O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

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Sou um saci sumério de Botucatu.

sábado, 6 de abril de 2013

ESSÊNCIA: QUE É ISSO?

Há tempos cheguei à conclusão que  eu não sei o que eu sou, mas, paradoxalmente, muitos parecem saber. A reação inevitável nesses momentos de lucidez é a de gritar: se você sabe quem eu sou, por gentileza, diga-me então quem você é. Para não parecer exagerado, confesso que consigo ponderar às vezes que há coisas, sim, que me dão alguma certeza do que eu sou. Por exemplo, eu sou um vertebrado, mais especificamente um mamífero. Eu sou um terráqueo; sou brasileiro e professor.
 
Com certa falsa modéstia, lamentamos a pobreza de vários idiomas que não distinguem, como nós lusófonos, os verbos ser e estar. Mas será que essa distinção é de fato significativa e justifica nosso orgulho infantil? Parece-nos evidente que estar é algo provisório, completamente distinto do apelo ao essencial de ser algo. Por um momento, diria que não há nada mais lógico. Na mitologia das opiniões, dizem até que houve algum filósofo alemão que louvou esse brilhante insight ibérico - quase natural e revelador de uma verdade acessível a outras culturas apenas por meio da reflexão. Parece simples: o estar revela algo fluido, heraclitiano, o ser é platônico. Ponto.
 
 
 
Mas o erro está em pensar que as duas coisas se opõem. Entre o mundo das ideias e o pánta rheî há uma coisa muito confusa e misteriosa gerada pela mente humana. Vem dela parte da pasteurização que divide coisas que sãocoisas que estão. Uma maçã específica está podre porque ela não é podre por natureza: já foi boa de se comer e agora não é mais. O estar nesse caso não seria mero recurso descritivo de nossa visão utilitarista e pragmática? Afinal, é mais importante vermos as maçãs como coisas para ser comidas do que como fruto de uma rosácea. Penso: qual seria a palavra que designaria o contrário de sua podridão? Qual é o caráter eterno de sua essência, estranhamente abalado pela podridão passageira? Não há palavra que sintetize a não-podridão, o ideal de toda maçã comestível: recorremos a uma negação para afirmarmos que a maçã é não-podre.
 
Em russo não há nem verbo ser nem verbo estar, ao menos no presente. As línguas eslavas costumam fazer o tempo passado com o verbo ser e um particípio, variável em gênero e número. Em tcheco é assim que se faz, exceto na terceira pessoa, quando o verbo ser é omitido e fica igualzinho ao russo (nessa língua, a omissão se dá em todas as pessoas). Uma pessoa conhecida, da República Tcheca, ao saber como o passado é feito em russo, ficou surpresa e exclamou: o russo é mais lógico! Pra que o verbo ser? Ele não significa nada. Talvez esse insight só fosse possível em uma língua cuja omissão parcial é possível. Não sei se um falante de português concordaria.

Quando descobri que em iorubá há vários verbos que traduzem o nosso ser e estar (pelo menos nove), fiquei bastante surpreso, talvez tanto quanto um alemão ao se deparar com a abundância de nossos verbos auxiliares. Essa multiplicidade não é enganosa. Há, de fato, muito mais coisas por baixo desse iceberg.



Comecei a pensar nisso quando li uma passagem no livro Musicophilia, onde Oliver Sachs, a certa altura de suas deliciosas narrativas médicas, se considera (como muitos) um judeu ateu. Mas que é um judeu ateu?, pensei eu. Sou eu um católico ateu? Obviamente não há contradição a não ser se fizermos uma leitura ingênua. Dizer isso tem algo de metafórico e pelo contexto se depreende claramente: Sacks vivenciara, na sua infância, um ambiente de músicas, comidas e tradição judaica, embora seja hoje um ateu. Pela mesma lógica que mescla passado e presente, poderíamos dizer que Michael Jackson era um negro branco. Não ouço com frequência definirem os velhos como jovens velhos nem os adultos como crianças adultas, mas a graça das expressões acima é de uma grande profundeza filosófica.

Sim, somos crianças adultas. Disso estou convencido e Freud também. A memória de nosso passado nos acompanha e não nos abandona nem mesmo quando surge algum tumor cerebral que nos impede de adquirir novas informações.  Ainda somos alguém, mesmo presos no passado, mesmo que essa essência seja gritantemente distinta do que dizem que somos. É o caso de Jimmie G., the lost mariner, que pensava ainda ser jovem e que seu irmão já casado ainda era noivo de sua atual esposa, pois não retinha memórias recentes, como Leonard Shelby, do perturbador filme Memento (2000).

A frase de Sacks lembrou muito a de uma ex-professora de alemão que se definia por meio de todo seu percurso religioso, dizendo-se judia testemunha de Jeová adventista do sétimo dia. E de fato penso que era isso tudo, a ponto de, ao envelhecer, coerentemente vender tudo para ir a Israel e lá passar seus últimos dias. Na sua lógica, corroborada por versículos bíblicos escolhidos com esse fim, só os que estivessem lá seriam arrebatados na vinda de Jesus. Mesclando tudo na sua religião pessoal, praticava aquilo que achava correto nas três religiões, mas era uma eterna dissidente. Como a mescla é inerente do ser humano, cheguei à conclusão que esse comportamento singular não é exceção.
 
Não há paradoxos óbvios quando os adjetivos revelam campos semânticos distintos. Obviamente ser um brasileiro ateu não causa qualquer surpresa, pois se trata de dois conjuntos que não se ancoram na mesma realidade. Mas que significa ser brasileiro? Meu bisavô, pai de minha avó materna, era africano. Sou africano também? Ou sou espanhol, porque meu outro bisavô, pai de meu avô materno, era andaluz? Ou italiano porque, da parte do pai, todos vieram de Rovigo? Seria mais sensato dizer que sou brasileiro, porque nasci no Brasil e me sinto brasileiro, mas já vi mais de um brasileiro que se sente italiano por causa da sua ascendência e, por isso, se diz italiano (com cidadania italiana e tudo). Portanto, ser envolve razões reais e psicológicas. Não é tão simples assim to be or not to be...
 
Por exemplo: eu sou professor. Mas não o tempo todo. Sou porque a minha vocação, a minha carteira de trabalho, a sociedade e tudo o mais me transformaram performativamente num professor. Mas não era professor antes de ser um professor. Sou então um não-professor professor? Devo ser professor agora sempre e em qualquer lugar? Era o que pensava  Immanuel Rath do filme Der blaue Engel (1930), puxando as orelhas dos alunos, fora de sala de aula: mesmo que fosse preciso entrar num cabaré para discipliná-los. Ironicamente é num cabaré que encontrará Lola-Lola.

 
Digo com frequência que sou um primata (e o faço com convicção), mas já ouvi de uma amiga católica fervorosa algo como: só se você for, pois eu não sou coisa nenhuma. Pela definição biológica, eu tenho razão: ela é primata tanto quanto eu. Mas não se sente assim. É seu direito, pois o verbo ser tem essa ambiguidade: sou o que sou, mas também sou o que sinto ser. Em alguns casos, a definição dá tão pouca margem a metáforas que não há contradição possível. É o caso quando digo que sou terráqueo e que sou vertebrado. Quando a definição inexiste, reina a metáfora. E o ser, como tantas palavras, sofre de metaforite.

Aplicar a si frases como sou bom, sou honesto ou sou inteligente revela falta de modéstia ou prepotência. Os outros que devem dizer, não eu. Mas os outros têm rótulos demais. Por exemplo, o que significava ser subversivo na época da Ditadura militar? Era quem se opunha à situação política de então. O que significa ser reacionário nos dias de hoje? A mesma coisa.  Uma mesma pessoa, que sempre questionasse o governo, independentemente das suas qualidades, poderia ser definida hoje como subversiva reacionária? Sim, mas há de se convir que é um rótulo estranho. Quem mudou nesse caso? Ela ou a sociedade?

Sempre achei deliciosa a fala das personagens de Nélson Rodrigues. Vez ou outra, a personagem faz um discurso em que apresenta à plateia suas fortes convicções e conclui com a frase "Eu sou assim". Como se firmasse um contrato com os ouvintes, essa frase evidencia invariavelmente a sandice da personagem e sua total inconsciência de si mesma. Só alguém muito certo de seus valores (e, portanto, tão inconsciente quanto a personagem) não se identificaria nesse momento.
 
Alguém poderá tentar refutar-me: peraí, eu sei que não sou muitas coisas. Mas o não-ser não é definitório, já sabia Aristóteles. Pois bem. Digamos que eu diga, pense ou me convença de que eu não sou cruel. Parece ponto pacífico: não faço mal a ninguém, não maltrato nem uma mosca. Portanto, faço jus ao título de não-cruel. Certeza passageira. Virá certamente alguém e me interrogará: você come carne? Se disser sim, uma longa cadeia de raciocínios e fatos me mostrará que pactuo com a matança de animais para satisfazer a minha necessidade carnívora. Muitas vacas são abatidas cruelmente. Se não sou cruel, pactuo com a crueldade e isso não me isenta. Indiretamente seria uma prova de que sou sim cruel.
 
Entramos num campo ainda mais sutil:  alguém é algo não só por uma definição ou por um julgamento, mas por estar numa cadeia de acontecimentos, concordando ou não com eles. Por mim, todas as vacas viveriam, porque hoje sou incapaz de matar um animal. Capturado pela contradição de estarmos nessa rede, somos muitas coisas que não sabemos. Somos mais responsáveis do que pensamos por tudo que criticamos. A culpa não é só deles, mas principalmente nossa. Muitas guerras aniquilaram muitas vidas por causa desse raciocínio: não importa se você é a favor ou não das atitudes de um dirigente doido: sofrerá apenas por estar na cadeia dos acontecimentos, pois está ligado indiretamente a eles. Situação e oposição não andam de mãos dadas, com certeza, mas, entre elas está uma terceira amiga, a injustiça. Se prevalece momentaneamente a opinião de qualquer uma das duas, é a injustiça que sempre se fará ouvir.
 
As línguas são deficientes. Suas regras são contraditórias e seu vocabulário é ambíguo. Servem para expressar pensamentos, que, por sua vez, são invariavelmente confusos. Pobre bicho humano, pretensioso ao máximo. Mesmo assim, arrogamo-nos em uníssono: eu tenho sempre razão e você é isso ou aquilo.
 

sexta-feira, 8 de março de 2013

VOCÊ PRECISA DE UM LÍDER?

As modinhas linguísticas têm, como tudo, seus movimentos de vaivém. Está de volta a palavra líder, com um valor semântico curiosamente simpático e positivo. Para mim, o encanto crescente e inequívoco com essa palavra não é tão óbvio assim.
 
Poucos sabem, porém, que o anglicismo leader, de onde obviamente vem a palavra, é equivalente exato do alemão Führer, que não é tão simpático, por razões óbvias. Ambas significam a mesma coisa: "aquele (sujeito) que conduz (as pessoas)". Para onde as conduz? Não nos é dito, mas suponho que é para onde desejam ir os liderados. Como a insatisfação humana é infinita, o líder tem o raro poder de criar-nos a ilusão do contentamento. E consegue isso com incrível rapidez, sobretudo quando se escancaram abismos entre o nada e o mínimo. Um big bang social às vezes nem sempre tem razões claramente identificáveis.
 
Obviamente, em muitos aspectos sociais é preciso haver liderança. Nenhuma equipe, nenhum projeto, nenhuma boa ideia, nada, enfim, é construído sem algum coordenador dos movimentos, o qual sempre relembrará aos demais os objetivos iniciais, com a única finalidade de evitar-se a dispersão de ideias. Periodicamente, esse coordenador concentra forças positivamente em direção a uma meta comum, para que haja uma progressão coerente ou simplesmente para que os objetivos iniciais (alterados ou não, com base em negociações honestas) não se desmantelem. Essa é a faceta positiva da liderança e, nesse sentido, é perfeitamente aceitável também sermos liderados. Nesse sentido positivo, talvez o único, é verdade que aplicamos uma metáfora bastante elástica à ideia de "conduzir", uma vez que, neste caso, e somente neste caso, não há abusos de ambos os lados. A ausência desse mecanismo coordenado conduziria ao caos, ao desespero e ao niilismo.
 
O abuso, porém, é uma tentação grande para quem lidera, principalmente se tem algum tipo de carisma e aceitação incondicional dos liderados. Volta-e-meia vemos líderes que, uma vez certos de seus amplos poderes, praticam a liderança abusiva. A própria massa que o apoia empenha-se em calar, de maneira não raro violenta, os que não o apoiam incondicionalmente, os quais, por fim, acabam por recuar em sua prudência (ou em sua covardia?). Vemos por vezes nascer em democracias traços do fanatismo, do fascismo, do nazismo: pessoas cegas aos defeitos das lideranças e surdas ao raciocínio contrário, incapazes de querer novas mudanças para além do mínimo, acomodadas à sombra de uma figura mítica que os envolve com palavras cheias de metáforas evocativas de nosso ódio primal ou capazes de desviar nossa capacidade de amar. Enfim, é espetáculo assombroso ver pessoas, aos prantos, dizendo sinceramente que devem tudo (até mesmo sua vida) ao líder. Sem auto-estima para além dessa dependência emocional, essas pessoas, supostamente socorridas pelo líder ou por algum mecanismo emanado da sua sabedoria, fecham seus punhos à crítica e temem a mudança, quando, tempos atrás, eram as mesmas que a desejavam.
 
Esse paradoxo dos liderados (querer a mudança, conseguir um pouquinho dessa mudança e não querer mais a mudança) é condição primária para as lideranças abusivas. Nesse caso, devemos responsabilizar o líder e seus excessos ou deveríamos responsabilizar os liderados? Difícil saber. Um não vive sem o outro. O líder às vezes é um militar; às vezes, é um religioso; às vezes, é uma pessoa cujo carisma emana da sua proveniência das camadas oprimidas; às vezes, é um intelectual. Tendo, porém, conseguido o comodismo dos liderados, não se encaixa mais em nenhuma dessas categorias mundanas: torna-se um semideus, um herói, uma figura épica, uma lenda.
 

O mundo sempre foi assim? Provavelmente, pois não conheço nenhuma sociedade que viva em perfeita anarquia (no sentido estrito da palavra).

Pôr ordem nas coisas é uma necessidade humana. Parece que todos sofremos, em diferentes graus, de algo parecido com um transtorno obsessivo compulsivo. O caos nos desagrega. Talvez isso seja biológico, pois a regularidade e a ordem está nos instintos de outras espécies, como as abelhas e o pássaro Ptilonorhynchus nuchalis (vale a pena procurá-lo no Google). Não nascemos em tabula rasa, como queria o grande filósofo Locke: desde o início de nossa vida há algo que nos incita à visão geométrica das coisas, à expressão e à empatia. A insegurança do caos nos faz encontrar traços distintivos em fonemas sem que ninguém nos ensine a fazê-lo, faz-nos ver igualdade simbólica em coisas distintas desde que somos bebês; faz-nos construir padrões metafóricos de cognição.
 
Falando nisso, um sábio é um tipo de líder que se expressa apenas por metáforas. Não importa se metade delas é incompreensível: continuará sendo um sábio. Por vezes, nem há algo real para alicerçar essas metáforas. Mas também é verdade que não precisam de realidade: nós, humanos, candidatos a liderados, já vivemos no nosso mundo construído pela linguagem e, pautados nela, raciocinamos e nos envolvemos, amamos e odiamos, desprezamos e adoramos, construímos e destruímos.
 
O mundo construído pela linguagem só é suficiente para quem não quer perder tempo em reflexões, para quem nunca se questiona, para quem sempre acredita ter razão, enfim, para quem nunca vê enfim contradição em si mesmo. Candidatando-se para fora desse mundo prático, explicações para tudo são muito diversas: na Física, propõem-se há forças invisíveis; nas religiões, impõem-se deuses; na política, insinua-se a existência de poderes especiais a determinadas pessoas. Olhando para o passado, percebemos que já fomos bem mais crédulos, pois naquele mundo de ontem, a informação era circunscrita apenas a alguns, cabendo aos outros aceitar sem questionamento, mas estamos ainda bem longe de ser os seres racionais que imaginamos.

Desprezo a fé no crescente movimento do conhecimento rumo à perfeição (como queria Comte) e penso que nosso raciocínio atual nasce de uma sucessão de acasos, esquecimentos e oportunidades: os neoplatônicos não fizeram o raciocínio pré-socrático e aristotélico regredir espantosamente por mais um milênio quando se converteu em cristianismo? Não se perdeu o conhecimento científico que arrastava multidões de cidadãos a voluntariamente construir pirâmides? O enciclopedismo da Revolução Francesa não se tornou monarquia bonapartista rançosa? A cultura e a tolerância dos alemães oitocentistas não se tornou o mais obsceno nazismo no século XX? Direitos se ganham, mas também se perdem, numa velocidade incrível: uma geração se mostra incapaz de ouvir e entender a outra. O esquecimento é ubíquo.
 
Incomoda-me quando, embevecido por uma pequena aquisição de direitos, o acomodado se arma com um soco inglês, pronto a esbofetear quem problematiza ou vê algum ponto destoante. Cego pela verdade do senso-comum, é até mesmo capaz de cravar um bordão (ora reacionário, ora subversivo) na testa de quem apenas propõe pensar para além dos novidogmas que todos devemos engolir sem maionese. Por um salto de raciocínio bastante estranho, o crítico, em ambiente de tirania, torna-se um Caim ou um Judas. Sim, se tudo é perfeito como dizem o líder e os que seguem o líder, por que, nessas condições férteis para a tirania, a miséria intelectual impera? Aliás, pergunto-me: por que o raciocínio está tão fora de moda? Por que precisamos de uma tribo, de um grupo, de uma seita, se finalmente descobrimos a duras penas que somos indivíduos? Por que precisamos da aceitação de todos, se as massas não têm cérebro e se os cérebros dos indivíduos integrantes da massa não se somam, mas deles apenas extraímos, como mínimo denominador comum, a mais rasa das obviedades? Por que a música, a marcha e as gigantescas imagens do líder nos fazem chorar e, ao mesmo tempo, nenhuma lógica tem esse poder? Por que os delírios do romantismo parecem voltar nesses momentos da forma mais irracional possível?
 
 
 
 
São áreas distintas do cérebro que respondem a isso e os liderados se bloqueiam por alguma razão. A lavagem cerebral e a fé irrestrita dependem, provavelmente, de uma atuação direta no nosso lobo temporal encefálico, o qual é curiosamente também é responsável pela arte, pelo sexo e pela religião, como nos ensina Oliver Sacks, em seu Musicophilia. Espelho do aceitável pela massa, são exatamente nessas três direções que colateralmente age a tirania a maior parte das vezes: cerceando expressões artísticas críticas ou pouco convencionais, aceitando somente heterodoxias sexuais e limitando-se apenas às religiões tradicionais da grande maioria. No seu apogeu, a pudicícia da tirania é uma de suas características comportamentais mais bizarras. 100% freudiana. Como se poderia facilmente esperar, a consequência imediata é a repressão das minorias e a paradoxal vitória do status quo, mascarada de revolução.
  
Desse modo, torna-se mais fácil entender por que uma liderança não se faz por meio de lógica, mas por meio da sandice. O mundo feérico do líder e de seus seguidores não é o mesmo mundo real que, para conhecermos, bastaria abrir os olhos. Nesse mundo enlouquecido, a verdade do líder é inquestionável e irrefutável. Não há e não pode haver contraprovas. Se existem, trata-se de uma conspiração e é incrivelmente fácil flagrar o discurso paranoico do tirano no auge de seu poder. É um mundo platônico e abstrato. Para proteger os liderados do perigo sedutor da contaminação com a realidade, é preciso que esse mundo perfeito seja fechado e desinfetado, impedindo, de uma vez por todas, que antíteses aos seus dogmas sejam ouvidas pelos que potencialmente raciocinariam. Nesse mundo, ninguém pode dizer em voz alta: pánta rheî! Embora ajam como se não dependesse do mundo, os embargos às tiranias provam o contrário. Mas até mesmo isso é um trunfo ao tirano, pois parte de seu poder vem da sua própria vitimização. Em seus discursos, não é todo tirano uma vítima, como a massa que salvou? O raciocínio do tirano precisa de todo um mundo fantástico, inutilizado pelas refutações de Popper.
 
O mais irônico é que as minorias, crucificadas e contrárias ao pensamento do tirano e das massas, no final das contas, deixam sementes rancorosas, donde germinarão outros líderes ainda mais bizarros, os quais inverterão o jogo e destruirão, de forma igualmente tirana, os que não se converteram ao novo raciocínio. Parece que a história da Humanidade se resume enfadonhamente a isso, num ciclo que, visto por alienígenas, dificilmente conduziria à conclusão que somos os animais racionais que arrogamos ser.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

NELSON RODRIGUES E TARANTINO

É até engraçado meter-me a fazer crítica. Tenho perfeita consciência da minha incompetência nisso. Mas essa consciência é que me faz escrever. Tomei coragem porque tenho visto nos últimos tempos tanta gente com o rótulo de crítico fazendo comentários vagos, pessoais e imprecisos. Pensei: no mundo democrático da internet podemos ser quem quisermos, por que não? No mundo de duas ou três estrelinhas, de dedinhos dizendo "curti", por que não um punho fechado?

No fundo todo mundo é crítico. E filósofo. Não falo de qualidade. Nem sempre é fácil ou possível medi-la. Sabemos fazer isso dentro de nossa especialidade. Eu, por exemplo, detecto um etimólogo fajuto a quilômetros de distância. Assim faz o médico, o físico e todos que têm os pés alicerçados em certezas para além das suas meras convicções.

Só que sou um crítico um pouco atípico. Hoje é legal dizer que odeia este livro, aquele filme, aquela peça. Parece profundo. Obviamente há coisas que me agradam e outras que me decepcionam. Mas sobre as que me decepcionam não é bom falar contra. Exporia minhas fragilidades. Ademais, a crítica honesta de uma obra, se não estou muito enganado, se faz a partir das premissas do autor e não do próprio crítico. Pelo menos, é o que se deve fazer, quando lemos filosofia.

Dentre os filósofos, há alguns que são dificílimos de ler. Confesso ter sido cuspido dos textos de Hegel, Kant e Husserl. Tenho uma sensação de que não valeria a pena esforçar-me para ler o primeiro e a sensação oposta para os dois últimos. Mas que isso interessa? Se não entendo, não há crítica a fazer. Minhas limitações não deixariam. Também por alguma razão, não acompanho bem alguns tipos de filmes. Recentemente fui assistir ao Lincoln, de Spielberg, mas... não entendi nada. Acho que terei de revê-lo, talvez o veja umas três vezes. Como havia muitos barbudos, foi a prova cabal de que tenho mesmo alguma tendência à prosopagnosia. Ou talvez tenha sido a insônia do dia anterior que não me deixou concentrar em quem era quem. Ou talvez a minha falta de interesse em saber como aqueles toscamente retratados Estados Unidos se tornaram a consabida glória que são hoje. Ou talvez minha burrice me impediu de ver a mensagem que tantos viram nele. Enfim, não sei o que, na complexa trama do filme, me fez perder interesse. Havia muita cumplicidade com a plateia. Não consegui rir ou chorar na hora certa. Fiquei irritado comigo mesmo e com vontade de dar meia estrela ao filme, mas vejo que o problema é comigo.

O que salva minha auto-estima nessas horas é perceber que talvez seja sensível em outras circunstâncias. Um dia antes havia visto o Django unchained de Tarantino. Não gosto da sangueira gratuita dos filmes americanos. Cansa a quantidade de serial-killers e outros esquisitões sádicos da lavra americana. Tarantino, sem dúvida, é um dos mais sangrentos. Nunca tive paciência para ver até o fim o tal Kill Bill. Além disso, Pulp Fiction me perturba negativamente. Enfim, Tarantino tem tudo para que eu deteste de antemão o que faz. Mas não: Tarantino é de fato diferente.
 

Se me incumbo da penosa tarefa de abstrair todo o sangue, pois aí não vejo muita novidade em relação ao que fez, por exemplo, Jim Jarmusch em seu Ghost dog, vejo alguém que de fato mexe com a tela como poucos faziam. Até mesmo o deus ex machina, recurso não-recomendado desde Aristóteles, nas mãos de Tarantino se torna uma ferramenta poderosa. O final romântico, recurso ruim na mão de outros, se torna quase necessário, afinal de contas não é, aparentemente, um filme que pretende divertir e não jogar a realidade na nossa cara? A ficção, por isso, se transforma em algo tão grotesco, que não discernimos o que é o improvável e o que é o perverso. Mas eu apostaria que Tarantino é mais inteligente do que pensam muitos críticos que se decepcionam com o que faz.
 
Nesse filme, há uma dialética entre bom e mau, entre branco e negro. O branco mau é rico, poderoso e burro. O negro mau é inteligente e goza da tradição do branco bom e de seu dinheiro. O branco bom, porém, faz o que deve ser feito, por dinheiro e age como Krishna convencendo Arjuna no Mahabharata. O negro bom só consegue ser amoral em nome do amor. É nessa dimensão heroica, em que as personagens têm volume real como numa epopeia, que Tarantino se sente confortável. Para tal, escolhe enigmaticamente figuras como Brad Pitt ou DiCaprio.
 
Mas também penso que não há tanta ficção quanto se imagina. É irônico que seja um alemão o branco bom (principalmente depois de Inglourious basterds). Mas não é inverossímil. Os alemães (ao menos os célebres) de 1850 eram mais cultos que os americanos, estavam mais para Goethe do que para Hitler. Aliás, é também sintomático que quem esteja apostando, na época proposta, nos tais mandingo fighters sejam um americano e um italiano (evocando-nos Lombroso e outros simpatizantes americanos da frenologia, como Samuel Morton). O desfecho dramático do pós-guerra, parece justificar a miopia anacrônica. O mesmo raciocínio talvez seja válido para o abuso tarantinesco do tal termo nigger, abundamente utilizado, que chocou tanta gente. Penso: tal palavra não será hoje pejorativa por ter sido usada demais no passado e adquirido a carga semântica atual? Ora, o filme está no passado. Em Lincoln, salvo engano, não aparece (usam negro, mesmo em falas altamente preconceituosas). Tarantino tampouco parece ter medo de anacronismos e inverossimilhanças descaradas, como as de Inglourious basterds, mas agora parece-me que o absurdo se contrapõe ao muito provável.

Não, não é possível criticar honestamente o que é feito com amor. E Tarantino faz cinema porque ama, como fazia Truffaut e Kubrick. Não vejo repetição desnecessária, falta de imaginação, nem nada que os críticos profissionais falam. Vejo um homem obsessivamente procurando a perfeição da explosão-catarse. E um bando de gente enjoada tuitando frases retumbantes e vazias. Ponham a claquete na mão deles para ver se fazem melhor.  

Dentro ainda do anacronismo do politicamente correto, recordo-me de Nelson Rodrigues e de sua obsessão tão incompreendida ainda hoje. A meu ver, será sempre. Parece que grita nas suas peças: temos consciência de nossa inconsciência? É fácil acompanhar tudo que escreve, assim como é fácil entender os filmes de Tarantino. Difícil é descrever o incômodo que causam em todos. As suas personagens parecem planas, ou pelo menos falam como se fossem. As relações são planas. E o que subjaz a tudo isso é o crime, a traição e tudo aquilo que é cometido com uma carga enorme de inconsciência. Parece gratuito. Ofende. Quem não entende sai batendo no peito: "eu não sou assim". É batata!
 
Quando vejo obras como a desses dois mestres, sempre à busca da perfeição da sua estranha mensagem cada vez mais burilada, pergunto-me: se todos nós fôssemos ou Caim ou Abel, haveria necessidade de existir o Direito? Enfim, a punição tem suas bases maniqueístas (quer pensemos na lei de Talião, quer na proibição da fruta no Éden) e o maniqueísmo nunca se fez mais conhecido - desde o tempo do enxugamento de centenas de deuses em Arimã e Ahuramazda - do que nos Dez Mandamentos. Nietzsche falou sobre isso o tempo todo. Com o maniqueísmo, cria-se assim não o certo e o errado, mas o legal e o ilegal, mas nossa tendência ao Barroco nos fez tergiversar imensamente sobre os casos omissos, quer no talmudismo, quer na prática processual.
Nélson Rodrigues flagra o impulso e o absurdo daquilo que chamamos vida. Para isso precisa de personagens planas, não só para fazer-se entendido (e mesmo assim não o é facilmente), mas também para alertar-nos de que é algo muito primitivo. O pós-impulso, dificílimo de ser julgado, quer por dez mandamentos, quer por mil leis, nos faz pensar que o impulso que gera a dúvida não é atávico, nem animal. A perversão está à ronda.

Mas aposto que Tarantino e Rodrigues não pregam a perversão. Alertam, porém, que ela é natural. A vida como ela é. Nenhuma revolução moral, seja religiosa, seja política poderá dar cabo dela. O id sempre existirá. Os interesses também. Em sociedade, o embate entre o id e os interesses só consegue alguma vitória mediante violência ou silêncio cúmplice. E essas duas soluções são faces de algo maior, chamado tirania. Poucos admitem que muito do que é considerado correto é também um tipo de tirania, tão necessário nos parece nos dias de hoje. Seremos hipócritas?
 
 

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

O ÂNUS DA ARIRANHA

Está no livro de Pedro Agostinho Kwarìp: mito e ritual no Alto Xingu (São Paulo: EPU/EDUSP, 1974, pág. 167-170). Entre fascinantes mitos dos kamaiurá sobre a origem do pequi e da mandioca, há um muito peculiar. Diz que em época muito antiga, as ariranhas não tinham ânus, pois eliminavam todo o "ingerido desnecessário" pela boca, como ainda hoje o fazem. Como todo bicho mítico, falavam. Fascinadas com o modo que o herói Katsinin fazia "sua evacuação de alimentos", pediram-lhe um ânus também. Maldosamente, Katsinin afiou bem sua flecha e aproveitou-se da situação para matá-las. Nessa terrível situação, quase todas pereceram. Alertada involuntariamente pela extasiada torcida dos peixes, a última delas conseguiu escapar, bem a tempo, apenas ferida de raspão, pois Katsinin mal havia começado seu procedimento nela. Solenemente o mito termina dizendo que é por causa dessa proto-ariranha sobrevivente que as atuais têm o ânus tão pequeno.
 
 
Se abstrairmos o lado grotesco do mito, há algo de maravilhoso nele. Todas as culturas, aparentemente, se preocupam com aquilo que as rodeia e anseiam por uma explicação. Por quê?
 
Todas as culturas procuram explicar as coisas ao seu modo. É natural que seja assim? Aparentemente sim. É sintomático vermos um povo com uma cultura tão distinta da nossa (ao menos o era na época em que Pedro Agostinho a retratou) fazendo algo tão parecido. Para explicar a origem das coisas, os kamaiurá têm heróis com flecha, nós temos seres sobrenaturais, mas somos todos o mesmo Homo sapiens.
 
E por que o homem precisa de explicações? Talvez o plus quantitativo do nosso cérebro, comparado com o dos outros animais, faça de fato toda a diferença nesse quesito. Na verdade, sempre duvidei disso. Adoro os trabalhos dos etólogos e, lendo-os, raramente vejo alguma diferença significativa entre nossa tão requintada e autolouvada sabedoria humana e o comportamento das vespas e outros himenópteros, por exemplo. Ainda não vejo claramente por que, para nós, é tão óbvio que sejamos melhores que elas, que fazem tantos prodígios com sistemas nervosos tão simples.
 
Até hoje não cremos convictamente que a percepção de mundo de qualquer outro animal seja tão digna de louvor quanto a de um ser humano. Sim, têm merecido a piedade de muitos, mas raramente alguém diria que são iguais a nós. Ainda hoje acreditamos que a evolução nos conduziu à uma espécie de perfeição. Os bons evolucionistas sabem que, por meio da evolução, nada se aprimora: apenas...evolui (isto é, modifica-se, adapta-se às condições adversas circundantes), sem qualquer intenção futura que não seja a propagação dos genes.

Dentro da propalada escala fajuta de perfeição, montada pelo nosso antropocentrismo, durante séculos, acreditou-se em culturas melhores que outras, depois - mais seriamente - em culturas mais evoluídas que outras. Segundo esse modo de ver, os kamaiurá explicariam as coisas do modo acima porque teriam um raciocínio primitivo, nada comparável aos milhares de anos de aperfeiçoamento filosófico e científico da Civilização Judaico-Greco-Cristã ocidental. No nível acadêmico, ao menos, esse discurso se atenuou após os horrores da Segunda Guerra. Apostou-se, como tábua de salvação, no relativismo cultural. Uma visão científica mais tolerante tem horror à ideia de que um grupo social seja mais evoluído que outro. Segundo esse modo apaziguador, parte-se de uma inquestionável premissa (aquela lá, propalada desde o século XVIII, mas pouco aplicada, de que somos todos  seres humanos, portanto todos iguais nos nossos direitos) para a questionável conclusão (que todos temos razão porque ninguém de fato sabe como foi). Tanto faz explicar o ânus da ariranha por mitos ou por meio de sofisticadas teorias evolutivas. Tudo é relativo.
 

Sejamos sinceros: apesar de nos julgarmos tolerantíssimos, achamos, no fundo, a história dos kamaiurá um bom entretenimento e ficamos com a nossa própria explicação. Será que, na prática, estamos sendo tão tolerantes assim? A boa intenção do relativismo cultural parece que não se implementou de fato, pois cada um vive com sua explicação. A do outro é obviamente errada, absurda, bizarra.
 
A minha explicação, por exemplo, seria a evolutiva. Mas há quem acredita que foi Deus quem fez o ânus da ariranha do jeito que é, no sexto dia da criação (Deus? No original hebraico, a palavra Elohim mais parece "deuses", mas deixemos o comentário disso para outra oportunidade). Seja como for, as dimensões anais da ariranha chamou a atenção dos kamaiurá e (talvez) de alguns evolucionistas, mas não há outras explicações, afinal de contas, quem é que sabe o tamanho dele senão alguém com convivência com o bicho? E mesmo entre esses, quem se importa? Talvez apenas o filósofo kamaiurá que o divulgou. Que é uma grande questão senão aquilo que problematizamos? O que é um problema para um kamaiurá pode não ser para um surfista carioca ou para um economista sueco. E o porquê do enigma da ariranha não parece encabeçar as grandes questões da Humanidade. Para piorar, tem gente que confunde ariranha com foca. Aliás, tem gente que nunca ouviu falar de ariranha. Há tempos percebi que um problema só existe quando há algo destoante daquilo com o qual estamos acostumados.

Mas por que somos animais especiais?

Alguns animais têm corpos mais bem adaptados à Terra, outros têm sociedades muito mais bem estruturadas, outros enxergam melhor do que nós. Alguns aparentemente têm melhor memória; outros com certeza criam signos em seus pensamentos parecidos com os nossos, apesar de não os expressarem por meio de uma linguagem articulada. A expressão de informações e de sentimentos se encontram nos seres mais primitivos. Então que nos difere de fato de todos os demais bichos? Sem dúvida, apostaria na primitiva associação entre causa e efeito.

Toda vez que detectamos um problema, implicitamente buscamos uma causa. A causa é o motor do nosso tão orgulhoso pensamento humano. Isso nos arrastou à procura de uma explicação para os enigmas que nos cercam. Talvez antes da linguagem. Por que explicar? Não conseguiríamos viver no estressante caos dos enigmas? Não saber é tão frustrante assim? A evolução talvez tenha uma resposta para isso. Eu não.

O nosso mito diz que a consciência veio da ingestão de uma fruta proibida da árvore do Éden, oferecida por uma serpente falante à tal Eva, que foi mãe de todos (até mesmo de Katsinin). É óbvio que as ariranhas não falam, já as serpentes...
 
Num século em que impera a informação, eu pareceria um herege se dissesse não ser frustrante desconhecer as causas. Houve épocas em que não estávamos conectados (e isso faz bem pouco tempo). Algo visto uma vez dificilmente se repetiria. Os youtubes tiveram o mesmo papel do retrato e da fotografia quando surgiram. Antes deles, era preciso que retivéssemos na memória cada detalhe (e sabemos que a memória é traiçoeiríssima) e sobre essa imagem mental fantasiávamos, tínhamos saudade, falávamos de nossas experiências a gerações que não tinham visto o prodígio que vimos. Tudo isso desabou. Vivemos num shopping de imagens. Melhor: tudo é de graça!
 
Mas voltemos à pergunta, refeita de outra forma: é preciso saber? Penso que sim. Quanto mais sabemos, mais tolerantes somos. Não pactuar com intolerâncias antigas, que hoje deveriam parecer anacrônicas (mas que estão vivíssimas nos nossos cyberdias) é dever de todos. Se sabemos, podemos conhecer e se conhecemos, toleramos. Não seremos assaltados pelos nossos medos atávicos, que se transmutam facilmente em preconceitos. Às vezes, penso que nossa espécie tem essa mania de explicar tudo porque tem medo. Homo timens.
 
E por que não teria? Alguma mutação cruel fez que perdêssemos nossa pelagem. Nus e sem rabo (que é praticamente uma quinta pata, para muitos primatas),  o bicho-homem tinha de reagir, senão já seria espécie extinta. A agressividade pode ter contribuído, mas faltava-nos os dentões dos carnívoros e a evolução é lenta demais. A engenhosidade para usar paus e pedras pode estar na explicação etiológica de Kubrick, mas não convence muito. O que salvou mesmo o homem foi a seleção daqueles que viam causas em tudo e, por isso, conseguiam fugir. Com o empurrãozinho da linguagem, efeito colateral do inchaço cerebral, nasceram as religiões, filosofias e ciências como consequências imediatas. Todas com suas causas. Tudo explicadinho. Nasceu a convicção. E, com ela, um ser humano pronto para aniquilar o outro que pensa diferente. Nunca nos livramos do medo primal. O Horla nos circunda sempre.
 
 
Saber é fonte de tolerância. Mas se o que sabemos está fundado sobre causas tão relativas, como sabemos que sabemos de fato? Nossa sabedoria pode ser apenas uma alucinação.
 
Nesse ponto, em que o niilismo bate às portas, penso que, na verdade, há formas de saber. O saber em construção, a meu ver, é melhor que o saber acabado. A dúvida é melhor que a certeza.
 
Mas não a dúvida estúpida.

Duvidar da existência real das cores que vemos é saudável, pois é possível provar que só existem porque há um cérebro que as interpreta. Duvidar do raciocínio singular que conduziu às provas alavancadas por essa dúvida é estúpido.
 
Por meio da dúvida adquirimos conhecimento e mais dúvidas. O conhecimento é, na verdade, uma dúvida abandonada. Mas não louvemos demais a dúvida: por meio dela, como visto, também incorremos na estupidez.

Quando, com esse saber em construção, chegaremos à certeza?
 
Podemos, por exemplo, planejar para nossa vida duvidar de tudo e, uma vez atingido um conhecimento, transmutarmo-lo imediatamente em certeza. Nascida primeiramente da dúvida, não há por que desejar duvidarmos novamente. Alguns conseguem, mas isso pode fazer um mal terrível ao nosso frágil cérebro de primata temeroso.

Pode parecer pouco para um filósofo, mas é melhor que a certeza inconsciente e fanática, que não nasce da dúvida. Acho-a assustadora, porque nasce diretamente daquele medo primal.

Sempre pensei, por exemplo, ser bem saudável duvidar que temos acesso a uma única verdade e que mais importante que a causa das coisas é a nossa consciência. Estamos conscientes de que nossas causas não nos satisfazem? Pensamos nelas o suficiente? Deveríamos. Se não, voltemos ao mito. Ele, ao menos, tem algo de belo.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

SALVEM OS ZUMBIS!

Primeiro foram os vampiros, jovens, bonitões e sanguinolentos, mas de anos para cá a TV foi invadida por zumbis e sua horda de adoradores. Há vários tipos de enredos, mas, quase sempre a situação é a mesma: o mundo está infestado de infectos zumbis, mas meia-dúzia de jovens bem nutridos, munidos de armas potentes ou de lâminas afiadas, formam uma espécie de minoria que se salva e impede a panzumbidade. Para não se tornarem como eles, degolam-nos sem piedade, afinal, merecem: são feios, insensíveis, esquisitões e suas mordidas transmitem sua zumbência. Eugenia? Esparta revisitada? Os zumbizólatras não gostarão desta minha resenha, pois dirão que não conheço o suficiente sobre a matéria para falar dela. Têm razão: nunca tive paciência de ver um filme de zumbi do começo ao fim. Mesmo nos dias em que estou determinado a fazê-lo, acabei dormindo. É chato pacas. Mas o filosofar não nasce da exaustão. Um matemático enfiando sua cabeça em cálculos pode falar muito bem sobre a órbita de planetas sem olhar pelo telescópio.
 
Perante essa cena apocalíptica dos filmes, pouca coisa é esclarecida: um zumbi não é um ser vivo, pois não se procria (ao menos ninguém teve, salvo engano, até agora, essa ideia de jerico), assim sendo, aparentemente tem vida eterna. Isso não é bom? Além disso nem tem consciência de que é grotesco. Oras bolas, por que não deixá-los dar uma mordidinha ou um arranhãozinho, aliando-nos a eles? Afinal de contas, não procuramos respostas para tudo e isso não é dolorido? Queremos uma convicção partidária, uma fé religiosa, um time de futebol invencível, um amor indefectível, uma teoria científica irrefutável. Não queremos o certo, o impossível? Não queremos que todos pensem corretamente, que sejam como nós mesmos, equilibrados e com bom-senso? Se todos fossem como nós, não cresceriam cabelos brancos na nossa cabeça, não envelheceríamos desgostosos. Mas perante a negativa a esse "simples" pedido de razoabilidade, vivemos na decepção, no azedume da frustração e da incompreensão, bem aquém do que podemos ser de fato. Nunca fazemos o outro ver quem de fato somos.
 
Pensem bem. Há vantagens em ser zumbi: o que mais caracteriza o ser humano é o medo. E um zumbi não tem direitos humanos, porque não tem medo. Não tem medo de perder nada. Não tem medo de não ter nada. Não tem medo de ser nada. Não tem medo de não ser nada. A única coisa que um zumbi faz é zanzar: o máximo que faz é dar um grunhido estratégico e complacente na hora de atacar, porque se não fosse assim, os mocinhos desprevenidos iriam pro beleléu e a plateia bestificada não levaria aquele sustinho que garante a audiência. Aliás, grunhidinho bem do mixuruca. O susto resultante nem se compara com o que nos dá o gato da Sigourney Weaver em Alien (1979), quando visto apropriadamente na telona, após muito tempo de inércia visual, urdido naquela eternidade de silêncios. Vai assustar a vó! rs.
 
 
Esses dias, voltando à noite pela Consolação deserta, onde recentemente fui assaltado, vi uma figura vindo em minha direção. Um frio na espinha foi inevitável. Era alto e cambaleava, tinha roupas esfarrapadas, enfim, por um segundo tive a sensação de que um zumbi vinha em minha direção. Obviamente era um mendigo, louquinho como vários que moram na vizinhança, com os passos atrapalhados pelo cérebro comprometido pelo álcool, pela depressão, fome e desamparo social. Por um momento pensei nos mocinhos bem-vestidos e no ideal apolíneo que transmitem na sua matança sem piedade. Pensei comigo: ninguém tem dó dos zumbis? O que esses feiosos querem? Não é só devorar-nos? Por que não nos unir a eles? Sim, ficaríamos bem feiosos, mas ninguém repararia. Zumbi não é ligado na aparência de outro zumbi.
 
 
Michael Jackson já nos ensinou, em Thriller e na sua própria vida, que os zumbis somos nós mesmos. Cambaleando, não farejando necessariamente carne fresca e viva, mas empregos, bens, conhecimento, status, amor, sexo, poesia, filosofia, rock'n'roll. O que nos é dado nunca é suficiente. Queremos aquele algo-a-mais impossível de ser descrito, desde cedinho, ainda no berço. Isso é um bug de nosso cérebro inchado? Cedo aprendemos que aquele avião que voa no alto não tem o tamanho de uma mosca. Cedo aprendemos a não confiar no que vemos, sentimos, pensamos. Passamos a vida toda percebendo que estamos enganados por nós mesmos. Procuramos, para atenuar um pouco essa dor, uma âncora, uma certeza, uma personalidade, uma estabilidade que nos faça participar de um grupo, de pares iguais a nós. A polarização, nessa atitude, é importante: não somos como eles, no nosso grupo somos mais. Mas logo enjoamos. Mesmo no nosso grupelho artificial, percebemos que somos mais do que nossos pares. Quando não temos mais quem culpar, temos aquela náusea de que fala Sartre (aí nos consideramos sábios por atingi-la ou vivenciá-la rs). Um zumbi não tem líder nem heróis, não tem alguém que dite normas, nem se preocupa com estratégias. Seguem seus instintos cegos e só. Sem a menor precaução. Os zumbis, a meu ver, são interessantes porque formam uma massa que não constitui um grupo. Obviamente zumbis se opõem aos não-zumbis, mas essa oposição binária não está na cabeça dos dois lados, pois os zumbis, ao perderem a sua humanidade, levaram consigo também seus defeitos de raciocínio. Da mesma forma, os cavalos conscientes jamais se deixariam domar (não são seres tão vendidos aos primatas humanos quanto os cães). Nem mesmo assustar está entre as nulas ambições do zumbi da gema.
 
 Um zumbi não ama. Não é preciso amar nem ao outro nem a si mesmo. Também não odeia, nem sente remorso, nem quer vingança. Enfim, um zumbi não sofre. Um zumbi não se preocupa com a morte, porque sequer entende o paradoxo que há na solução fácil para o pseudodilema: como  matar um ser que não é vivo mas que age como se fosse? Cortando-lhe a cabeça inútil, oras.

 
Há quem separe as coisas dizendo que zumbi é zumbi e humano é humano, mas não é verdade. Humanos viram zumbis, portanto, ontogenicamente, todo zumbi é um humano desumanizado, assim como toda borboleta se deslagartizou. Metamorfoses não definem espécies: por definição, não há evolução stricto sensu em fase pós-embriológica. Perversamente, poderíamos pensar que os humanos sejam zumbis dezumbizados. Perceba que zumbi não devora zumbi. Se mordesse por descuido, será que voltaria a ser humano? Que horror seria! Não entendo por que Adão não era um zumbi.
 
É um grande paradoxo essa ausência de canibalismo entre zumbis, afinal de contas, um zumbi só fareja instintivamente carne de gente viva, mas não tem consciência de si ou do outro. Por não ser consciente, tampouco tem preocupações. Mesmo assim, estamos do lado daqueles que cortam suas cabeças e acabam com suas andanças. Por quê? Gostamos do sofrimento? Gostamos de viver com medo? Gostamos da concorrência?  Gostamos das angústias de ser vivo? Por fim, gostamos da morte?

Falo da Morte (a Fatídica, a que chega sem pedir opinião, quer façamos algo para impedi-la, quer não), não da mortezinha violenta apregoada nesses filmes ruins, pois nos parece hoje algo muito normal rachar ao meio a cabeça de um morto-vivo. Isso não é bonito, garanto, apesar dos efeitos. Mas os americanos adoram um sanguezinho; esse gosto particular, herdado da Inglaterra regicida, foi exportado. Como têm um fetiche enorme pelo líquido vermelho, pela gosma, e se extraídos com sadismo, melhor ainda. Não entendo essa psicopatia. Deve ser coisa de gente que, diferentemente de mim, nunca viu seus próprios pais e avós matando frangos e coelhos. Tudo hoje é plastificado e cinematográfico. Comprovam-no os nojentos olhares curiosos ao lado dos acidentes nas autoestradas. Ou não. Talvez esteja enganado nessa tergiversação. O gosto pelo sangue parece universal. Mas, que graça tem ver aquela coisa vermelha escorrendo? Que graça tem ver vísceras, cérebros, nervos e bofes, se não por interesse médico? Deveria haver tours para os abatedouros: seria algo muito lucrativo. Depois dizem que Freud é superado, convenhamos. E não me venham com a lengalenga à la Rousseau, dizendo que isso é um mal da civilização ocidental etc etc. Penso nessas horas como Frans de Waal: é o nosso lado chimpanzé prevalecendo sobre nosso lado bonobo.
 
Os mexicanos têm seu dia dos mortos; os americanos, o Halloween. Nosso mundo mexicanizou-se numa anestesia visual? Se sim, não há mais nada que fazer. O dia dos mortos pode ser eterno. Basta que deixemos os zumbis nos morder. Há várias chances no dia-a-dia. Se não, alie-se à Rainha de Copas: off with their heads!