O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

domingo, 15 de dezembro de 2013

INIMIGO SELF-SERVICE

Todo animal está numa cadeia alimentar e os mamíferos, por mais espertalhões que sejam, nem sempre conseguem safar-se disso. Assim, nossos antepassados sofreram muito, sem visão noturna dos lêmures, sem a cauda preênsil ou a pelagem vasta dos haplorrinos. Durante milênios, os inimigos sempre foram os mesmos e afligiam sobretudo os velhos, doentes e filhotes, devorados por terríveis serpentes, astutos carnívoros e aves de rapina inclementes. Mas cedo também se viu que adultos fortes poderiam ser vítimas de outros inimigos. Debilitavam-se por causa de insetos parasitas e carrapatos, instintivamente arrancados pelo companheiro ao lado, em atitude solidária, espremidos ou comidos com uma dentada automática. Outros parasitas internos não eram visíveis, mas depois de um tempo, algumas atitudes igualmente instintivas como ingerir certas plantas ajudaram a combatê-los. Nenhum desses inimigos era mais estranho que a morte natural, que rondava qualquer um, forte ou fraco, causada pela velhice ou por alguma razão desconhecida.
Nunca nos faltaram inimigos. As trevas traziam um pouco de sossego às almas extenuadas de tanto arriscar a vida na procura de alimentos, mas paradoxalmente o sono era interrompido pelo grito de algum integrante do bando, subitamente devorado. Mas dominamos o fogo, já completamente bípedes e nus, e o perigo das trevas diminuiu.
Com a agricultura, a fome também passou a ser menos frequente. Com a cidade, a segurança aumentou. Mas não cessaram os inimigos. De início, eram as pragas que frustravam as colheitas. Mas logo em seguida, os inimigos brotaram de dentro da própria espécie. Fora das muralhas, tribos inimigas se batiam para entrar. Dentro delas, os assaltos eram apenas um dos tipos da multifacetada violência. Para se evitar o caos, nasceu a lei e a civilidade; paradoxalmente, com ela, a perversão de fazer o mal pelo mal.
Não urrávamos mais, nem batíamos mais no peito para estabelecer hierarquias. A essa altura, subíamos aos púlpitos. O inimigo agora passara a ser exclusivamente verbal. Suas ideias não nos agradavam de modo algum. Nem as nossas lhe ecoavam no peito como verdades. Acusávamo-nos mutuamente. Ao menos, concordávamos na mútua inimizade.
Estávamos certos que, além de nossas muralhas, nada de nosso existia. Todo o mundo era barbárie e, portanto, era nosso inimigo. Até que veio alguém mais poderoso e derrubou nossas fortificações. Passamos a fazer parte de um império e nosso rei foi levado vexaminosamente acorrentado como escravo para uma terra longínqua e dele nunca mais ouvimos falar. Ficamos sob domínio de um rei estranho que não era nosso vizinho. A ele, de coração ou contra a vontade, juramos fidelidade, sem jamais vê-lo, e auxiliamo-lo nas guerras contra outros inimigos, que ainda não estavam sob seu império.
Até que um dia, convicto dessa situação lamentavelmente resignada, alguém adoentado mentalmente passou a ver nessa nossa pena eterna à subserviência uma centelha de futuro. A alforria, obviamente, não estava neste mundo, mas após a nossa morte. Centenas de outros profetas repetiam essa mesma ladainha. Continuamos resignados, mas felizes. Sim, pois pior que os inimigos que nos escravizavam ou que nos saqueavam, pior que nossa condição mortal de súdito, havia algo ainda mais terrível, que tornava esses males irrisórios. A chave desse futuro era de uma simplicidade incrível: uma unção, um batismo, uma declaração, enfim, uma certeza cega no Bem, o verdadeiro rei que vencerá esse superinimigo. E a felicidade dessa revelação lançou novamente homens contra homens. Diziam: no fundo todos somos iguais, mas há um inimigo ainda mais invisível que todos os anteriores e essa é a causa de todo nosso mal. Criam que haverá uma redenção contra a abstração de todo o mal na figura igualmente abstrata de um bem infinito, que se importa conosco, porque somos seus filhos.
E esse raciocínio infantil de um ser desamparado mostrou que devíamos lutar contra os demônios que se escondiam nas ainda muitas sombras das vinte e quatro horas que regulavam o nosso organismo animal. De nada adiantou Santo Agostinho argumentar que o mal não existia. A fé na existência de um inimigo poderoso como o Mal é muito maior.
Um dia, alguém inventou a luz elétrica e a multidão de seres fantasmagóricos que povoavam a mente e as narrativas de pessoas muito dignas acabou por esvanecer-se por causa da incredulidade de quem nunca as via por mais que as buscasse. Chegou-se a conclusão que ou eram mentiras ou eram alucinações. Mas o Mal ainda era a melhor explicação para a existência dessas alucinações.
Pouco antes, porém, atenuara-se a certeza da cisão entre o homem divinamente amparado e a natureza, que existia apenas para o servir ou para o aterrorizar. Tornou-se óbvio que não há cisão alguma, mas continuidade histórica. Se esse continuum era cercado de fossos, na verdade, foram todos criados pela extinção dos elos perdidos. Nesse sentido, nosso organismo é uma extensão somente um pouco diferente de seres similares, mas ambos teriam um ancestral comum. Abalou-se com esse discurso nossa certeza de sermos filhos de um bem que nos protege, mas as alucinações continuavam e desconfiou-se que seriam apenas ecos arquetípicos desse passado animal, produzidos por nosso cérebro.
E eis que o cérebro passou a ser nosso inimigo. E ainda mais terrível. Não se tratava mais de um animal selvagem, nem de um espírito maligno, nem da tribo vizinha, nem do desconhecido que mora ao lado, nem de nosso irmão. Nosso inimigo agora era nós mesmos. Estávamos a mercê de uma massa cinzenta cheia de vontade própria, que habita em nós mesmos. Reféns de nós mesmos, passamos a desejar queimar até a morte o Horla que habita em nós, mas, queimando nossa própria casa, acabamos por vitimar os empregados, que nada tinham a ver com nossos delírios. De novo estávamos num beco sem saída, situação em que nos encontramos agora e que Giannetti descreveu magnificamente no seu livro A ilusão da alma.

Mas o conclusão disso tudo é que nossa razão de vida depende de um inimigo, senão de nada adiantaria ao nosso espírito irrequieto de símio trancar-se em casa, buscar o êxtase ou o conhecimento, enveredar pela vida política, viajar para terras distintas, como diz Sêneca em A tranquilidade da alma. E quem diz que preenche esse vazio com isso ou com aquilo normalmente histericamente reforça tudo o que foi dito até agora, pois faz isso em nome de um inimigo. Partidos políticos se digladiam, patrões e empregados se enfrentam, religiosos  lamentam que haja ateus e ateus ironizam religiosos. Estamos num mundo cronicamente inviável, diria Sergio Bianchi. Fazendo tudo isso não estão todos corroborando que a indiferença quase budista almejada pelos estoicos é quase impossível? Não estamos todos construindo diariamente o fight club, de David Fincher?
Por fim, meu leitor, se você quer ser meu inimigo, basta ler com atenção o que eu digo, distorcer minhas palavras ou então apenas pautar-se no que o senso comum fala de mim, mas deve fazer isso com aquela mauvaise foi, de que fala Sartre. Todas as vias são válidas para a inimizade, por mais paradoxais que sejam: discordar é o charme do intelectual, ironizar faz parte da alma de quem quer convencer, acusar é a arma de quem quer o poder. Não é o amor, mas o ódio que nos une. E não se consegue bater no peito e ser líder de um bando de símios se não tiver bem equipado com razões. Um mudo somente seria líder se houvesse excesso de falatório, pois o silêncio somente é apreciado em meio às bombas que despencam. Fora esses momentos, a irrequietude sempre foi nossa marca. Os sons da natureza nos deprimem. Será nosso medo atávico de voltarmos à nossa condição original?
Mas, ao fim e ao cabo, transitando por tantos rumos, imperando de maneira soberana, podemos sentar-nos confortavelmente e escolher nosso inimigo predileto. Temos hoje esse direito. Quem conseguiria viver uma vida sem um inimigo? Ele nos dá razão de existir e esconde o oco de nossa insegurança e da nossa pequenez.

Aproximamo-nos dele, curvamo-nos e gentilmente - para que não se ofenda com alguma inflexão brusca de voz - dizemos-lhe no ouvido mui galantemente: permitir-me-ias esta contradança? E assim grudados, apaixonados, dançaremos uma vida inteira, inseparáveis, eu e meu inimigo, no mais perfeito autoengano, na mais absoluta inconsciência.