O bom cético cantaria socraticamente em uníssono com Guimarães Rosa "eu quase que nada sei, mas desconfio de muita coisa" e, assim entoando as sílabas desse culto anexim, estaria sertanejamente fazendo uma asserção que contém algo que poderíamos chamar de ocidentalidade do pensamento, ainda que há muito já se provou não haver fronteiras entre o leste e o oeste mundiais. O mau cético duvidaria até mesmo do conteúdo dessa pérola de sabedoria e ficaria de bom grado à mercê da amoralidade. Alguém poderia estender esse pensamento inicial, alegando que um ceticismo avantajado nada mais é que uma reação a uma incomensurável credulidade. Não tenho argumentos para rebater isso, pois nunca descobri quem é o maior tolo: aquele que pergunta ou aquele que responde.
Se, por um lado, eu sempre achei que falar de id e superego, ao interpretar poemas medievais, é tão absurdo como ver Jesus Cristo em textos pagãos, por outro, não consigo deixar de acreditar nas frases de Thomas Mann em Tod in Venedig, ao ensinar-me que, para quem está fora de si, nada parece mais detestável do que retornar a si mesmo. Na mesma toada, o autor ainda me adverte que o ser humano ama e respeita seu semelhante somente enquanto não tem condição de julgá-lo e até mesmo o seu desejo é produto desse julgamento imperfeito. Ora, quem deseja não desconfia. Quem não desconfia, ignora algo. Mas se todos somos ignorantes, qual é a vantagem da desconfiança? Pergunta fácil de responder para alguns que se autodenominam racionais: quem desconfia tem menos chances evolutivas de tornar-se uma vítima. Menos chances, disseram eles, porque nunca estaremos totalmente imunes àqueles que nos querem destruir.
Uma das formas de parecermos imunizados é ver-nos como inteligentes. Por isso, alardeia fulano que não assiste ao noticiário da tevê aberta, nem lê nada proveniente de determinados meios de comunicação ligados à grande mídia, por suspeitar de sua tendenciosidade. Ora, do zero não nasce o um, pelo contrário, foi do um que se abstraiu o zero. Com isso, de forma supostamente sagaz, tal pessoa não se exporia à mentira, como explicaria, mas fato é que também, nesse estado de perfeita alienação e de opção pela ignorância, não se informaria minimamente de verdades que estão sendo divulgadas. Hoje, contudo, quando todas as coisas e opiniões têm o mesmo peso, é comum que o mau ceticismo impere na forma gabola de atitudes pífias como somente entreter-se vendo youtubes de bobagens ou zapeando canais a cabo exclusivamente voltados à diversão. Parece nem mais fazer sentido vermos alguma importância nas sutis diferenças entre a loucura e o razoável, pois toda afirmação atual é tingida com pigmentos emocionais. As pessoas estão pautando-se exclusivamente em seus velhos preconceitos e, quando querem maquiá-los, vão à internet para achar self-servicemente aquilo que lhe cai como uma luva para apoiar aquilo em que acreditam. A conclusão disso (não é preciso ser sábio para deduzir) será a imobilidade: não quero mudar, portanto não me convencerei. Evidências, para essas pessoas, não dizem absolutamente nada. Nem mesmo a Ingsoc teria tanta eficiência. Espanta-me que o entretenimento não tivesse sido usado como arma de guerra antes.
Na sede de ostentar cultura aceitam-se erros sérios, cuja delação parece ser apenas um caso de irritante implicância. No caderno Cotidiano da Folha de São Paulo, há mais de treze anos (mais especificamente em 27 de maio de 2005, na página C6) afirmou-se, sobre a origem da festa de Corpus Christi, que "em 1264, o papa Urbano 6º estabeleceu a comemoração para toda a Igreja Católica" mas isso não é verdade, pois Urbano VI nasceu quase cinquenta anos depois dessa data e o jornalista, que não sabia números romanos (e talvez não tivesse interesse em aprendê-los), confundiu Urbano VI com Urbano IV. Desconheço se a informação foi corrigida no "erramos" da edição seguinte ou mesmo se agora, transluciferada talvez em página da internet, foi modificada. Se não está, essa informação falsa já está quase virando verdade, porque logo terá duas décadas de existência. Como bebemos no cálice cristão, tendemos a perdoar a ignorância alheia, mas é particularmente irritante ver o pouco caso com a História. Por exemplo, na estação de metrô Alto do Ipiranga, em São Paulo, afirma-se que Santa Paulina era uma italiana nascida no Alto Adige, mais precisamente na cidade de Vigolo Valtaro, em 1865, sendo que essa região, nessa época, nem se denominava assim, mas Tirol, e não pertencia à Itália mas à Áustria (para mais detalhes veja: https://tiroleses.files.wordpress.com/2015/05/decreto-toponomastica-regionale-19231.jpg e também https://tiroleses.com.br/2015/08/a-longa-mao-do-fascismo). Conclui-se que se Hitler tivesse sido tão bem sucedido quanto Mussolini, talvez estaríamos dizendo que o papa João Paulo II, nascido dois anos após a independência da Polônia, era alemão. Que vexame é o anacronismo! E como ele é visto como um erro menor, aceita-se que impropriedades de informação irritam apenas pessoas cricris como eu ou o porta-voz da BALPA no episódio Déjà vu, do Monty Python!
Mas não é para menos. As pessoas de hoje não se espantam mais com a falsidade, como Winston Smith durante os festejos da Semana do Ódio, ouvindo aquela personagem comparada por Orwell com Rumpelstiltskin, a qual informa a todos que o grande inimigo da Oceania é a Lestásia e não a Eurásia, como todos pensavam até então durante anos a fio, argumento que em uma semana será irrefutável com a destruição sistemática da história. A tabula rasa sempre foi um delírio orgástico do nosso raciocínio primata. Uma tese se segue de uma antítese com muito mais facilidade do que qualquer hegeliano poderia imaginar. Quem está preocupado com a verdade? O mau cético não está. Antes aceita qualquer coisa em seu lugar, desde que o mínimo lhe seja garantido, obviamente.
Mas não é para menos. As pessoas de hoje não se espantam mais com a falsidade, como Winston Smith durante os festejos da Semana do Ódio, ouvindo aquela personagem comparada por Orwell com Rumpelstiltskin, a qual informa a todos que o grande inimigo da Oceania é a Lestásia e não a Eurásia, como todos pensavam até então durante anos a fio, argumento que em uma semana será irrefutável com a destruição sistemática da história. A tabula rasa sempre foi um delírio orgástico do nosso raciocínio primata. Uma tese se segue de uma antítese com muito mais facilidade do que qualquer hegeliano poderia imaginar. Quem está preocupado com a verdade? O mau cético não está. Antes aceita qualquer coisa em seu lugar, desde que o mínimo lhe seja garantido, obviamente.
Permanentes teses e antíteses não constroem nada. Apenas são partes do mecanismo que embaralha as cartas e trapaceia o jogo, a fim de tomar o controle da situação e adquirir poder sobre o outro. Ninguém ignora isso, mas é sempre bom relembrar, para que a desconfiança seja seu escudo.
A regra básica para a vida e para a sobrevivência deveria ser a seguinte: se você gosta de algo e não sabe repô-lo caso desapareça, não o destrua. Isso vale tanto para micos leões dourados quanto para valores que sustentam seus pilares sociais ou para expressões familiares que nos dão a sensação de identidade e aconchego, ainda que sejam miragens. Mas para entender assim, é preciso não só conhecer a história, como Winston, mas também saber o que é o futuro. Mas o que é o futuro? Providência, como pensam os estoicos? Fatalidade, como nos ensinam os físicos? Acaso, como julgam os bons céticos? Não sou uma besta cientômana para imaginar que a verdade acerca do futuro tenha uma só face. Confio mais naquele que constrói a ciência do que naquele que a aplica.
Mesmo para o amor esse ensinamento parece adequado: aquele que está traumatizado com seus relacionamentos pretéritos tem o direito de chegar à triste conclusão de que todos os homens ou de que todas as mulheres são iguais. Mas se pensa assim de fato, por que não agir coerentemente, como o mau cético? Por que escolher tanto? Baseia-se no trauma? Mas se foi o trauma que lhe deu a sabedoria, nenhuma escolha faria sentido. O bom ceticismo é irônico e diria de forma fingidamente otimista que se todos os parceiros são igualmente ruins, é quase certo que escolheremos o pior de todos. Aparentemente, essa conclusão nos faz pensar que somos masoquistas quando acreditamos em milagres. Acreditar em príncipes e princesas não é só infantil, mas também um gesto de teimosia bem-humorada.
O homem-hiena vem de áreas periféricas, como se percebe por sua tremenda facilidade de escapar às situações adversas. Reconhece a ignorância daqueles que julga inferiores e, mesmo sendo em nada brilhante, sabe manipulá-los. Oportunista, sabe virar-se otimamente no caos em seu proveito, pois vem de situações sociais nas quais não lhe apraz somente uma batalha, mas a guerra contínua. Napoleão, por acaso, não foi exatamente assim, um homem-hiena? Quantos outros monstros da História ainda estão por nascer? E essa situação, por acaso, não é agora? Como já dizia a capa do livro de Duncan Watts, tudo é óbvio, desde que se conheça a resposta. Essa voz passiva é muito importante, dileto leitor: quando afirmo algo por meio de uma passivização, seria ingenuidade imaginar que o que eu faço é apenas focar o paciente, transformando-o em sujeito. Com ela também posso não dizer qual é o agente e isso se torna adequado sobretudo em três situações: (1) quando não sei quem é o autor da oração, isto é, quando sou ignorante, (2) quando sei quem é, mas não importa, e nesse caso sou indiferente tanto à informação quanto a quem me lê, (3) quando sei quem é mas não direi por segredo, por discrição, para gerar mistério ou por chantagem: nesse caso crio um poder que antes não tinha. O poder não segue as leis de Lavoisier. Uma mera voz passiva não é uma redundância inútil de expressão como poderia pensar algum ingênuo do inutilia truncat. Pelo contrário: confere miraculosamente poder àquele que a utiliza na sua enunciação.
O minoritário não critica o majoritário por causa de pressupostos distintos, mas sim para tomar-lhe o poder e fazer as coisas igualzinho ao criticado. Quase sempre só consegue fazer ainda pior, por não ter tradição de pensamento, apenas sobeja ambição. É muito ridículo ver alguém enchendo a boca para falar uma coisa óbvia com aquele tipo de ênfase típica que subestima o ouvinte. Esse pateta pensa que nunca o seu interlocutor tinha ouvido tal palavreado? Mas não o subestime: ele está querendo que você pesque ali, em seu pequeno repertório, algo que você reconhece em si e lhe faça sentido ao ouvi-lo. Se ouço um aspirante ao poder que quer minha cumplicidade dizer que "estamos no fundo do poço e, portanto, não dá para descer mais", indago sempre se frases idiotas como essa mereciam ser enunciadas, afinal, quem a pronuncia parece imaginar que nunca alguém a havia proferido antes. Ou cogito que, por causa da deficiente estruturação de nossas redes neurais do cérebro, essa infeliz vítima da sua biologia, por um lapso, esqueceu-se de que ele mesmo já me havia dito essa obviedade várias vezes e que sempre a ouvi saindo da sua boca e de sua alma. Nessa horas, irrita-me a ênfase inútil, a careta tão característica, seguida de indefectível deleite, tão típico de quem só diz boçalidades. Estarei sendo muito cruel com essa pessoa e não capto que se trata apenas de um código que me relembra a imprescindibilidade do bom convívio social entre humanos e a de desnecessidade de duelos eternos? Talvez você, leitor que acha este parágrafo ranzinza demais, pense assim. Se desconfio da ignorância alheia, ignoro, no entanto, a sua desconfiança.