paciência de quem segue outro e não pense que gramáticos são papas ou juízes. Gramáticas são infinitas, a maioria nunca foi e nunca será escrita e só desaparecerão das mentes quando aqueles que as abrigam morrerem. Só a consciência nos faz livre, por alguns momentos, desse parasita mental, digno de um filme de Cronenberg.