Tara é uma daquelas palavras coloquiais usadas sem muita compreensão da sua vastidão semântica. Diz-se que tarado é aquele que não consegue controlar seus impulsos, sobretudo sexuais e aí se pensa nesse sentido como o original. Então, se alguém diz que é tarado por filmes noir, logo atribuímos uma metáfora à palavra. Mas alguém pode surpreender-se com o fato de que tara é também um termo desusado da genética para defeitos físicos, mentais ou morais de origem supostamente hereditária. Por isso, o termo está associado à degradação moral, desvio de conduta, perversão, degeneração, depravação, não só no antigo sentido de desequilíbrio mental, mas sobretudo quando associado a um comportamento sexual reprovável ou criminoso. Não longe desse sentido, o termo é usado às vezes para designar um defeito físico em animais, algo que desvaloriza o seu preço, ou ainda pode ser associado a algo comportamental negativo nos animais, como um vício de cavalgadura. Mais surpreendente é o sentido de "desconto em um preço" em função do peso da sua embalagem. Esse último sentido, contudo, é o mais antigo: por exemplo, o peso da embalagem de um produto ou o peso da carroceria vazia de um veículo de transporte, por exemplo, um vagão de trem, é a sua tara. Em suma, a palavra árabe difícil de pronunciar com seu t enfático e com seu h faringal, que deu origem ao termo, parece resumir todos os demais significados futuros da palavra, a saber, tratava-se inicialmente apenas de uma subtração, de um desconto, uma alusão àquilo que não era o essencial e, portanto, está associado ao menos importante.
Se a palavra não tivesse sido tão alterada com o tempo, poderíamos, quem sabe, ainda hoje usá-la tecnicamente. Por exemplo, em fonética, um som [p] na língua portuguesa teria seu núcleo essencial e fonológico resumido na articulação bilabial, na falta de movimentação das cordas vocais e na sua característica plosiva. Tudo o mais, ainda que fosse normal, individual ou ocasional, seria sua tara, digamos, a intensidade proveniente dos pulmões, a tensão muscular da faringe ou das cordas vocais que não distingue nada, a ausência de aspiração laríngea e por aí vai.
Mas o que sobreviveu de fato foi a derivação da derivação da derivação semântica: o que não é essencial é aquilo que pode ser descontado. De um modo metafórico, o que não é para ser levado em conta é vil e pode ser jogado fora. Se isso é parte quantitativamente maior do que o essencial, ou seja, se o que sobra da essência é muito pouco, o objeto tem tara demais. Assim sendo, tudo que é pouco importante se diz excessivo, garantia para que apontemos sua inconveniência ou a sua deformidade. Num mundo passado até as vésperas da Primeira Guerra Mundial, esse excesso moral se confundia com o sexo (tal como teorizava Freud, que associa o mecanismo da repressão diretamente relacionado a uma queda de braço entre o ego e o inconsciente) e se havia algum peso morto que a pessoa levava como invólucro de sua essência, só poderia ser a repressão sexual, nada mais. É daí que o termo tara afunilou seu sentido. Quem leu o título desta postagem só pode ter pensado nisso. Pensou errado.
Ou seja, percebe-se que não há uma definição precisa do que vem a ser tara, a não ser na área comercial: as ciências abandonaram-na quando perceberam que o termo conduzia o científico para as áreas nebulosas da não-ciência. O problema maior nele é o valor subjetivo dos julgamentos, pois não é óbvio o que vem a ser não-essencial, muito menos o que é deformidade ou inconveniência, salvo o que está determinado por lei.
Mais que isso, o sexo, evidenciado pelo freudianismo, entrou na pauta do século XX no Ocidente, que já estava bem atrapalhado com suas tabulae rasae, com seus positivismos nacionalistas e suas dialéticas filosóficas. Fato é que, como diz Arnaldo Antunes, tudo é o que não pode ser que não é o que não pode ser que não é. Disseram isso milhões de vezes, com megafones e com a linguagem visual da propaganda, dos shows e do cinema. O resultado disso todos sabem: arquiduques assassinados, impérios esfacelados, impérios exsurgentes, loucos, bombas, guerra fria, woodstocks e rock'n'roll. Uma vez que caiu a Bastilha, o século XIX foi a Era do Pileque e o século XX, o da Ressaca.
Estamos já rumo ao primeiro quartel do século XXI sem sequer pensar que caminho fizemos. Parece que enchemos a cabeça de ácido lisérgico no século passado e ainda não acordamos de uma caminhada sem rumo algum por uma praia sem fim. Quando estivermos sóbrios, saberemos em que estado ou em que país estamos? Tenho minhas dúvidas.
Mas essa cena do caminhante drogado andando por uma praia, digno de uma personagem do filme Fear and loathing in Las Vegas, tem uma sinfonia por trás. Tem um nome que se repete toda hora. É um enigma maior que o menemenetequelparsim do profeta Daniel. Todos, diferentemente, dos embasbacados da corte de Nabucodonosor o entendem. Esse paradoxal "enigma compreensível" chama-se internet ou, traduzindo um estrangeirismo por outro, o menu. Perdoai-me, são Castro Lopes, um cardápio!
Senão vejamos: a internet é um mero menu de um restaurante. Como se chama esse estabelecimento? Eu o chamaria de O mundo dos tarados. Sinto muito, não vou falar geeks, isso seria ridículo demais para a minha idade. Seria, como está na moda dizer, uma incompatibilidade geracional.
Aliás, moda! Eis aí a espinha vertebral dos nossos tempos! O século XVIII foi o da Química e o da Física; o XIX, da Biologia e da História; o XX, da Computação e da Economia. O XXI é o da Moda. E não há nada mais normativo que a moda, sabemos. É a única coisa que comprova pelos seus próprios postulados que o subjetivo é o caminho para o racional. Se não acredita, vista um modelito fora de padrão identificável como sendo de qualquer tribo e saia por aí. Verá um monte de dedinhos apontando para você, mostrando a falta de seu bom-senso. Antes do século XIX o bom-senso não tinha parâmetros senão os da tradição autoritária. Hoje, o autoritarismo se travestiu na forma de comunidades. Acho que o marco zero disso, se não estou enganado foi o Orkut.
Comunidades bizarras surgiram naquela época, ainda com resquícios do espírito zombeteiro dos anos 80, mas as mesmas estão aí, para você, leitor. E são de todos os gostos. Basta um enter depois de uma googlada. Você encontrará seus pares num instante. E pensar que antes disso, o fulano era neurótico, igual aqueles descritos por Freud, porque não tinha para quem confessar suas taras e, imerso em culpa, dava vazão à sua frustração na forma de loucura, do suicídio e do homicídio. Seria libertário imaginar que a psicanálise mostrou-nos um novo mundo possível se não fosse um porém que raramente é observado: a loucura, o suicídio e o homicídio não diminuíram. Na verdade aumentaram, salvo melhor juízo. Juntamente com as agressões, os deboches, com a sensação de que não pertence a sociedade alguma, com a sensação de que a sociedade precisa ser reescrita por meio não mais da demarcação geográfica e política, mas dos indivíduos que compõem a sociedade global. E para um pequeno grupo, por mais bizarro que seja, há um integrante aqui, dois ali, mil acolá: procuram líderes para gerir seus grupos e para seguir. Grupos multiétnicos, plurilinguísticos, multifacetados com apenas um paradigma em comum: a sua tara.
Ou seja, a tara deixou de ser a embalagem que se joga fora e, naquelas inversões que deixam os hegelianos doidinhos, passou a ocupar o lugar da essência. A essência de um indivíduo hoje é sua tara. E toda tara tem rótulos, os quais, de fato, estão aí, aos montes.
Ora, como a essência antiga não era um elemento só da psique humana, mas um conjunto de características, ter uma tara só é muito chato e eis que vemos os bitarados, tritarados, politarados multiplicando-se. As taras têm uma vantagem sobre a antiga essência: podem agrupar-se em feixes sem compatibilidade alguma. Passou a ser legal ser paradoxal. Há até quem diga que a individualidade é uma coisa espúria, porque o que basta é ser representante de uma tara qualquer. Por essa não esperavam os românticos.
Isto tudo é muito recente. O discurso, contudo, ainda é o antigo. Freud está vivíssimo. As instituições, as fronteiras geopolíticas, tudo ainda está intacto. Os tarados parecem-se àqueles seres comensais, espécies de trepadeiras que se não fazem mal ao já instituído, tampouco o fazer progredir. E o fim disso tudo? Nesse ponto, termina a sagacidade da minha percepção. Não sei, como você também não sabe.
O ruim, contudo, dos paradigmas desses indivíduos desindividualizados é que os tarados são alicerçados sobre areia. Parecem crianças que acabam de receber a autorização do pai de fazer algo até agora proibido. Estão gozando a sua liberdade. Sem pensar em amanhã nenhum.
Esse quadro, contudo, não me parece a queda definitiva do apolíneo, como profetizara Nietzsche. Parece que o apolíneo ainda serve para pagar as contas desta geração reinfantilizada ou nunca transinfantilizável. O apolíneo tem algum tempo de vida enquanto o bacante bobo alegre está, junto com todos os seus cotarados, ditando regras de etiqueta, prescrevendo o bom-senso.
A sinfonia do menu, eu dizia, é pra lá de tritonal. Mas como cada um está com seu fone de ouvido, acredita-se que não há dissonância alguma, percebam. Ai de quem não tem esse equipamento e tem de ouvir o diabolus in musica desde o momento que acorda até deitar-se! Este anda cansado com tanta baboseira. Cansado de chamarem apolíneo o que não é, de ditarem como novidade alvissareira aquilo que é mais velho do que andar pra frente, de ficar vendo as vascas de alegria debiloide de algo que deveria ter sofrido já sua Aufhebung.
Infelizmente, Schopenhauer estava certo: essa coisa de Aufhebung não existe e Hegel nada mais era que um tremendo picareta. Parece que Vico tinha mais razão quando se tratava das mudanças sociais e da assim propalada evolução da humanidade.