Não, querido leitor, tua frase não é "sou feliz porque tenho isto". O que te dirige neste mundo, dentro da espécie que representas é exatamente o oposto: "não sou feliz porque não tenho aquilo". Se isto se opõe àquilo, diremos que temos uma disjunção exclusiva: ou se tem isto ou se tem aquilo e não podemos ter as duas coisas. Mas o que norteia o meu pensamento não é a exclusão em si, mas o que não se possui. Sim, quero provar que é impossível ser feliz. Mas não agora.
Ainda no raciocínio excludente, se a posse de um algo se opõe à não-posse do outro algo, eu digo que tenho isto mas não tenho aquilo? Pelo nosso raciocínio hominídeo, não: eu tenho, na verdade, duas coisas. Tenho um algo e tenho o vazio do outro algo. Ter o vazio de uma coisa equivale, portanto, não a dizer que não se tem uma coisa, mas que se tem a carência de uma coisa, portanto, tem-se algo. Complicado? Não, logo vais saber do que estou falando.
Acontece que o que nos falta é sempre o principal. É o que temos de mais precioso. O nosso vazio.
O raciocínio excludente, porém, é muito limitado. Ou se é pobre, ou se é rico; ou loquaz, ou lacônico; ou inteligente, ou desfavorecido de perspicácia. Parece que um dos lados da gangorra pende mais para baixo, elevando o outro. Ilusão. O pobre pode querer ser rico, mas haverá o momento que sua auto-estima dirá que é melhor ser pobre; o rico adora não ser pobre, mas idealiza, na arte e na filosofia, uma vida de pobreza que não existe. Até mesmo o cultíssimo Sócrates simulava tão perfeitamente ser pascóvio que chegava a sentir a burrice que um burro deveras sente. O vazio, portanto, cria não só a inveja, mas também a idealização daquilo que não se possui. O não ter é mais diversificado do que o ter.
Se não possuo o fundo do oceano, construo um batiscafo; se meu jardim não termina nos confins do universo, mando uma sonda espacial que se vale da gravidade de um planeta gigante para lançá-la no infinito e além, cada vez mais perto daquilo que nunca será atingido. Esse movimento centrípeto fez o caçador-coletor abraçar a agricultura, que Yuval Harari chama de fraudulenta e que criou o poder da desigualdade, a mortalidade infantil, as invasões e tudo o mais que caracteriza a história humana. A cada passo, o homem desumaniza-se após flertar a consciência de sua humanidade. Negar o óbvio sempre foi a nossa especialidade, mas fazemos sempre isso tão facilmente e por tão poucos vinténs, que é possível especular sem medo de errar se a carência humana não é mais vasta que todos os universos imagináveis.
E nessa carência cabem tantos vazios! Um imenso conjunto de vazios, que em nada se assemelha àquilo que postulam os matemáticos! Deve ser por isso que a imensidão do oceano nos reconforta, que o verde da mata infinita nos funde com a natureza, que o pôr-do-sol num horizonte longínquo seja sinônimo de paz: a beatitude está na natureza porque, para variar, o homem pensa que ela é espelho do seus abismos colossais. Mas não é. A natureza tem suas regras e caprichos: o sol não se preocupará com ser vivo algum quando explodir um dia, na forma de supernova.
Como é transitória a felicidade. É um fato admirável imaginar que aquilo que nos faz um bem imenso possa nos entediar no minuto seguinte. É uma coisa assombrosa imaginar que o além é sempre mais importante que o aqui e o agora. Quem resiste a uma mudançazinha?
Dirás que sou contraditório com que disse outras vezes, pois tanto já louvei o movimento incessante heraclitiano. Contudo, leitor, desta vez, não tens razão: não é a modorra platônica que agora estou incensando. Até porque a mudança promovida pelo vazio não é natural e necessária, pelo contrário, é vontade, pura contingência! É dessa vontade que estou falando.
A vontade existe, mais do que qualquer coisa. Misteriosíssima, ela está no fulcro de nossas mentes. Não se trata da vontade schopenhaueriana de que falo, algo radicalmente entranhado no ser. É da vontade mesma, aquela que é fruto de um raciocínio ou de um desraciocínio. Algo inevitável para quem está vivo e sobretudo dos andarilhos que deixaram de ser planta e anêmona. A vontade é algo que equivale à vida tanto quanto a percepção e o pensamento. Na vontade está sempre uma antítese ridícula. E é essa antítese, que conjecturo inexistente nos homens de Neanderthal, que talvez os tenha feito desaparecer do planeta.
Há tempos que penso que nossos colegas do gênero Homo, sem o córtex prefrontal suficientemente exagerado, não tinham vontade. Sua expressão era fruto de uma memória e seus signos só significavam aquilo que de fato é, como ocorre nas hienas e nas narcejas.
Mas se o mundo nos ensina que o urso polar não se define pela brancura, pois há ursos polares que não são brancos, tanto quanto ursos marrons que são albinos, o Homo sapiens aparentemente resolveu negar tudo que há e afirmar tudo o que não há. Foi aí que nasceu o nosso conjunto particular de vazios, que conhecemos como tédio. Aliás, nada é mais pessoal do que nosso tédio; poderia ser nosso RG.
Nada resiste ao tédio: nem amor, nem amizade, nem claridão, nem escuridão, nem mata, nem comida certa, nem dinheiro, nem tranquilidade. Uma vez minha mãe me disse que tinha cansaço de todo dia acordar e enxergar com os olhos: por que não com as mãos? Por que não comer com as orelhas, cheirar com o cotovelo? Acho que nem Cioran deu maior expressividade vocabular ao tédio do que essas tão estranhas palavras maternas.
Para ter um vazio existencial não é preciso muito: basta ser cheio de algo. Para ter muitos, basta ter felicidade. Se me dizes que és extremamente feliz, direi que tens um número colossal de vazios em sua existência. Uma pessoa feliz é um queijo suíço.
Pondé sugere que um mundo onde todos fossem felizes seria o maior dos pesadelos. Supondo uma feliz e verídica distopia, em que isso aconteça em breve (e ao que tudo indica, essa hipótese não é totalmente desarrazoada), Leibniz ainda diria que o melhor dos mundos é aqui? Talvez até ele capitulasse, em busca de um lugar ainda melhor que o previsto pela sua teodiceia. Abandonando essa digressão, eu diria, indo diretamente ao ponto, que nossa posmodernidade consciente, profundamente descompromissada da verdade e, portanto, festiva e felicíssima, nunca antes teve vazios tão gigantescos em seu bojo.
Será o vazio da ciência diretamente proporcional ao vazio da existência? Argumentará alguém que nunca o homem soube tanto como hoje (afirmação com a qual eu poderia não concordar, mas aceitemo-la): se a ciência atual tem tal magnitude, não haveria vazios, daí a felicidade reinante nos lábios de tantos. Ilusão. Sempre haverá um vazio na ciência e por mais que saibamos, estamos sempre aquém de tudo: o vazio da ciência é infinitamente maior que qualquer conhecimento acumulado. A consciência de nossa ignorância bastaria para sermos felizes? Defenderá isso quem acha que não há maior felicidade do que no cinismo.
Fato é que se pensarmos que já sabemos tudo, que nós, posmodernos, somos superiores aos gregos, babilônios e egípcios, afigura-se-nos um ainda mais monstruoso nada. Eu desconfio que este mundo de gente feliz que se acha detentora de todo o conhecimento do mundo tem um spleen que deixaria qualquer byroniano morrendo de inveja, sofre de um hiperdadaísmo que dez guerras mundiais não aplacariam, é dotado de uma porralouquice maior do que a de qualquer humanista vomitando palavras pela imprensa. Provas? Vejam aí os dedinhos furiosos digitando nos seus celulares. Isso veio para ficar? É tão ridículo, perturbador e cansativo. Vampiros existem: chamam-se smartphones. Quem duvida, que tecle a primeira tecla.
Os smartphones sugam sua alma e prometem vida eterna. Velhos se tornam jovens, semideuses se tornam ralé, segundo o seu gosto. E é possível transformar sua personalidadezinha chulé em vinte personalidades portentosas. Como? Porque, aparentemente, é possível expor de maneira infinita todos os seus vazios. A imensidão do chocho parece ser a pedra basilar de nossos dias.
Terá o vazio sido finalmente vencido? Perceba, querido leitor, não: entre a mensagem mandada às 15h00 e a mandada às 15h01 há um infernal vazio de um minuto, insuperável, uma circunvolução dantesca que atiça a sua ansiedade a ponto de seu supostamente veloz cérebro hominídeo não ter respostas para tal hipnótico estímulo. Nenhum filósofo conseguirá propor nada que vença esse mortal minuto de eterno silêncio.
Então, não há resposta à pergunta do título. Quanto menor o vazio, maior ele será e quanto menos vazio, mais nos afogaremos nele. A quietude é uma prerrogativa da morte, não da maldição de termos nascido hominídeos que resolveram deixar de ser animais como quaisquer outros e migraram rumo à deificação confundindo seus genes com bits de informação.