O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

domingo, 9 de setembro de 2018

NÃO JULGUE-ME POR ESTA ÊNCLISE!

O mundo é fatiado entre aquilo de que gosto e o que não me apraz. Quando éramos crianças que não falavam, suportávamos o mundo. Mas à medida que descobrimos que uma coisa é melhor que outra, abrimos o berreiro, balançamos a cabeça, fechamos a boca para não aceitar o que não era de nossa preferência e fizemos muita birra. Esse foi o melhor estímulo para aprendermos a dominar o código linguístico que nos impunham e, mesmo virando-se muito bem com um arremedo dele por uns quatro anos, eis que o grande motor do progresso, o Tédio, bateu-nos à porta dos nossos mil e duzentos dias de vida e, resignados, paramos de propor regras originais e palavras absurdas, que só nossos protetores adultos entendiam, e lançamo-nos num kon-tiki sem volta, tentando dominar as regras do que nos circunda, nas suas minúcias e na sua crueza, sem perguntar o que há de lógico ou de sensato, mas apenas aceitando-as, com o intento de mudar tudo para nosso benefício, de dominar o planeta e todos que estivessem ao alcance de nossos olhos.

Mas conquistar o mundo não é fácil, como bem sabe o leitor, que já passou por isso. Nem tudo se consegue com murros, tapas, cordas, mordaças e projéteis de pedra, osso, madeira ou metal. É preciso ter um pingo de inteligência para impor-se. E na estratégia particular de cada um para destruir tudo que é ruim, deixando o caminho mais fácil para andar sem perigos, o primeiro passo consiste em afinarmos o julgamento acerca de quem poderá ajudar-nos e quem vai com certeza atrapalhar-nos no nosso nobre intento de devastar todo e qualquer elemento daninho do planeta. De uma coisa estamos convencidos sobre ele: não somos nós mesmos.



E eis que entra o lado dito sapiens do mimado primata: só julgo bem se também souber bem o que devo julgar. Mas como saber? Ilusões nos enganam, notícias falsas nos atordoam, crenças nos atrasam: a sabedoria, principal requisito para o poder, não é uma coisa presenteada pelo DNA, nem um brinde grátis da evolução. O que temos à disposição é apenas uma memoriazinha, uma capacidade limitada de abstrair à nossa maneira, um vórtex amalucado de memórias espantosamente banal, mas que deixou Bergson boquiaberto. Qualquer pardal parece ter igualmente sobrevivido às intempéries das eras geológicas sem chamar tanto a atenção com estardalhaço para si mesmo. E pardais, dizem, também querem dominar o mundo, porque tudo o que é vivo quer este planeta somente para si e para sua progênie, seja ele primata, pássaro, inseto, alga ou fungo.

Não bastaram um cabeção e dons cognitivos onanisticamente louvados em nós por nós mesmos. É preciso muito mais: com uma mente amaldiçoada, sem a capacidade de apagar tudo de modo eficiente, é preciso separar o que é bom do que é mau por meio de julgamentos. E julgar é algo tão atávico quanto memorizar, a ponto de confundir-se facilmente com o raciocínio. Se não julgássemos, não seríamos seres humanos. E, como não há nenhuma instância reguladora para o julgar fora do que foi criado por nós mesmos, uma multidão de juízos despertam-se em nós, os quais são, via de regra, absolutamente errôneos. O erro não é (somente) de lógica, fique claro: equivocamo-nos perante a impossibilidade de vermos que não há nas nossas elocuções mentais nada que sustente suas mais caras premissas, nada além do que uma mera triagem de sombras lembradas ad hoc, com o fim particular e único de domínio, comungado com tudo que está à nossa espreita.

Mas se o julgamento é fadado ao erro, eis que há erros piores que outros. Julguei errado e, socorro!, o monstro meu inimigo agora tem mais poder que eu, pois inadvertida e alopradamente lho deram. O monstro esbraveja para alegrar quem lhe deu poder e eu temo. Se ele quiser manter o poder não deve fazer mais do que esbravejar, bem o sei e, acauteladamente, espero que pestaneje para que eu tome novamente as rédeas. Situação terrível: ele gosta da minha comida e, em vez de um concorrente, descubro nele alguém que pode fazer o favor de ignorar-me: evidencia-se, desse modo, que meu inimigo não é inimigo meu. Como não tenho seu poder, posso ser-lhe indiferente e me verá, desse modo, não me enxergando, a ponto de poder dizer que até tem por mim, que não existo para ele, uma certa complacência e candura. E convivemos em paz eu e o monstro, que cavalga o poder conferido por outro inimigo meu.


A experiência de subordinação ao monstro mostra que tudo é superável, porque não queremos solidão, tristeza, fracasso. E de fato, um homem se junta a um outro homem para construir uma sociedade, e isso em nada se equipara ao homem que se junta a um deus ou ao homem que se junta às bestas em batalha declarada. Lembre-se do exemplo do monstro: nossos inimigos são muito mais insuportáveis do que os que são inimigos de nós. Basta que a fera não nos olhe nos olhos. Basta que o raio não brinque de acaso conosco. Basta que os deuses estejam do nosso lado. E isso se aprende sem estresse, na medida do possível, porque, como sabemos, viver é estressar-se, mas estresse demais também é morte, de modo que a vida nos ensina que a saúde vem da dispersão, do esquecer-se que estamos rodeados de inimigos. Basta que nossos inimigos não sejam inimigos de nós e vive-se resignadamente bem.

Dispersar-se não só do outro, mas de nós mesmo: porque não conheço inimigo nosso pior do que nós mesmos. Mas como, se a solidão nos enlouquece? Hoje, por exemplo, pus um prato a mais na mesa e comi, sem perceber, diante de um comensal imaginário. Há coisa mais triste que isso: reconhecer-se como único e só? Não é isso a grande náusea que se sente um segundo antes de apertar o gatilho contra a cabeça? Que imagem banal, de cujo mau gosto me desculpo, leitor, pois antes devia lembrar-me que, conforme o bushidō, tantos oibara, após comporem seus zeppitsu, já se valeram de um  kaishakunin para auxiliarem a manusear o tantō em seu seppuku.

Ninguém negaria que só o ser solitário é amoral. Todos sabemos que a moral nada mais é que a associação de uma regra a um objeto. Criando regras para nós mesmos, também seremos seres morais. Portanto, sempre houve moral, seja do ermitão, seja do bando, mesmo no nosso período pré-canibal. E a moral está por toda parte: o conceito de sobrevivência não existiria sem a noção de medo; não influenciaríamos ninguém, se não houvesse a culpa; não haveria força de vontade, se não tivéssemos vergonha; o amor não existiria, se não houvesse o pesar, tampouco o discernimento teria um nome, se não houvesse a ilusão. Se julgamos é porque nos apegamos moralmente a algo e porque é difícil demais separar a verdade que nos convence da mentira com que acalentadamente nos autoenganamos. 



São Boaventura disse que a filosofia encerrada em si mesma é desnorteante. Perguntemos ao santo: todos precisamos de um norte? Eu não sei o nome do inventor do CTRL-Z, mas esse gênio também deveria ser canonizado. Como poderíamos viver hoje sem desfazer a bobagem que acabamos de escrever? Uma fala não se apaga como um escrito. E até os escritos hoje se transformaram em falas. A fala se fez carne e habitou entre nós. E a trindade WhatsApp, Facebook e Twitter ditaram o novíssimo evangelho que toca nossas preocupações mais íntimas. Se não, vejamos: a coisa que mais preocupa o niilista homem contemporâneo não é sua diversão, seu deus adorado? E há maior diversão do que julgar os inimigos, nunca tão abundantes como hoje em dia? Antes voejavam flechas, como andorinhas, hoje zune a boataria lançada incessantemente pela zarabatana de silício.

Um dos inimigos principais é aquele que está acima de mim. Ora, isso é simples resolver isso agora: basta reduzi-lo facilmente com palavras, tornando-o algo abaixo de mim. A tagarelice redime. Por exemplo, um governo, criado para me representar e do qual sou uma hipóstase, é visto como um filho perdulário e ingrato, que não me visita e que eu mal conheço. Tanto há para se acusar, tanto há para reclamar, tanto há para se pedir do futuro, que pouco tempo me resta para raciocinar. Julgar sem raciocinar: eis o sonho humano por fim conquistado! Mas, esperem! Essa árvore que caiu bem no meu caminho e isso me chateia um bocado, pois me impede de passar. Quem vai retirá-la para mim? Cadê aqueles que eu achei que estavam do meu lado? Quem me salva? E o homem, embirrado como era antes quando queria um chocalho fora do alcance das mãos, volta a chorar.

Não há o que fazer. Hoje só se presencia o culto ao indigno e isso nos leva àquilo. E nunca foi diferente. Por vezes, o cão infernal ladra pelas suas três cabeças. E aí todos descobrem um inimigo comum. Surge assim a nova amizade, the new friendship. Ninguém mais está sozinho. Quando não havia smartphones, gabarolou-se, durante uma das primeiras passeatas de insatisfeitos, que "saímos do Facebook", mas engana-se quem interpretou essa frase como "demos uma pausa no Facebook, mas logo voltaremos ao computador". Na verdade, trata-se de uma constatação etiológica e significava  "proviemos do Facebook". E hoje, a minha trindade está no meu bolso e dentro dele, todos os inimigos que tornam o mundo um lugar insuportável. Será que morremos, estamos diante de Ammit, e não sabemos?

Quero ter a sensação, ainda que falsa, de que estou vivo. Não há nada mais estranho do que gostar de viver e não deixar que o outro viva. Não há maior hipocrisia do que viver e dizer ao outro que não gosta de viver. Não há maior falácia do que dizer que deixa o outro viver e impedi-lo de dar um passo real rumo à liberdade, pois quem diz isso sabe que o outro não viverá plenamente. Se o outro admira o desprendimento alheio e ao mesmo tempo respeita sua vontade de viver, a vontade de abdicar será ainda maior. Quem é livre, não foge mas, apesar de vivo, não vive. Ora, não dizem que viver é viver plenamente? Que vida é plena se não houver esquecimento da morte? Viver plenamente é, portanto, impossível. E o que é o respeito senão limite, jaula, acordo, abdicação? Como respeitar a vida alheia? O respeito real estaria na falta de acordos ou é preferível a falta de respeito? Se ainda quero resgatar algo de positivo nessa palavra, devo entender como "respeito" a aceitação piedosa da solidão individual alheia, lançada no turbilhão das ondas cotidianas e inconsequentes das experiências.  

Contudo, para atingir esse nível, é preciso que nos lancemos no óbvio novamente. Há um refúgio no recorte que fazemos ao escolher nossas inimizades: o todo não só é insuportável, mas também não é apreensível. Eu sempre me perguntei se, em vez de recorte, talvez fosse melhor a ênfase naquilo por que me apaixono. Se ser é a condição provisória do eterno estar, qualquer raciocínio pode levar-me ao sucesso ou à frustração. Diferentemente, a mecanização pode sempre levar qualquer um ao sucesso, exceto se houver imprevistos. A última frase foi irônica: qualquer generalização sobre o tema se revelará invariavelmente falsa porque toda generalização é falsa, inclusive esta. Abandonemos esse raciocínio espiral, pois o Kon-Tiki está naufragando. Se viver é apenas conviver com fatos do passado e generalizar para o futuro, os fatos se revelam falsos apenas porque a vida se confunde com introspecção. Tudo se revela falso pela própria experiência do viver. Paradoxal?

Conviver com paradoxos é bom e saudável. Há certa consistência nos paradoxos. O paradoxo nos faz sentir impotentes e idiotas. Mas a idiotice é um ingrediente importantíssimo do saber. Por exemplo, uma pessoa que preza a cultura e o argumentação ouve a expressão latina "per rem". Adota-a porque imagina entender o contexto e escreve-a sistematicamente como "per hem", porque, para esse sujeito, a língua da Inglaterra é mais familiar do que a do Lácio. Como explicar essa teimosia pedante? Afinal, indago-me, com propriedade, após tantos milhares de exemplos diários parecidos com esse: não será a burrice um elemento importantíssimo do intelecto humano? Não é a burrice que gera as nossas maiores certezas? E não será a teimosia nada mais que uma forma exacerbada da burrice, fruto da desatenção, a ferramenta-chave da comunicação e o cimento de nossos edifícios argumentativos? Parece que há algo de inegavelmente verdadeiro ao detectar-se a burrice como a essência do julgamento: quem não confunde arrazoados sensatos com a sua própria obtusidade?


Parece que é isso mesmo. No fundo de nossa memória aparentemente infinita procuramos causas, explicações, argumentos e teorias, mas só encontramos, cada vez mais, palavras. Não encontramos para o mundo nem respostas nem soluções, apenas mais termos ocos e elásticos, inventados por este ou por aquele, mas que logo estarão na boca de todos por algum tempo até o surgimento de outros neologismos vazios. Por que não dizer então àquele que me julga: eu me valho do que é mais essencial ao discernimento: a minha estupidez? Contra ela, não há inimigo que possa vencer-me!