Depois de deduzir, com os anos de vida, que o maior colapso da Humanidade é indubitavelmente a vitória do Capitalismo, com sua sede medonha de escravizar, lembrei-me, convencendo-me disso, do império persa e de seus zaratustras. Filhos de deus com sua mensagem pipocaram na terra, acelerando a guerra das classes. E eis que a velha tradição cambaleava e ruía, de tão desgastada, em nome de uma revolução que promovia a desestagnação das classes. Como sempre, porém, o bilionário tradicional sucumbia e subia o milionário, assim como o milionário era vencido pelo rico. Oras, e que revolução não nos mostra que, ao fim e ao cabo que pobres milionários se tornarão novos bilionários e que ricos coitados se tornarão os novos milionários, que caçarão futuramente a cabeça dos novos milionários? E para quem nada herdou dos pais ou tem preguiça de ordenar, basta apenas seguir ordens para acreditar em algo que se assemelhe à paz. Isso é tão certo quanto o fato de o nazismo ser filho do capitalismo.
Mas quem sou eu, leitor, para ensinar-lhe verdades? Apenas um irmão, um pai, um marido, um amigo, um professor, um colega, um escritor. Cartesianamente, o bom senso é de fato a coisa mais bem partilhada do mundo e ninguém próximo de mim tampouco me ensinará nada, certo? É preciso um padre, um demagogo, a voz alterada de uma pessoa em transe, a voz misteriosa de um deus anônimo vinda de um monte, um livro misterioso escrito por anjos ou uma mente de alguém que fale de modo estranho, enrolado em farrapos numa praça e rodeado de cães, para dizer-nos algo além do que nos ensina quem estiver à nossa volta. A emunah é algo muito diferente da veritas dos tribunais e totalmente distinta da alétheia dos cientistas. E é dessa face-revelação do cubo da Verdade de que estou falando. A voz, vinda de uma divindade, é algo irresistível para nós, que mal sabemos com certeza sobre o que existe de fato do outro lado da parede da cela que nos prende.
Então é assim: somos conscientes, senhores de nós mesmos, apoderados devido às nossas certezas e um tanto quanto acomodados, com vontade de acreditar numa vitória da razão em vez do êxito da força, tão primitiva quanto eficiente. Mas Nietzsche já nos dissera algo sobre a morte de Deus. Sinceramente, mesmo crentes, despido de toda má-fé, confessamos que já não somos tão temerosos do que há nas matas escuras quanto já fomos, porque no singrar das eras, desenvolvemos tochas, lanternas, luz elétrica e, armados, nos impusemos no planeta. Não queremos acreditar que Deus está morto, porque isso certamente seria uma tentação diabólica que nos infernizaria, então nos fiamos em algum tipo de justiça humana, ou então no rigor das nossas leituras religiosas, ou ainda na vagueza supersticiosa herdada de que algo há, nem que seja uma verdade cientificamente hipotetizada, testada e corroborada, desensanduichada de qualquer dimensão ou perspectiva. A dúvida socrática e persistente é por demais incômoda.
Mas sob a nossa carapaça exoesquelética culta jazem as vísceras de nosso substato temeroso, cheio de dúvidas pascalinas. Se Deus está morto, é preciso haver uma nova voz que ecoe e a substitua, pois nós, símios nus, esquivos e assustadiços, precisamos de um novo monoteísmo, de uma certeza que una nossas forças para caminharmos e desviarmos do precipício para o qual caminhávamos, parasitados pela lúgubre evidência do racional. Que voz é essa?
E eis que o arauto desse novo Deus, o profeta Jobs nos mostrou em 2007 a solução. Até então, grupos de redes sociais só falavam entre si e, no início, se defendiam da intrusão excessiva de capitalistas por meio dos chamados frames, bombas constituídas apenas de caracteres aleatórios. Converteram-se inocentemente em Facebook em 2003, Orkut em 2004, Twitter em 2006. E-mails em que donos da verdade se expressavam eram raros e tachados de excêntricos pela maioria hoje fanática. Fascinava-nos a rapidez das mensagens no formato ICQ desde 1996, mas requeriam que chegássemos em casa, estivéssemos bem-disposto, a ponto de ligar o computador e ficar sentado na frente de uma tela. Todos esses eventos se fundiram na Hidra de Lerna chamado smartphone. E deixamos, a partir de então, cada vez mais, de atender telefonemas. Já havia um prenúncio do surgimento do novo deus na paulatina obsolescência do Skype, que já existia desde 2003. A nova etiqueta diz: ninguém quer ver teu rosto, ninguém quer ouvir tua voz, quando muito queremos só palavras e imagens, com sua Verdade embutida, que respondemos quando e se quisermos, sem que ou para que nos ofendamos mutuamente. Sedimentados no behaviorismo desses novos valores usurpados pelo iPhone nasceu glorioso o Whatsapp em 2009, dez anos após o Messenger e suas caras mensagens instantâneas. A história da evolução do novo monoteísmo poderia ser mais detalhada, mas com o novo golpe da irresistível gratuidade, povoou nossos bolsos com amigos e inimigos ainda com Instagram em 2010, Telegram em 2013, TikTok em 2014, mas paremos aí, uma década atrás, quando a metamorfose já se delineava.
Estávamos prontos, passada a primeira década do século XXI, para louvar ao novo Senhor, o Celular. Ele já existia como telefone desde 1973, mas como divindade é algo bem mais recente, como demonstramos, coisa de uma década e meia, portanto. Esse misto de telefone, telégrafo, aparelho fotográfico, computador, leitor, televisão, aparelho de som, banco, agenda, bússola, espelho, enciclopédia, telescópio e tudo mais que se pôde transformar em aplicativo, foi muito além do que McLuhan imaginaria. E nesse período de metamorfose, esse amuleto, esse ídolo de bolso, espécie de Amon-Rá da contemporaneidade, converteu-se na fonte das nossas certezas e das nossas incertezas, das nossas alegrias e das nossas tristezas, do canhestro aproximar-se e do profundo afastar-se das nossas vontades. Na soma, aparentemente, o novo Deus nos paparicou à medida que nos desumanizava, porque humanos até então não apagavam ilusões (gerações anteriores viveriam com elas até a morte), desembotou nossa memória naturalmente embotada, promoveu uma profunda nostalgia que não se aplaca nunca, nostalgia até mesmo do que não vivemos e não viveremos. E agora apesar de soturnos e desiludidíssimos, seguimos a trajetória do paradoxo de nossa vida cheios de autoestima, cheios de memória, cheios de passado e sem futuro algum.
Aprendemos, um dia antes disso tudo, algo sobre nossa gênese: que um dia nascemos da lama, nascemos de uma explosão, nascemos de um ser monocelular, nascemos como bons selvagens etc. É preciso unirmo-nos: esse é nosso impulso instintivo de primata, e nada mais hominídeo do que por meio de ideias abstratas, explica-nos o monge Harari. Mesmo sendo lama com vontade de nos unir, sabíamos desde sempre que o conhecimento nos faz iguais a Deus e que o antigo fruto diabólico que impulsiona o gráfico da história de Vico no momento atual já não é uma serpente insidiosa com sua retórica, mas um objeto desejado, acessível por grupos de indivíduos, a maioria desconhecidos, que nos mimam dizendo que são à nossa imagem e semelhança. Sabemos também que há vários tipos de ser humano: uns polidos, outros cruéis, uns que gostam mais de ouvir, outros que gostam mais de ver. Como, então, esse novo deus uno nos unirá? Parece impossível agora, mais do que nunca, mas é fácil perceber, pois fatos dizem por si só: o rol de valores do capitalismo e dos pecados contra a nova fé aparentemente é unânime. Está aí o novo Vaticano, a nova Jerusalém, a nova Meca: o nosso novo norte, a direção de nossas preces, que já estava em construção há mais de meio milênio. O Capital nasceu como uma revolução antimonarquista, mas nos tornará vassalos novamente de idênticos senhores decapitados, porque não há outra regra de convivência entre os homens senão líderes e seguidores.
E quando isso ocorrer de forma absoluta em nível realmente internacional, fé boa será a fé capitalista, conhecimento bom será o conhecimento capitalista, arte boa será a arte capitalista e transgressão boa será transgressão que confirma a onipresença do capitalismo. Não, o deus Celular não é o meio usado pelo capitalismo, mas o fim desejado por ele. Transformar-se-á certamente em outra coisa, sempre disfarçando-se. Dizem que talvez em um chip instalado nos nossos pequenos cérebros, mas não sei. O que sei é que se aproveitará de todas as informações que lhe fornecemos de bom grado. O truque de seu poder é simples: o novo deus nos engana dizendo que nós é que somos deuses e timoneiros da embarcação da história. Nada mais falso. Na verdade os indivíduos não têm controle algum sobre si mesmos faz tempo e o deus Celular ou seu futuro substituto não diminuirá nossa necessidade de respirar, não consertará nossos ossos quebrados por uma queda, não corrigirá automaticamente o que aumenta ou abaixa demais nossa pressão sanguínea, nem harmonizará nossos batimentos cardíacos ou normalizará nosso sistema linfático. Como qualquer outro deus, é e será indiferente ao fato de sermos seres aeróbicos, reles indivíduos dependendo do poder corrosivo do oxigênio. Continuaremos iludidos, pois esse novo deus uno não nos alimentará, não nos fornecerá ar puro, não regulará a nossa psique adoentada pelos slogans da ideologia de Grandes Irmãos. Comprova-se assim que, como dantes, sem criatividade alguma, o que vem a ser de fato o ser humano, cada vez mais imerso em seu mundo de plástico, voyeurismo, fofocas e ódio. Achou-se finalmente um consolo tão divino quanto o de antes, para nos iludir de que somos tão imortais quanto os outros deuses que nós mesmos costumamos criar ao longo da nossa História de símio medroso que contempla o fim do mundo a qualquer momento.