O ÓBVIO FINALMENTE REVELADO!!!

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Sou um saci sumério de Botucatu.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

SE MELHORAR, ESTRAGA

Final do ano é um ótimo momento para idealizar o futuro. Por essa razão, limpei minha mesa de escritório, entulhada de papéis desde março, e comprei nova agenda, na qual já escrevi tudo que pretendo fazer em 2018; mais da metade dos itens, porém, é cópia de 2015, 2016, 2017...

A insatisfação é aquilo que nos move a agir, senão, extáticos como girassóis, só seguiríamos a luz, sem nos desenraizar e sair pelo mundo - esse perigoso mundo - em busca de aventuras. O tédio fez o homem sair da sua condição de igualdade com a bicharada para, sem sossego, revirar o doce do mundo, tanto que o planeta está de ponta-cabeça, sem que tenhamos a menor esperança de que sossegaremos o facho antes do apocalipse.


Então, se o bem e o mal nascem da nossa insatisfação inata (a ponto de "quero" ser uma das nossas primeiras palavras, independente da língua que, ainda nascituros, dominaremos), como distingui-los? Tudo tem a ver com a nossa vontade, essa coisa ranheta que coça mais do que micuim. Podemos pensar que o mal nasce de nossos complexos? Se estamos sempre querendo (e às vezes queremos o impossível, o que dá azo às nossas invejas e ódios irracionais), concluiremos que o mal nasce de uma espécie de reconhecimento de que somos menos do que aquilo ou aqueles que admiramos? São nossos modelos a causa de nossos complexos e, portanto, das nossas atitudes más e, por fim, de todo o Mal que há na Terra? Não deveria ser o contrário? Sim, se fôssemos extáticos como girassóis sem pernas.

A verdade é que posso ser a pessoa mais feliz do país mais justo do planeta mais perfeito do Universo e, mesmo assim, serei infeliz e verei injustiça à minha volta. O melhor dos mundos não é aqui, ó Leibniz, mas está na cabeça de Platão, aquela que pensas emular. A teodiceia é uma panaceia cujo efeito psicotrópico é não nos fazer enxergar o óbvio. Essa panaceia, vinda de alguma glândula mesencefálica qualquer, talvez seja tradutível em termos abstratos como "satisfação". Há em nós algum déficit da produção glandular de satisfação, definitivamente. I can´t get no satisfaction.


Mas, volta e meia, essa satisfação, filha do tédio, abre uma cauda de pavão, talvez para exibir-se à maioria insatisfeita, pois, obviamente, uma pessoa satisfeita é um insatisfeito adiado. A expressão mais adequada para esse momento ínfimo de nossas vidas, chamado satisfação, é "se melhorar, estraga". Quanta sabedoria há nela, a qual, ao mesmo tempo, afirma nada ser bom, exceto agora, e prevê que logo não será mais. E, contrários à qualquer lógica que dite "algo que se acrescenta ao bom torna-o ainda melhor", os que proferirem proverbial e profeticamente a verdade dessa expressão concordarão involuntariamente com os gramáticos quando dizem que "mais melhor" é uma das piores construções possíveis.

Como assim uma coisa boa não poderia melhorar, senão estragaria? Será que quem diz isso nos incita à resignação, à falta de empenho e à aventura? Medroso, após levar tantas chapuletadas da vida, resolveu sentar-se na sua alcatifa, em posição de lótus, e resignar-se, buscando com toda ansiedade do mundo a falta de desejo. Quanto estresse!

Enfim, a quem se diz satisfeito tacha-se como conservador, porque quer deixar tudo igualzinho, para ter paz ao vender suas bugigangas. Quem tem interesse na conservação defende a harmonia entre os opostos, senão seus lucros não aumentarão. O insatisfeito, no auge de seus hormônios juvenis, quer queimar tudo, quer mudar o status quo, quer questionar, quer aprimorar: almeja atormentar os ceguetas, isto é, aqueles que não veem tudo como uma grandissíssima droga. Verdade seja dita: todos querem algo. Mesmo quem não quer mudar nada, dizendo-se satisfeito e achando que nada melhorará, pois tudo já está pra lá de bom, tem uma enorme ansiedade fóbica ao imaginar o chão abrindo-se sob seus pés e vê-se devorado por aquilo que não consegue controlar. 

Entra em cena voando alguma autoridade, de capa às costas, triscando no ar: uns evocaram Epicuro, outros evocaram Engels. Tanto faz quem é esse super-herói. Uns querem fechar os olhos, outros não conseguem adormecer e enlouquecem. Se epicuristas são adeptos do "se melhorar, estraga", um engeliano apostará no aforismo gêmeo e antagônico "pior que está, não fica". Calma, gente, que são autoridades senão atalhos que preguiçosamente tomamos para chegar a um veredito com o qual podemos dizer com toda cara de pau: "dane-se a realidade"?

A realidade é essa coisa confusa, agitada, em eterno fluxo heraclitiano, algo que não dá, simplesmente não dá para entender. Tem gente que a simplifica para deitar em berço esplêndido. Tem gente que só quer misturar o angu para ver se a transforma em algo minimamente uniforme. Todo mundo, porém, quer um rosto para o futuro. Um amanhã sem uma visagem é algo inadmissível. Mesmo quem busca a transcendência não suporta que o mundo à sua volta seja pura imanência sucumbente numa voragem.


E não falo só do mundo com seus efeitos estufa, poluições, permafrosts derretendocataclismas da diversidade do tipo "Folhelo Burgess" e tudo o mais que já conhecemos desde as extinções do Cambriano-Ordoviciano, do Ordoviciano-Siluriano, do Permiano-Triássica. Falo de gente. 

Era uma vez pessoas medidas pela sua virtude e coragem; passado muito tempo, na Idade Média, valia-se da alma para essa medição. Já no tempo dos românticos, o mensurável era a personalidade. Nós hoje, seres desse monstrengo da globalização, medimos os outros pelo "profile". Num perfil, como numa caricatura, não não importa o eu ou suas atitudes: detalhe inútil saber quem está lá! Hoje basta a intersecção das essências individuais. Já não há almas, só perfis. Ora, isso é revoltantemente redutor. Como não querer melhorar antes que os perfis completem seu trajeto e tornem-se silhuetas? Como dizer que não haverá estrago se, conscientes disso, não tentarmos melhorar nossa auto-estima, voltanto a ser seres completos, ex-perfis, de preferência bons, belos e justos. O ex-perfil é muito mais do que um Rousseau desejou para a humanidade com sua pretendida reeducação estapafúrdia, isto é, com a sublimação destrutiva do compositor fracassado que jaz nas suas entrelinhas. Vemo-nos de espada em riste, de novo, contra quem expressa o que está em epígrafe. Vemo-nos de novo hominídeos, saindo do berço africano para dominar os demais continentes, não com pequenos batalhões e armas poderosas, mas com batalhões enormes e com ideias na cabeça. Esses hominídeos foram os primeiros beatniks.

Mas o mais difícil de aparecer, de fato, é uma ideia nova, que mude tudo para melhor. E quando aparece, ninguém dá bola: o autor da ideia é desconhecido e acaba diluído, usurpado por um bonitão que faz uso da pena (melhor dizendo: do teclado), do poder ou do megafone, o qual a deformará monstruosamente. Ideias novas, aliás, atingem nosso planeta com a mesma frequência de asteroides. Nihil novi sub sole.

Assim sendo, melhorar é quase impossível; piorar, por outro lado, é facílimo, o que me faz concluir que, se melhorássemos, não estragaríamos nada. O paradoxo da expressão é o seu sucesso. Deixemo-la, portanto, em paz. Ela é bela por ser sintética. Dissecá-la numa análise cuidadosa faz-nos, contudo, ver a sua real beleza, escondida na mente do seu anônimo autor e na dos anônimos que burilaram a sua elocução... e a alteraram.

Feliz 2018!

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

PROPOSTA PARA SALVAR O MUNDO


Gosto de fumar um cigarro de palha debaixo de minha goiabeira e pensar em soluções para o mundo. Outro dia fiquei assim até escurecer e vi, na lâmpada de um poste, milhares de insetos: pequenos besouros, siriris, mariposas, debatendo-se, hipnotizados pela luz, cena tão prosaica que em nada acrescentaria à minha filosofia e à minha política se já sobre ela nesgas de pensamento não me houvessem cutucado.


A visão banal desse manufato-poste, imitação ridícula e quimérica do biofato-sol e do biofato-árvore, deu-me a luz necessária para achar a solução para salvar o planeta. Ora vos apresento, leitores. De graça.


Salvaremos o planeta se um dia os governos mundiais estiverem de acordo com o seguinte: proíbe-se a eletricidade das 19:00 às 5:00. Pronto. Simples assim. Essa suposta bênção, que se consubstanciou por Thomas Alva Edson na forma de lâmpadas, é a culpada de tudo.

Culpada não só de os meus queridos insetos se estatelarem e se carbonizarem buscando a luz tal como nós buscamos a paz ou a felicidade. Nossa mente insatisfeita de hominídeo só se preocuparia com o mal da luz elétrica se, hipnotizados, marchássemos inconscientes em direção a ela num suicídio involuntário tal como é o triste fim da vida desses pequenos artrópodes alados. Interromper a luz elétrica não faria só esse bem. Na verdade, atenuaria, pois insetos continuariam voando para lanternas movidas a pilhas, para fogueiras e para lampiões: não ficaríamos, com certeza, num escuro absoluto após a proibição. Decerto, como somos hominídeos, e, portanto, adoráveis e monstruosos, concederíamos que hospitais ainda tivessem as lâmpadas para bebês prematuros, assim como deveriam mantê-las acesas as granjas para a tortura das galinhas que nos alimentam. Tudo isso é de menos. Se podemos concordar que há algo de necessário na eletricidade para a manutenção de nosso status quo de reis do planeta, há dez mil vezes mais falta de necessidade dela à noite. 

Deixai de lado minha piedade para com os insetos, para que não me acuseis de pró-artrópode e portanto parcialíssimo. O que vos apresento, leitores, tem sim justeza e equilíbrio de raciocínio, senão vejamos.

Nós também estamos sendo atraídos, não por bulbos incandescentes, mas para telas, de computadores e smartphones. Nós estamos destilando o pior do nosso eu e isso não tem mais volta. Não quero propor nenhum tipo de proibição utópica contra isso. Não sou louco e sei das necessidades de destruição que se embrenham no nosso DNA. Mas pergunto se essa atração viciante precisa ser de fato algo que ocorra por vinte e quatro horas. O decreto universal do escuro obrigaria os malucos a comprar reatores e baterias potentes, cujo preço subiria estratosfericamente. Em algum momento futuro, passada a novidade da nova condição humana, mesmo os viciados nas telinhas veriam que não valeria a pena serem tão ansiosos e carregarem seus aparelhos durante o dia para usá-los no breu da noite primordial, nas saudosas trevas da origem das eras. Longas e maravilhosas trevas, que duraram milênios até o finzinho do século XIX. Como essa claridade eterna é recente!

Argumentareis que consequência imediata da falta de eletricidade à noite seria o aumento de incêndios nas cidades. Lampiões cairiam no chão, fogueiras descuidadas inflamariam tapumes, vigas, casas, quarteirões, bairros, cidades inteiras. Enfim, a impossibilidade da revogação da lei nos obrigaria a voltar a ser cautelosos. Menos ansiosos e mais cautelosos... vede, leitores, como já aparecem as vantagens, mesmo diante de uma face pintada como horrenda dessa incogitável lei que vos hipotetizo? 

E não param por aí as vantagens: a maioria se recolheria cedo, dormindo junto com o pôr do sol. Afagados pela sonolência do escuro, seríamos dominados pelos pensamentos incertos, pelo vaguear, pela mioclonia, nossas pupilas alternadamente se contrairiam e se dilatariam, anunciando a atividade onírica, recuperando nossa atividade física perdida no desgaste das opiniões exacerbadas que caracterizam o mundo pós-Facebook. Voltaríamos aos paradoxos dos sonhos, ao estado dissociativo natural que não requer droga alguma. Regressaríamos ao comedimento, ao estar de bem com o mundo, ao estar pronto para sua violência natural no despertar. Só dormindo sabemos diferenciar o banal do importante. Sem ele, não somos bichos, porque bichos dormem. Somos monstros, ávidos e sedentos por algo que queremos mais do que nossa própria vida e não sabemos o que é. Deixaremos de destruir o planeta se formos obrigados a não fazer nada e dormir.



Obviamente, há os contestadores. Os que pensarão que a lei é uma agressão à individualidade. A esses românticos, aconselho: matai-vos nas vossas esbórnias, tomai as vossas doses cavalares de absinto, sede coerentes com vossos spleens. Duvido que essa romanticalhada seja a maioria do ser que povoou o planeta. Se é, a maior culpada foi a luz, elétrica ou não, criada para quando o sol já se havia posto. Boêmios, bandidos e assassinos serão sempre minoria num mundo em que metade do dia são trevas absolutas. Quem se arriscará a sair no escuro pelas ruas com uma lanterna em semelhantes condições?

Sem a luz,  não haverá esse tantão de festas que alardeais sacar-vos do mundo, mas tampouco haverá telejornais que envenenam vosso sangue pré-coalhado à noite após a vossa estressante azáfama diária. Os YouTubes continuarão a destruir a nossa mente em nome da desejada onisciência, mas será só de dia. Sem programações inconclusivas na hora em que o sono REM deveria estar à toda, o hominídeo deixará de ser o idiota da contemporaneidade. Quem sabe redigirá uma nova Ilíada? Não há quem tenha capacidade de fazê-lo nos últimos séculos, tamanha a involução da nossa mente (que a Lei de Dollo me perdoe por dizer tal despautério).

Mas não só aos dorminhocos farei meu louvor. Decerto, o lusco-fusco tem seu valor como estímulo da mente. Mas essa beleza só se aprecia no limiar embriagado da melatonina. Afinal, não é uma passagens mais belas dos textos filosóficos aquela em que Niccolò di Bernardo dei Machiavelli narra numa carta a Francesco Vettori sua rotineira reverência à leitura, feita à noite, sob a luz de vela? Entrando no seu escritório, na virada do século XVI, sem o maquiavelismo característico que lhe incute o ícone-mãozinha-para-baixo das debiloides e engajadíssimas redes sociais, o fiorentino confessa que se despe de suas roupas suadas cotidianas e de suas botas sujas de lama, preparando-se para encontrar seus mortos amados, usando suas melhores roupas, de corte e de cerimônia. Decentemente trajado, é acolhido pela bondade dos homens do passado, que o alimentam com o único alimento que convém a um Homo dito sapiens, a única razão de ter uma vida individual e exclusiva: o conhecimento do que já se foi. A audácia, porém, de penetrar na alcova dos sábios é retribuída com tamanha humanidade que o filósofo não sente vergonha de dirigir-lhes a palavra. Esse momento de transcendência anula todo aborrecimento e desgosto a tal ponto de até a morte deixar de incomodar. A convivência quotidiana com o passado à meia-luz, portanto, no momento onirocrítico em que a vigília se transfunde em torpor, é o que mais se aproxima à entrada do Paraíso. Quanto disso se perdeu? Nosso panteão está vazio desde que a luz espantou o mistério. 


O torpor doce afastará os fantasmas. Descobriremos que não é na penumbra que vivem os lêmures e as assombrações. Mas na claridade eterna. O inferno deve ser assim. E o mundo moderno, por causa da eletricidade, é um preâmbulo da geena. Mil vezes o tormento goyesco em vez da claridade que tudo ilumina! O sono da razão produz monstros. De fato, não há razão sem sono.

Não só mariposas deixarão de se matar! Os corações demasiadamente hominídeos e sem piedade por esses vermes alados também devem refletir no que falo: imaginai, ó avaros, como a diminuição diária do consumo de energia encherá vossos bolsos. Será melhor do que o satânico consórcio já havido entre liberalismo e capitalismo! Com todos os homens relaxados, exceto os tarados incuráveis, haverá menos tensão de um contra o outro e não precisareis esconder-vos dentro de um batiscafo em fossas marítimas nem partir para outro planeta. Que capitalista e que liberalista ama a guerra exceto quem fabrica armas ou quem vende os despojos? Diminuído o número de maníacos frankensteinizados pelo Silicon Valley, há esperança, sim, na lei do apagão universal, em recuperar o lado verdadeiramente animal do homem, aquele que vale a pena, pois o lado hominídeo, esse, convenhamos, nos leva rapidamente para uma voragem sem fundo.

Meus caros, pensai bem: sem essa luz elétrica horrenda, veremos de novo as estrelas ora ofuscadas. Não há animal mais triste que o vaga-lume e os peixes abissais com lâmpadas acopladas no próprio corpo. Mesmo abençoados por sermos desprovido de luciferina, criamos holofotes para que só vejamos meio palmo diante de nós. Mas as trevas prometem-nos mais. Ressurgirá o infinito do céu e, com ele, a dimensão de que somos nada perante o universo. Esquecemo-nos disso. Cremos que não há mais luminares celestes e a lua hoje se perde no meio dos letreiros e outdoors iluminados. Que se apague tudo diariamente por dez horas! Há quem nunca tenha visto uma estrela cadente na vida. Reputo essa vida tão miserável quanto a de uma galinha enclausurada numa granja, subjugada na maktúbica condição desgalinácea de máquina de ovos.

E se, nessas condições, poder-se-ão ver melhor a lua e as estrelas, veremos também o sol comme il faut e valorizaremos cada minuto de sua luz. Talvez até tiremos a cara da tela também por causa disso. Por que não apostar nessa ficha? Se a vida é uma partida de poker, não temos o que perder. Nosso id já não precisará ser alimentado, concluiremos, pois não quereremos mais nos destruir com essa gana crescente do que inscientemente nos carece. Nosso id nunca fora antes tão obeso como o é hoje e, por isso, sabíamos diferenciar claramente o que é o mal. A luz elétrica fez que Ahura Mazda e Angra Mainyu se tornassem seres indistinguíveis.

A ininterrupta atividade das metrópoles, hoje mencionada de maneira orgulhosa, será vista como uma espécie de pesadelo no futuro, tão logo vejamos que a lei do escuro é de fato irrevogável por ser mais necessária à vida do que oxigênio. Voltaremos a enxergar melhor o rosto dos outros e saberemos de novo ler suas mentes. A sensação de falsa onipotência diminuirá. Nada como a escuridão para infundir o mistério em nossa alma. Se falta o mistério, bem sabeis, falta tudo ao ser que se diz humano. Não somos nem jamais seremos deuses, por mais que a retórica da eletricidade nos tenha conduzido a crê-lo.

Por que tanta claridade? Por que temos de enxergar tudo? Se fosse assim, deveríamos ter nascido morcegos, que, aliás, entendem melhor do mundo do que nós, por serem extremamente míopes.

terça-feira, 17 de outubro de 2017

SABE DE NADA, ONISCIENTE!

Há muito tempo eu penso na questão da onisciência. Não é algo tão fácil quanto explicar a onipotência e a onipresença. 

Há quem imagine que, na história humana, juntaram-se os atributos poderosos de todos os seres na forma de uma potência ilimitada na atuação de um Ser. Esse argumento parece razoável para explicar a onipotência: o Senhor das Guerras teve de ser aquele que dispusesse de forma ilimitada o potencial destrutivo dos hominídeos. A onipotência é um desejo exclusivamente humano.

A onipresença também é algo derivado de uma limitação, isto é, algo que está ligado com a consciência do limite de não poder estar em toda parte ao mesmo tempo. Assim sendo, lida-se com a onipresença quando se tem a capacidade de assumir empaticamente o ponto de vista do outro, algo que, não é só humano, mas também está visivelmente na mente de mamíferos carnívoros e aves de rapina. 

Dito de outro modo, só o Homo sapiens quis ser onipotente, mas há muito tempo na Terra os bichos almejam a onipresença, quer para atacar, quer para fugir de quem ataca. 

E a onisciência? Esta, penso eu, é ainda mais primitiva, compartilhada até mesmo com animais unicelulares, desde que não sejam sésseis como corais, anêmonas, esponjas do mar e cracas adultas. Uma planária sabe que levou um choque do cientista e, como não gostou dele, consegue prever um choque futuro mediante a apresentação de um mesmo estímulo. Dito de outro modo, há algo ali em sua memória além do mero condicionamento, em alerta para evitar a dor vivenciada. Sou tentado a acreditar que o que há na memória das planárias é uma pretensão à onisciência, igualzinha à nossa.


Qual a necessidade para a vida de desejar a onisciência? O ser que se julga onisciente se autoilude. Esse candidato a onisciente, aparentemente, pensa que sabe tudo e arrisca-se andando pelo mundo em vez de ficar paradinho, como planta ou anêmona. Mas saber tudo é obviamente tão impossível quanto ter todo o poder para si ou estar em toda parte.

Ser onisciente é algo como a fórmula de Laplace, é como acompanhar os desvarios de Pascal. A onisciência é aquilo que foi deixado de lado por irracionais mais espertos, que apostaram numa onipresençazinha a cada emboscada. Para começarmos a imaginar o que vem a ser a onisciência de fato, seria preciso entender o que é uma onividência total e atemporal: isso é mais fácil do que imaginar a onissensciência de quem sente todos os cheiros presentes, pretéritos e futuros do universo ou ouve todos os sons atuais, já produzidos e que se produzirão pela eternidade adentro ou tem todas as sensações táteis de tudo ao mesmo tempo numa espécie de oniexperiência infinita. Isso tudo, ao mesmo tempo! O onisciente conheceria as profundezas do núcleo atômico rumo aos contornos do universo, conhecendo tudo desde a pespectiva de um ácaro, de um besouro, de um rato, de uma águia, de um ser humano ou até mesmo de um Galactus, ou daquele extraterrestre de Men in black que quer a galáxia que está na coleira de um gato, ou, pior, de um ser superior que tudo sabe porque tudo sente não sei com que sentidos: haja sistema nervoso para esse ser!
 
Mas tua mulher saiu triste e voltou toda sorridente e nem isto tu sabes explicar. Sai de teu plano filosófico e põe os pés na terra! De onde veio essa ideia absurda da onisciência? Da ingênua ciência não foi, pois antes dela a solene religião já falava disso e, penso, nem foi a religião a responsável por este conceito, já que estava nas premissas filosóficas. Teve a filosofia algum início? Talvez na arte? Mas a arte não nasceu da transformação da superstição em rotina, as quais se fundam no medo? Na verdade, não há nada que acompanha mais as espécies que representam a vida terrestre do que o medo. E isso não é prerrogativa humana, de jeito nenhum: medo até os seres mais primitivos têm: toca-se um besouro e ele finge de morto, mexe-se de leve na água e o peixinho foge como louco, toca-se a teia de uma aranha e ela, estranhando a tensão exagerada de um dedo humano, corre na direção contrária à de que se a teia tivesse sido tocada pelo movimento de uma potencial vítima, como uma mosca. Foi o medo que fez pelos urticantes nascerem em lagartas, fez feras terem presas agudas, fez as cobras e sapos serem venenosos, fez até plantas criarem espinhos e bioquímica poderosa em suas folhas para evitar que suas folhas fossem comidas. O medo, portanto, é muito antigo, pois até vegetais têm medo: apareceu bem antes da consciência e de encéfalos rombudos. Se não foi a ciência, a religião, a filosofia, a arte, a superstição, mas o medo que nos enrolou no poço viscoso da onisciência, que pode ser mais primitivo que o medo para gerá-lo em nós, criaturas vivas? Desconfio que haja algo mais primitivo que o medo: o pool genético da vida já é onisciente. Até vírus talvez tenham, com toda probabilidade, a onisciência dentro de si.


Se não, vejamos: acidentes históricos da evolução explicam o desenvolvimento de pinças e presas, de comportamento voraz e agressivo, de uma mente planejadora ou de veneno nas folhas, de espinhos, da capacidade de enrolar-se nos tatus, de patas aptas a fugir nas gazelas, de uma mente atenta ao menor ruído. Antes de o indivíduo nascer, o medo é a condição que norteia o seu corpo, seja como presa, seja como predador. Os genes já contam com o medo para o sucesso de sua cega transmissão. Os genes já sabem que o medo é um dos integrantes mais importante do mundo em que o indivíduo viverá por alguns minutos. A onisciência é quase um problema de química! Mas como os genes podem saber se o medo é algo que se vivencia? O macaco pequeno não tem medo do rabo da jaguatirica, mas só o adquire depois de puxar-lhe o rabo. Mesmo se for devorado por ela, experimentará o medo entre o puxão enxerido e a corrida para fugir do feroz felino. Se o macaco tem de vivenciar o medo para aprender o que é o medo, para lidar com ele pela primeira vez, como seus genes de antemão o prepararam com agilidade, braços longos e fortes para se pendurar num galho, voz estridente e cauda preênsil que se torna um quinto membro além das patas? O medo preexistia antes de ser vivenciado? O medo, onisciente de que a cena da jaguatirica existiria um dia ou teria chance de existir, já lhe equipou com o reconhecimento da situação e com o mecanismo de fuga como reação? Como assim? Há informações dos genes da jaguatirica nos genes do macaco? Ou pior, há abstrações como "predadores" nessas informações, que são um punhado de moléculas? Como o ambiente, o mundo e seus componentes poderiam, de alguma forma, selecionar o que é bom para se continuar vivo? Há julgamentos de valor nos genes? A onisciência então se limita a experiências possíveis entre macacos e jaguatiricas, nativos do mesmo ambiente, e nunca entre seres que não se encontrariam jamais na natureza (embora sejam vistos no mesmo ambiente de um zoológico) tais como um rinoceronte e um bicho preguiça? A jaguatirica estaria codificada no gene do macaco bugio mas não no do chimpanzé? Ou um conceito abstrato de felino, que inclui jaguatiricas e leopardos, vindo talvez do mundo das ideias, é conhecido pelo sabichão do gene? Se tudo isso parece absurdo, há limites na onisciência, mas, nesse caso, que sentido faz chamá-la de onisciência? Existe semionisciência? Onisciência parcial? Onisciência pero no mucha?

Dirá alguém que não são os genes que são oniscientes, mas o Arquiteto dos genes, que conhece o mundo e dá genes de chimpanzé a chimpanzés e genes de rinoceronte a rinocerontes. Mas por que faria isso? A resposta a essa pergunta só um ser ainda mais onisciente saberia. E duvido que alguém tenha a resposta. Nesse caso, é melhor só vislumbrar o mundo, pois a explicação seria muito ruim. E de fato, misturar fé com explicação racional é uma combinação pior que aliche com doce de leite.

E faz sentido falar de mais ou menos onisciente ou de limitações de onisciência? Obviamente não. Melhor pensar que a onisciência é mais um dos muitos saci-pererês da mente, impulsionados por essa informação que vem de algum modo dos genes. Aliás, a onisciência é viciada em informações. E informações se acumulam hoje diariamente na internet. Aparentemente nunca soubemos tanto sobre nós mesmos quanto hoje. E a tendência é aumentar de forma gigantesca. Isso todo mundo sabe. Será certo dizer "aumentar de forma ilimitada"? Não, a menos que fôssemos oniscientes e sabemos que não somos, apesar de, como as amebas, ácaros, hienas e cucos, pensarmos que somos. 

O aumento ilimitado de informação seria saber absolutamente tudo: os fundamentos que norteiam o espectro de radiação do corpo negro, as raízes do Efeito Compton, o sentido da equipartição de energia, a compreensão perfeita da não-localidade quântica, a intimidade com os bósons, detalhamentos precisos do universo primordial, descrição exata dos quasares, o elo entre a matéria e os archaea, as evidências lógicas do surgimento dos organismos eucarióticos, a reportagem sobre o primeiro ser alado, o passo-a-passo da tolerância a lactose, a conversa que o rei Sin-shar-ishkun teve com sua concubina voluptuosa em 17 de março de 614 a.C. e até mesmo o que fez teu filho durante a hora em que se trancou no banheiro. Convenhamos: é preciso de uma mente, mesmo artificial, para saber absolutamente tudo? A mente não serve para ALGUMA COISA justamente porque NÃO sabemos tudo? Saber tudo significa jogar a mente na lixeira, por pura inutilidade.


Saber tudo-tudo, portanto, é prova de demência. Por um lado, os genes sabem em que mundo e em que experiências o indivíduo vai se meter e protege-o como uma mãe coruja, mesmo que um gene nunca tenha sido um indivíduo para fugir de uma jaguatirica, por outro lado, um gene me parece bastante destituído de mente. Se o pré-requisito para saber algo é ter uma mente, o pré-requisito para saber tudo parece ser totalmente destituído dela. Escolhamos: queremos ter uma mente ou ter onisciência?

Afundar na matéria ou para além dela é o pré-requisito para adquirir o conhecimento cósmico e universal, qualquer místico sabe disso. Dito de outra forma, a vida é o primeiro entrave para a onisciência. Só os enxames de fótons, glúons, quarks e neutrinos parecem saber direitinho o que fazem, com ou sem gatos de Schrödinger, com ou sem mecânica, com ou sem intenção, com ou sem finalidade, com ou sem causa alguma. No nível da química, tal informação já parece ser problemática. E nós, nos níveis biológicos e sociais, como ficamos? Entra o estraga-prazer em cena e diz com voz bem grossa: all we are is dust in the wind.

Mas, peraí! Se é assim, não basta ler Eclesiastes, tomar um pileque e ficar no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar? Sim, meu caro, se concordou é porque teu desejo de onisciência é maior do que teu desejo de viver.

Para aquele que pensa que ter onisciência não quer dizer nada ou porque não entende o problema ou porque nunca pensou nele, para aquele ignorante cujo pouco que sabe basta, para aquele que curte conhecer sempre mais sem desejar a demência da onisciência, sobretudo para aquele que sabe que é limitado e não idiota o suficiente para imaginar que já é onisciente, em suma, para esses seres iluminados há outra toada e outro conselho: não um carpe diem, dito por uma caveira sarcástica, mas a proposta concreta de um gozo orgástico. Merece, por ter sido sensível o suficiente para perceber que conseguiu abrir os olhos hoje de manhã, que é um ser livre, que é um ser saudável, que não tem preocupações com alguém que queira matá-lo hoje. Não fazer essa oração prova a nossa ingratidão com a vida. Quase ninguém a faz, preocupado logo de manhã com sua onisciência fantasiada ou com a onisciência alheia. Infeliz deveria ser, teoricamente, só quem não pode de fato fazer tal oração de maneira sincera por estar realmente preso nas amarras de um destino nefando. E não me venhas dizer que não há infelicidade pior do que o de uma cabeça sensível à tristeza desses infelizes no mundo. Se pensas assim, vá ouvir Kansas ou ler Eclesiastes. Mas faça isso não por um segundinho, só para imaginares orgulhosamente que és iluminados: terás de ouvir Kansas e ler Eclesiastes o dia todo até desmaiares exausto no teu sono: assim me provarás que não és um hipócrita! 

Se conseguires, parabéns, és um caso clínico bem severo.

domingo, 17 de setembro de 2017

MEU AMIGO VOADOR

Eu tenho um amigo que voa.

Um dia fui ao canyon do Itaimbezinho com ele. Na beiradinha, incentivou-me a pular; queria que eu o acompanhasse. Relutei e na hora H desisti, obviamente. Ele pulou sem paraquedas, sem asa delta, sem wingsuit. E voou; eu não. Pena que não vi, porque virei o rosto na hora. Não tive coragem sequer de vê-lo planando como um esquilo voador.

Confesso que muitas vezes detecto algum cinismo ou deboche nas palavras de meu amigo, mas ele se intrometeu na minha vida, sem me lembrar como ou mesmo sem saber se o convidei, e acabou sendo razão de minha admiração e de meu tédio pelas suas excentricidades. Não se trata de uma amizade parecida com a de Rheinold por Franz Biberkopf, nada disso! Não haveria nem admiração nem tédio se não fosse meu amigo. Por isso, acho de bom tom resignar-me com esse inegável fado de Moira: círculos que permeiam nossas vidas advêm do acaso. Antes que te insurjas contra minha resignação, leitor, lembro-te que nem mesmo beatniks, enfrentando o acaso, conseguiram quebrar esses círculos. O limite entre tudo que amamos e o que nos é insuportável nem sempre é muito nítido.
É assim também com meu amigo voador, que fala comigo animadamente e aos berros. Ele diz que esteve na Guerra de Troia e que deu a ideia do cavalo de madeira a Odisseu. Não tenho por que duvidar; afinal, é meu amigo.



Ele decifrou todos os códigos, compôs todos os poemas e canções, inventou todos os manjares dos melhores livros de culinária. Praticamente tudo, descubro diariamente, foi criado por meio de uma dica dele. Mais detalhes não consigo obter: além de palpiteiro, é muito vago. Aparentemente nunca saiu da sua boca algo que não se tornasse ato alheio.
Sendo assim, imaginas, deve ser impertinentíssimo e, sem dúvida, o é. Não me permite sossego. Acha que a chatice é a coisa mais chata do mundo e, didático, explica que não toma chá justamente por isso, pois a palavra "chatice" vem da palavra "chá", segundo sofisticadas teorias que elabora.
Perguntado por que é tão tagarela, discorrerá horas a fio, esclarecendo que foi ele, sim, justamente ele, quem desatou o nó da língua de um engraçado macaco pelado que vagava sobre a Terra quando chegou com sua astronave. Sim, foi meu amigo quem ensinou todo mundo a falar!
Intrigado com sua idade, pergunto-lhe se esteve no momento do Big Bang. Sobre esse assunto ele normalmente desconversa. Aliás, age desse modo toda vez que não sabe do que se trata. Nessas horas é que me dá vontade de mostrar-lhe que ele tem sim limitações. Desse assunto ele também não gosta e desconversa de novo.

E quando desconversa, entra às vezes num transe doido e pula malucamente e dança e ri de tal modo que ninguém consegue fazê-lo parar. Rejuvenil, esse ser de tantos milhões de anos de idade, não está nem aí para argumentos, conveniências ou imperativos categóricos. Mas às vezes não age dessa forma tresloucada. E quando isso ocorre, começa a falar invariavelmente de coisas misteriosas. Intriga-lhe a beleza e a complexidade da essência que há nO Brócolis, que, para ele, é o que há de mais perfeito. Se lhe pergunto se o tal brócolis a que se refere é uma criatura inatingível, enfurece-se, pois O Brócolis, para ele, não é uma criatura e entendo - vagamente, é verdade - que o que chama de "Brócolis" é algo para além daquilo que nossa percepção e razão possam atingir. O estranho é que O Brócolis, subsumindo a essência de tudo, apesar de inexplicável, lhe seja algo tão claro e familiar. Se alguém tenta voltar à razão terrestre e afirma que brócolis são apenas plantas que servem para alimento como várias outras e, portanto, coisas, fica indignadíssimo pois comer Brócolis para ele é uma heresia incompreensível, grotesca e despeitadamente horrenda. A menção de um brocolicídio faz meu amigo desmaiar e chorar por meses a fio. Não se esquece de tal blasfêmia e não perdoa jamais tal sacrilégio: a partir de então, quem disse algo parecido é seu inimigo eterno. Percebendo esse comportamento, tomo todo cuidado e converso com ele sobre esse assunto com todo tato. Ninguém quer ferir as sensibilidades de um amigo, embora não as compreenda plenamente.


Ele diz que tudo que afirma é o normal. Quem sou eu para discordar? Pergunta ele. Parece que a certeza que emana de todas suas afirmações o torna onipresente. Mais de uma vez percebi isso, embora seja a primeira vez que compartilhe contigo, leitor. E é nas palavras dele que acabo sempre procurando alguma resposta a questões que me inquietam. Essas respostas por vezes me parecem sábias e reconfortantes, por vezes enigmáticas, por vezes pura lengalenga.

Mas ele não se importa de fato com o que eu acho. Afinal, ele sempre tem razão. E o bom-senso dele é o único que está certo. Disso eu também não duvido. Se não fosse assim, por que o que fala soa tão seguro? Uma vez foi tachado de megalomaníaco. Defendeu-se com um argumento - segundo ele, apropriadíssimo e brilhante - que ele é a pessoa mais modesta do mundo e com isso encerra bruscamente a conversa, não sem exigir aplausos.

Certa vez, perguntei-lhe por que sempre se veste de palhaço e, entre espantado e furioso, esclareceu-me que eu estava equivocado e que seus tufos laterais de cabelo, o pompom sobre seu chapéu em formato de brócolis, o seu nariz de bolinha vermelha nada têm a ver com os clowns, pois é assim que devia ser todo mundo. E eu sinceramente lamentei, tal foi sua bela argumentação, que toda gente não vestíssemos tal indumentária.

E o preconceito que esse ser me evocava às vezes, simplesmente por parecer ridículo e engraçadamente prepotente, acabou por esvair-se totalmente. De fantoche do humor alheio passou a ser necessidade de minha sobrevivência, mais importante que o dinheiro, a felicidade e a vida.

Se me perguntarem de que planeta ele veio, não saberia dizer. Seus atos são muitas vezes reprováveis, concederia a quem não o suporta; seu cinismo é de fato irritante. Por ele, todos faríamos o que ele julga certo: adorariam os brócolis, voariam, seriam onipresentes, comeriam beija-flores e (desconfio) os gatos que comem os beija-flores. Nesse ponto, meu amigo é voraz como um louva-a-deus. Sobre esse lado sinistro de meu amigo, ele não gosta de falar muito, a menos que o aprove. Apenas desconfio que ele nasceu bom, milhões de anos atrás, mas perverteu-o inconscientemente a sociedade, mais especificamente um programa de TV sobre um extraterrestre teimoso comedor de gatos, ou alguns YouTubes reprováveis. Exime-se sua culpa de novo, afinal, ele é tão simpático que esse defeitinho não o desmerece. Foi assim que Biberkopf perdeu o braço? Às vezes me atormenta essa dúvida nas minhas crises de insônia.



Se lhe disseres que ele tem defeitos, leitor, justamente ele, o modelo do bom-senso, frustradíssimo por não ser compreendido, chorará de dar dó. Perdoamo-lo rapidamente. Mas, simpatizando-se com ele, alguém lhe dirá que deveria deixar de ser cabeçudo e aprender novas coisas, pois só os milhões de anos de experiência não lhe bastam para ter tamanha arrogância. Sim, por vezes, vejo seu pompom atrás do vaso de flores, numa de suas patéticas simulações de que está frequentando uma escola: apesar de não enganar ninguém, está certo que seu disfarce é perfeito. Mas basta dizer-lhe que não caio nas suas tramoias e ele, após olhar-me espantado, dança e ri.

Uma hora, creio, vou dançar junto para ver o que dá. Quem sabe, assim eu descubra a essência dO Brócolis e as infinitas verdades da Brocolística, abscônditas e inacessíveis.


sexta-feira, 18 de agosto de 2017

QUER SER MEU SÓCIO?

Dizem que o homem nasce bom e a sociedade o perverte. Houve quem acreditasse e acredite nisso piamente. Todos somos anjos nascidos na Terra, novos adões esperando para cometer seu primeiro pecado que macule a nossa alma. Se dependesse de nós mesmos, nosso estado de pureza seria mantido eternamente, mas eis que encontramos as más companhias, eis que desenvolvemos complexos de Édipo, eis que outro nos perverte, eis que a sociedade é injusta e nos obriga a fazer o mal. Esse raciocínio vitimizante adquiriu sua formalização na forma mais completa nos lamentos de Rousseau. 


Por mais bonita que seja a ideia da bondade inerente ao homem, nada impede de pensarmos exatamente o contrário: o homem nasce mau e a sociedade o domestica. Na verdade, essa polarização retórica é ridícula, pois bom e mau são termos radicais. Mas fato é que um homem não nasce com valores sociais na sua alma, pois quem lhes ensinará esses valores sociais é a sociedade. E se ela é má, só lhe ensinará maldade e nada bom. Se, por algum motivo, não admitirmos isso, concluiremos que os valores sociais são inatos. Ora, verdadeiros relativistas não concordariam com o inatismo de valores humanos porque para ser relativista é preciso acreditar na tabula rasa. No máximo, um relativista acreditará que exista DNA, embora eu creia que haja muitos que nem mesmo em genética acreditem. Um não-relativista dirá que, sim, há coisas universais. Será que esses universalistas também acreditam numa bondade transmitida pelo DNA? Se sim, Rousseau era um precursor do universalismo e contrário ao relativismo.

Fato é que os relativistas estão certos quando dizem que é o bom para uma cultura não o é para outra. O que haveria de universal seria apenas um conceito de "bondade", moldável de sociedade para sociedade; algo dificilmente intertraduzível. Se, num tempo e num espaço específicos, ser bom é ser valente, ser sanguinário, ser caridoso, ser bonito, ser fiel ao Estado, ser fiel à sua família, é amar o próximo, é ser objetivo, enfim, não sabemos o que é ser bom. A bondade, por mais amarrada que esteja num discurso, num nível universal é uma tremenda miscelânea de contradições.


Concluímos: a bondade é algo que depende da sociedade que nos diz o que é bom e o que não é. Não há uma coisa universalmente entendida como bondade e disso já sabia Montaigne.

Ok, as sociedades são múltiplas não só entre si, mas dentro de si. Numa mesma sociedade convivem o altruísta e o egoísta. Ambos ouviram os mesmos discursos, na mesma língua, então como é possível que não vivamos harmonicamente como abelhas? Harari nos diz que numa colmeia há a abelha rainha, abelhas operárias com funções diversas, mas não há abelhas advogadas. O advogado só existe na nossa espécie para conciliar os vários discursos internos de nossa sociedade, sejam os sermões alienígenas, sejam os que nós mesmos criamos. Assim, se o bom não existe universalmente, existe claramente numa sociedade, embora não seja o norte de todos os indivíduos. E o bom numa sociedade heterogênea já foi formalizado desde Hamurabi.

Não há abelhas operárias que façam greve ou que furem greve, não há abelhas operárias que questionem a rainha ou estejam do lado dela, não há abelhas operárias que reivindiquem seus direitos ou que estão satisfeitas com eles, não há crimes passionais entre elas, nem mentiras, nem frustrações, nem injustiça. Muito diferente é a sociedade humana, onde há antagonismo, insatisfação e fraude.

Ou seja, essa história de que o homem nasce bom e que se torna mau por causa do outro é uma tremenda balela e o início do declínio da filosofia ocidental. Abriu porta à picaretagem e à análise de baixa qualidade que abundaria nos discursos filosóficos franceses e alemães do Romantismo e se estendeu século XX afora até hoje.

O homem nasce um bicho. Um bicho muitíssimo indefeso, pelado e cabeçudo. Diferentemente de um gnu, que tem alguns minutos para ficar de pé e acompanhar sua mãe e a manada, senão é abandonado por todos, o homem é de uma fragilidade espantosa. Sem um adulto que o acolha, não sobrevive um dia sequer. Isso não é exclusividade da nossa espécie, obviamente, pois praticamente todas as aves e mamíferos requerem atenções maternas ou de uma vice-mãe.


Mas o que impressiona no homem (além de tomar leite de outra espécie diferente da sua por toda sua vida) é a quantidade de tempo dessa atenção requerida. Hoje em dia essa atenção está por volta dos 30 anos e o ser neotênico, mesmo assim, ainda não se torna adulto e não entende sua função no mundo! Coisa indigna de um ser que se autointitula sábio. 

E toda essa atenção é mais que uma espécie de parasitismo. Além da cozinha e do quarto onde se aloja como um caranguejo ermitão, o bicho homem vive não porque sua placenta foi rapidamente digerida pela mãe, mas respira idealismos e discursos que vêm cada vez mais de pessoas fora do círculo de sua toca. Os iguais nunca estiveram tão unidos. Do outro lado do mundo haverá um chinês que gosta de comer feijão com goiabada, como eu; no Polo Norte há um esquimó que é fã de um conjunto de rock progressivo que pouca gente conhece. Estamos encantados encontrando nossas almas gêmeas aqui e ali. Pensamos que isso é uma elevação no gráfico de Vico: eis que o homem se aproxima da curva projetada por Deus para nosso bem? Pare de olhar para cima e veja o imenso fosso debaixo de seus pés, ó nefelibata!

Eis aí a nova sociedade! Não mais os nossos pais, nossos colegas de escola, nossos professores, nossos políticos, mas aqueles que dizem que eu estou certo, aqueles que apoiam nossos gostos, aqueles que sempre estão com a mão aberta para nos fazer cafuné e comer nossa placenta enroscada. A antiga sociedade não nos corrompia, mas nos domesticava. Pequeninos, demos uma martelada sem querer no dedo de nosso amiguinho e ele chorou. Achamos engraçado a cara de dor dele e nosso humor se fixou em gente que chora quando leva martelada. Mas aprendemos que isso é muito feio e não se deve fazer de propósito: é pecado, é crime, é indigno de alguém que queira viver em sociedade. A reprovação ou, se quiserem, o superego estava ali, sempre nos controlando e só a arte permitia que nosso id saísse e ríamos vendo Chaplin levar uma martelada na cabeça. Marteladas de verdade não, mas na ficção está valendo, ok? A ficção sempre foi a válvula de escape de nosso id reprovável, pois o seu contrário - a realidade - estava sempre, dedo em riste, dizendo-nos: é pecado, é crime, é indigno de quem quer viver em sociedade. Mas esta era a antiga sociedade.

A nova sociedade não é assim. Podemos afiliar-nos a um grupo de pessoas que adoram martelar os dedos dos outros. Id para quê? Não é mais ficção e é válido porque há duzentos afiliados, portanto é uma coisa normal. Nós, antes confinados no nosso secreto desejo, só somos mais um deles e podemos escancaradamente revelar nossos gostos e (por que não?) até mesmo questionar se martelar os outros não é uma opção válida e um estilo de vida louvável. Essa nova família a que entregamos nossa alma, na antiga sociedade, era, quando muito, uma religião, na qual os parentes poderiam ser desconsiderados em prol da Verdade revelada. Ou então em comunidades mais ou menos secretas, o que dava na mesma. Hoje, o secreto saiu de moda. Escancara-se em camisetas, em slogans, em frases estereotipadas: "eu sou mais eu porque em mim não reside nada mais de genética, sou puro fruto dos memes que aprecio, sou apenas um discurso que não se preocupa com coesão, porque coesão é coisa da sociedade antiga". Na sociedade moderna, não há coesão, apenas associação e o norte é meu bom-senso, aquela coisa que todo mundo sabe o que é. Podemos ser vampiristas que curtem gospel, podemos ser metaleiros que cultivam rosas, podemos ser padeiros que flertam com o terrorismo. Sua obsessão é rapidamente recompensada. Não há mais superego, não há mais mecanismos de controle e repressão. O caos se instalou e estamos todos atônitos, pois, se, antes, nunca houve como entender o outro, agora sim, Sarte, não querendo ser profeta, foi-o: o inferno são literalmente os outros.

A sociedade antiga era paradigmática e nesse fosso viviam os antagonismos em conflito. A sociedade moderna é horizontal e os elos que prendem os indivíduos são homogêneos, o que deixa a convivência muitíssimo mais insuportável. Não é nessa sociedade que faz o homem, que já nasce bicho, tornar-se ainda mais desumano? Rousseau tampouco queria profetizar.

Não, não, não. O que há, como dissemos, são discursos. Antes vindos de casa, da sociedade circunjacente, com metas e com ameaças, diziam-nos claramente o que é bom e o que é mau para aceitar ou refutar. Hoje tudo é bom, tudo é válido, tudo é permitido, em suma: de certo modo estamos diante da vitória absoluta do relativismo. Por outro lado, tudo é mau, tudo é insuficiente, tudo é reprovável, tudo é questionável, o que de certa forma, é dito por quem tem acesso ao plano das ideias eternas. E isso é exatamente o contrário do relativismo. 


Tanto o relativismo ingênuo e florido, quanto o universalismo intolerante e mau-humorado são as marcas de nosso tempo enlouquecido. Não esperamos que o mal exista, mas ele está mais presente do que nunca. Não achamos que algo seja bom absolutamente, mas sabemos o caminho de tudo. Esse desconcerto patético é o que nos lança, no gráfico de Vico para as profundezas infernais de um beco sem saída.

Talvez os adjetivos sejam mais importantes que os substantivos neste caso. Em vez de o relativismo empunhar sua espada e o universalismo, seu escudo, por que não questionar exatamente a ingenuidade festiva e a intolerância ranzinza de nossos dias?  Talvez o passado tenha já ensinado em crises menos agudas a como sair desse labirinto. 

No meu modesto modo de ver as coisas, o mundo atual não é mais para ingênuos. O mundo atual exige que se pare a festa para balanço. O mundo atual exige que sejamos mais tolerantes. O mundo atual implora para que sejamos mais bem-humorados. E para isso precisamos ser inteligentes. Como não há ironia burra, não há paradoxo belo com um cérebro preguiçoso, funcionando com as muletas das comodidades atuais. Sem abrir um livro, veremos o mundo explodir.

O mundo atual, infelizmente, hoje se divide entre pessoas relaxadas caminhando na Rambla e assassinos ferozes que as atropelam. A tristeza não pode ser a regra, caso contrário, o suicídio é o caminho. Para que a felicidade se reinstaure, a punição deve voltar a existir e nessa hora, todos os que não se perderam no maldito meandro de retóricas alucinadas estão convidados a ser sócios desta novíssima sociedade que proponho. Mas para que isso aconteça, devemos deixar de ser ingênuos e bobos: isso significa parar de nos alimentarmos com fofocas e discernir o que nos faz sentido e o que compramos nos últimos anos como nossa segunda natureza. Devemos exigir, por exemplo, coisas simples, como uma imprensa que não divulgue nomes de malfeitores nem os trate por apelidos carinhosos. Nada é mais evidente do que o fato de que uma imagem em breve valerá mais que o dinheiro. Se o dinheiro mudou a face da Terra, que fará a imagem?

Finalmente, será resolvido o mais antigo enigma, o da existência: se existir hoje é ter seu nome eternizado no mundo virtual, não sejamos bobos e não deixemos que isso aconteça. Se assassinos forem pessoas anônimas, sem rosto na imprensa e na internet, deixarão automaticamente de existir, senão, sorridentes e glamourosos, ainda vão dizer que são vítimas da sociedade (Rousseau, 1762), como o fulano que matou setenta na Noruega e como o protagonista de A Clockwork Orange, nas suas cenas finais, recebendo comida na boca, em seu leito de hospital.

segunda-feira, 31 de julho de 2017

QUANTOS VAZIOS EXISTENCIAIS TU TENS?

Não, querido leitor, tua frase não é "sou feliz porque tenho isto". O que te dirige neste mundo, dentro da espécie que representas é exatamente o oposto: "não sou feliz porque não tenho aquilo". Se isto se opõe àquilo, diremos que temos uma disjunção exclusiva: ou se tem isto ou se tem aquilo e não podemos ter as duas coisas. Mas o que norteia o meu pensamento não é a exclusão em si, mas o que não se possui. Sim, quero provar que é impossível ser feliz. Mas não agora.

Ainda no raciocínio excludente, se a posse de um algo se opõe à não-posse do outro algo, eu digo que tenho isto mas não tenho aquilo? Pelo nosso raciocínio hominídeo, não: eu tenho, na verdade, duas coisas. Tenho um algo e tenho o vazio do outro algo. Ter o vazio de uma coisa equivale, portanto, não a dizer que não se tem uma coisa, mas que se tem a carência de uma coisa, portanto, tem-se algo. Complicado? Não, logo vais saber do que estou falando.

Acontece que o que nos falta é sempre o principal. É o que temos de mais precioso. O nosso vazio. 

O raciocínio excludente, porém, é muito limitado. Ou se é pobre, ou se é rico; ou loquaz, ou lacônico; ou inteligente, ou desfavorecido de perspicácia. Parece que um dos lados da gangorra pende mais para baixo, elevando o outro. Ilusão. O pobre pode querer ser rico, mas haverá o momento que sua auto-estima dirá que é melhor ser pobre; o rico adora não ser pobre, mas idealiza, na arte e na filosofia, uma vida de pobreza que não existe. Até mesmo o cultíssimo Sócrates simulava tão perfeitamente ser pascóvio que chegava a sentir a burrice que um burro deveras sente. O vazio, portanto, cria não só a inveja, mas também a idealização daquilo que não se possui. O não ter é mais diversificado do que o ter.



Se não possuo o fundo do oceano, construo um batiscafo; se meu jardim não termina nos confins do universo, mando uma sonda espacial que se vale da gravidade de um planeta gigante para lançá-la no infinito e além, cada vez mais perto daquilo que nunca será atingido. Esse movimento centrípeto fez o caçador-coletor abraçar a agricultura, que Yuval Harari chama de fraudulenta e que criou o poder da desigualdade, a mortalidade infantil, as invasões e tudo o mais que caracteriza a história humana. A cada passo, o homem desumaniza-se após flertar a consciência de sua humanidade. Negar o óbvio sempre foi a nossa especialidade, mas fazemos sempre isso tão facilmente e por tão poucos vinténs, que é possível especular sem medo de errar se a carência humana não é mais vasta que todos os universos imagináveis.

E nessa carência cabem tantos vazios! Um imenso conjunto de vazios, que em nada se assemelha àquilo que postulam os matemáticos! Deve ser por isso que a imensidão do oceano nos reconforta, que o verde da mata infinita nos funde com a natureza, que o pôr-do-sol num horizonte longínquo seja sinônimo de paz: a beatitude está na natureza porque, para variar, o homem pensa que ela é espelho do seus abismos colossais. Mas não é. A natureza tem suas regras e caprichos: o sol não se preocupará com ser vivo algum quando explodir um dia, na forma de supernova.

Como é transitória a felicidade. É um fato admirável imaginar que aquilo que nos faz um bem imenso possa nos entediar no minuto seguinte. É uma coisa assombrosa imaginar que o além é sempre mais importante que o aqui e o agora. Quem resiste a uma mudançazinha?

Dirás que sou contraditório com que disse outras vezes, pois tanto já louvei o movimento incessante heraclitiano. Contudo, leitor, desta vez, não tens razão: não é a modorra platônica que agora estou incensando. Até porque a mudança promovida pelo vazio não é natural e necessária, pelo contrário, é vontade, pura contingência! É dessa vontade que estou falando.

A vontade existe, mais do que qualquer coisa. Misteriosíssima, ela está no fulcro de nossas mentes. Não se trata da vontade schopenhaueriana de que falo, algo radicalmente entranhado no ser. É da vontade mesma, aquela que é fruto de um raciocínio ou de um desraciocínio. Algo inevitável para quem está vivo e sobretudo dos andarilhos que deixaram de ser planta e anêmona. A vontade é algo que equivale à vida tanto quanto a percepção e o pensamento. Na vontade está sempre uma antítese ridícula. E é essa antítese, que conjecturo inexistente nos homens de Neanderthal, que talvez os tenha feito desaparecer do planeta.

Há tempos que penso que nossos colegas do gênero Homo, sem o córtex prefrontal suficientemente exagerado, não tinham vontade. Sua expressão era fruto de uma memória e seus signos só significavam aquilo que de fato é, como ocorre nas hienas e nas narcejas.

Mas se o mundo nos ensina que o urso polar não se define pela brancura, pois há ursos polares que não são brancos, tanto quanto ursos marrons que são albinos, o Homo sapiens aparentemente resolveu negar tudo que há e afirmar tudo o que não há. Foi aí que nasceu o nosso conjunto particular de vazios, que conhecemos como tédio. Aliás, nada é mais pessoal do que nosso tédio; poderia ser nosso RG.

Nada resiste ao tédio: nem amor, nem amizade, nem claridão, nem escuridão, nem mata, nem comida certa, nem dinheiro, nem tranquilidade. Uma vez minha mãe me disse que tinha cansaço de todo dia acordar e enxergar com os olhos: por que não com as mãos? Por que não comer com as orelhas, cheirar com o cotovelo? Acho que nem Cioran deu maior expressividade vocabular ao tédio do que essas tão estranhas palavras maternas.

Para ter um vazio existencial não é preciso muito: basta ser cheio de algo. Para ter muitos, basta ter felicidade. Se me dizes que és extremamente feliz, direi que tens um número colossal de vazios em sua existência. Uma pessoa feliz é um queijo suíço.



Pondé sugere que um mundo onde todos fossem felizes seria o maior dos pesadelos. Supondo uma feliz e verídica distopia, em que isso aconteça em breve (e ao que tudo indica, essa hipótese não é totalmente desarrazoada), Leibniz ainda diria que o melhor dos mundos é aqui? Talvez até ele capitulasse, em busca de um lugar ainda melhor que o previsto pela sua teodiceia. Abandonando essa digressão, eu diria, indo diretamente ao ponto, que nossa posmodernidade consciente, profundamente descompromissada da verdade e, portanto, festiva e felicíssima, nunca antes teve vazios tão gigantescos em seu bojo.

Será o vazio da ciência diretamente proporcional ao vazio da existência? Argumentará alguém que nunca o homem soube tanto como hoje (afirmação com a qual eu poderia não concordar, mas aceitemo-la): se a ciência atual tem tal magnitude, não haveria vazios, daí a felicidade reinante nos lábios de tantos. Ilusão. Sempre haverá um vazio na ciência e por mais que saibamos, estamos sempre aquém de tudo: o vazio da ciência é infinitamente maior que qualquer conhecimento acumulado. A consciência de nossa ignorância bastaria para sermos felizes? Defenderá isso quem acha que não há maior felicidade do que no cinismo.

Fato é que se pensarmos que já sabemos tudo, que nós, posmodernos, somos superiores aos gregos, babilônios e egípcios, afigura-se-nos um ainda mais monstruoso nada. Eu desconfio que este mundo de gente feliz que se acha detentora de todo o conhecimento do mundo tem um spleen que deixaria qualquer byroniano morrendo de inveja, sofre de um hiperdadaísmo que dez guerras mundiais não aplacariam, é dotado de uma porralouquice maior do que a de qualquer humanista vomitando palavras pela imprensa. Provas? Vejam aí os dedinhos furiosos digitando nos seus celulares. Isso veio para ficar? É tão ridículo, perturbador e cansativo. Vampiros existem: chamam-se smartphones. Quem duvida, que tecle a primeira tecla.

Os smartphones sugam sua alma e prometem vida eterna. Velhos se tornam jovens, semideuses se tornam ralé, segundo o seu gosto. E é possível transformar sua personalidadezinha chulé em vinte personalidades portentosas. Como? Porque, aparentemente, é possível expor de maneira infinita todos os seus vazios. A imensidão do chocho parece ser a pedra basilar de nossos dias.



Terá o vazio sido finalmente vencido? Perceba, querido leitor, não: entre a mensagem mandada às 15h00 e a mandada às 15h01 há um infernal vazio de um minuto, insuperável, uma circunvolução dantesca que atiça a sua ansiedade a ponto de seu supostamente veloz cérebro hominídeo não ter respostas para tal hipnótico estímulo. Nenhum filósofo conseguirá propor nada que vença esse mortal minuto de eterno silêncio.

Então, não há resposta à pergunta do título. Quanto menor o vazio, maior ele será e quanto menos vazio, mais nos afogaremos nele. A quietude é uma prerrogativa da morte, não da maldição de termos nascido hominídeos que resolveram deixar de ser animais como quaisquer outros e migraram rumo à deificação confundindo seus genes com bits de informação.

quinta-feira, 1 de junho de 2017

O MUNDO DOS TARADOS

Tara é uma daquelas palavras coloquiais usadas sem muita compreensão da sua vastidão semântica. Diz-se que tarado é aquele que não consegue controlar seus impulsos, sobretudo sexuais e aí se pensa nesse sentido como o original. Então, se alguém diz que é tarado por filmes noir, logo atribuímos uma metáfora à palavra. Mas alguém pode surpreender-se com o fato de que tara é também um termo desusado da genética para defeitos físicos, mentais ou morais de origem supostamente hereditária. Por isso, o termo está associado à degradação moral, desvio de conduta, perversão, degeneração, depravação, não só no antigo sentido de desequilíbrio mental, mas sobretudo quando associado a um comportamento sexual reprovável ou criminoso. Não longe desse sentido, o termo é usado às vezes para designar um defeito físico em animais, algo que desvaloriza o seu preço, ou ainda pode ser associado a algo comportamental negativo nos animais, como um vício de cavalgadura. Mais surpreendente é o sentido de "desconto em um preço" em função do peso da sua embalagem. Esse último sentido, contudo, é o mais antigo: por exemplo, o peso da embalagem de um produto ou o peso da carroceria vazia de um veículo de transporte, por exemplo, um vagão de trem, é a sua tara. Em suma, a palavra árabe difícil de pronunciar com seu t enfático e com seu h faringal, que deu origem ao termo, parece resumir todos os demais significados futuros da palavra, a saber, tratava-se inicialmente apenas de uma subtração, de um desconto, uma alusão àquilo que não era o essencial e, portanto, está associado ao menos importante.

Se a palavra não tivesse sido tão alterada com o tempo, poderíamos, quem sabe, ainda hoje usá-la tecnicamente. Por exemplo, em fonética, um som [p] na língua portuguesa teria seu núcleo essencial e fonológico resumido na articulação bilabial, na falta de movimentação das cordas vocais e na sua característica plosiva. Tudo o mais, ainda que fosse normal, individual ou ocasional, seria sua tara, digamos, a intensidade proveniente dos pulmões, a tensão muscular da faringe ou das cordas vocais que não distingue nada, a ausência de aspiração laríngea e por aí vai.



Mas o que sobreviveu de fato foi a derivação da derivação da derivação semântica: o que não é essencial é aquilo que pode ser descontado. De um modo metafórico, o que não é para ser levado em conta é vil e pode ser jogado fora. Se isso é parte quantitativamente maior do que o essencial, ou seja, se o que sobra da essência é muito pouco, o objeto tem tara demais. Assim sendo, tudo que é pouco importante se diz excessivo, garantia para que apontemos sua inconveniência ou a sua deformidade. Num mundo passado até as vésperas da Primeira Guerra Mundial, esse excesso moral se confundia com o sexo (tal como teorizava Freud, que associa o mecanismo da repressão diretamente relacionado a uma queda de braço entre o ego e o inconsciente) e se havia algum peso morto que a pessoa levava como invólucro de sua essência, só poderia ser a repressão sexual, nada mais. É daí que o termo tara afunilou seu sentido. Quem leu o título desta postagem só pode ter pensado nisso. Pensou errado.

Ou seja, percebe-se que não há uma definição precisa do que vem a ser tara, a não ser na área comercial: as ciências abandonaram-na quando perceberam que o termo conduzia o científico para as áreas nebulosas da não-ciência. O problema maior nele é o valor subjetivo dos julgamentos, pois não é óbvio o que vem a ser não-essencial, muito menos o que é deformidade ou inconveniência, salvo o que está determinado por lei.

Mais que isso, o sexo, evidenciado pelo freudianismo, entrou na pauta do século XX no Ocidente, que já estava bem atrapalhado com suas tabulae rasae, com seus positivismos nacionalistas e suas dialéticas filosóficas. Fato é que, como diz Arnaldo Antunes, tudo é o que não pode ser que não é o que não pode ser que não é. Disseram isso milhões de vezes, com megafones e com a linguagem visual da propaganda, dos shows e do cinema. O resultado disso todos sabem: arquiduques assassinados, impérios esfacelados, impérios exsurgentes, loucos, bombas, guerra fria, woodstocks e rock'n'roll. Uma vez que caiu a Bastilha, o século XIX foi a Era do Pileque e o século XX, o da Ressaca.

Estamos já rumo ao primeiro quartel do século XXI sem sequer pensar que caminho fizemos. Parece que enchemos a cabeça de ácido lisérgico no século passado e ainda não acordamos de uma caminhada sem rumo algum por uma praia sem fim. Quando estivermos sóbrios, saberemos em que estado ou em que país estamos? Tenho minhas dúvidas.



Mas essa cena do caminhante drogado andando por uma praia, digno de uma personagem do filme Fear and loathing in Las Vegas, tem uma sinfonia por trás. Tem um nome que se repete toda hora. É um enigma maior que o menemenetequelparsim do profeta Daniel. Todos, diferentemente, dos embasbacados da corte de Nabucodonosor o entendem. Esse paradoxal "enigma compreensível" chama-se internet ou, traduzindo um estrangeirismo por outro, o menu. Perdoai-me, são Castro Lopes, um cardápio!

Senão vejamos: a internet é um mero menu de um restaurante. Como se chama esse estabelecimento? Eu o chamaria de O mundo dos tarados. Sinto muito, não vou falar geeks, isso seria ridículo demais para a minha idade. Seria, como está na moda dizer, uma incompatibilidade geracional.

Aliás, moda! Eis aí a espinha vertebral dos nossos tempos! O século XVIII foi o da Química e o da Física; o XIX, da Biologia e da História; o XX, da Computação e da Economia. O XXI é o da Moda. E não há nada mais normativo que a moda, sabemos. É a única coisa que comprova pelos seus próprios postulados que o subjetivo é o caminho para o racional. Se não acredita, vista um modelito fora de padrão identificável como sendo de qualquer tribo e saia por aí. Verá um monte de dedinhos apontando para você, mostrando a falta de seu bom-senso. Antes do século XIX o bom-senso não tinha parâmetros senão os da tradição autoritária. Hoje, o autoritarismo se travestiu na forma de comunidades. Acho que o marco zero disso, se não estou enganado foi o Orkut.

Comunidades bizarras surgiram naquela época, ainda com resquícios do espírito zombeteiro dos anos 80, mas as mesmas estão aí, para você, leitor. E são de todos os gostos. Basta um enter depois de uma googlada. Você encontrará seus pares num instante. E pensar que antes disso, o fulano era neurótico, igual aqueles descritos por Freud, porque não tinha para quem confessar suas taras e, imerso em culpa, dava vazão à sua frustração na forma de loucura, do suicídio e do homicídio. Seria libertário imaginar que a psicanálise mostrou-nos um novo mundo possível se não fosse um porém que raramente é observado: a loucura, o suicídio e o homicídio não diminuíram. Na verdade aumentaram, salvo melhor juízo. Juntamente com as agressões, os deboches, com a sensação de que não pertence a sociedade alguma, com a sensação de que a sociedade precisa ser reescrita por meio não mais da demarcação geográfica e política, mas dos indivíduos que compõem a sociedade global. E para um pequeno grupo, por mais bizarro que seja, há um integrante aqui, dois ali, mil acolá: procuram líderes para gerir seus grupos e para seguir. Grupos multiétnicos, plurilinguísticos, multifacetados com apenas um paradigma em comum: a sua tara.



Ou seja, a tara deixou de ser a embalagem que se joga fora e, naquelas inversões que deixam os hegelianos doidinhos, passou a ocupar o lugar da essência. A essência de um indivíduo hoje é sua tara. E toda tara tem rótulos, os quais, de fato, estão aí, aos montes. 

Ora, como a essência antiga não era um elemento só da psique humana, mas um conjunto de características, ter uma tara só é muito chato e eis que vemos os bitarados, tritarados, politarados multiplicando-se. As taras têm uma vantagem sobre a antiga essência: podem agrupar-se em feixes sem compatibilidade alguma. Passou a ser legal ser paradoxal. Há até quem diga que a individualidade é uma coisa espúria, porque o que basta é ser representante de uma tara qualquer. Por essa não esperavam os românticos.

Isto tudo é muito recente. O discurso, contudo, ainda é o antigo. Freud está vivíssimo. As instituições, as fronteiras geopolíticas, tudo ainda está intacto. Os tarados parecem-se àqueles seres comensais, espécies de trepadeiras que se não fazem mal ao já instituído, tampouco o fazer progredir. E o fim disso tudo? Nesse ponto, termina a sagacidade da minha percepção. Não sei, como você também não sabe.

O ruim, contudo, dos paradigmas desses indivíduos desindividualizados é que os tarados são alicerçados sobre areia. Parecem crianças que acabam de receber a autorização do pai de fazer algo até agora proibido. Estão gozando a sua liberdade. Sem pensar em amanhã nenhum. 

Esse quadro, contudo, não me parece a queda definitiva do apolíneo, como profetizara Nietzsche. Parece que o apolíneo ainda serve para pagar as contas desta geração reinfantilizada ou nunca transinfantilizável. O apolíneo tem algum tempo de vida enquanto o bacante bobo alegre está, junto com todos os seus cotarados, ditando regras de etiqueta, prescrevendo o bom-senso. 

A sinfonia do menu, eu dizia, é pra lá de tritonal. Mas como cada um está com seu fone de ouvido, acredita-se que não há dissonância alguma, percebam. Ai de quem não tem esse equipamento e tem de ouvir o diabolus in musica desde o momento que acorda até deitar-se! Este anda cansado com tanta baboseira. Cansado de chamarem apolíneo o que não é, de ditarem como novidade alvissareira aquilo que é mais velho do que andar pra frente, de ficar vendo as vascas de alegria debiloide de algo que deveria ter sofrido já sua Aufhebung.

Infelizmente, Schopenhauer estava certo: essa coisa de Aufhebung não existe e Hegel nada mais era que um tremendo picareta. Parece que Vico tinha mais razão quando se tratava das mudanças sociais e da assim propalada evolução da humanidade. 

domingo, 21 de maio de 2017

O VALOR DO VALOR

Pensar sobre o valor das coisas não é algo fácil de se fazer nos dias de hoje. 

O valor não é algo intrínseco ao real, mas fruto de nossa cognição. Essa pequena afirmação pode ser entendida como pedra basilar do edifício do niilismo. Basta retirá-la para tudo desabar. Pessoas muito inteligentes no passado reconheceram a fragilidade de tudo, mas não se deixaram contaminar pela apatia que isso oferece. De fato, um niilismo de fachada é o maior índice da filosofia barata. É muito difícil ser um niilista convicto sem ser piegas e ator.

O niilismo, porém, não é a razão da fragilidade das coisas: já escrevi de forma pouco amistosa sobre a esperança. Aparentemente, niilismo não tem nada a ver com esperança, como tentarei demonstrar abaixo, da mesma forma que não tem nada a ver com ateísmo. Nossa cultura entrelaçou essas noções de tal forma que é difícil colocar na mesa os elementos básicos que sustentariam essa minha convicção. Não custa tentar, porém.

O niilista acredita no Nada. O mundo, como eu disse, não tem valores: atribuímo-lhos. Ponto final. Este diamante é uma pedra tal como um pedregulho qualquer. O valor não está nele. Esse papel com que pago minhas contas e se chama "dinheiro" não tem valor intrínseco: posso incinerá-lo e sua fumaça não valerá nada. O meu querido cachorro é apenas um aglomerado de sistemas biológicos em funcionamento: o que faz dele querido sou eu. O que chamamos de bens, seja materiais seja imateriais, na verdade é algo convencionado e reflete as minhas preferências. Se nem mesmo as cores existem, para que falar da existência realista dos valores? Perguntaria o niilista. Um niilista, porém, tem seus valores, apesar de não crer na sua materialidade. Senão, vejamos.

Para tirar todos os equívocos: não confundamos o ateu e o niilista. Todo niilista é ateu, mas nem todo ateu é niilista. Aliás, há toda uma horda de pessoas que se intitulam ateias, algumas com ridículo orgulho. Há, portanto, o falso ateu, o ateu retórico, o ateu fundamentalista, o ateu incoerente, há até mesmo ateus que não sabem que o são. Ateu é apenas uma pessoa que não acredita em determinadas divindades. Não é preciso muito. O niilismo requer mais. Alguém imagina que um ateu não tem valores, mas isso não é verdade. Ateus niilistas são um grupo minúsculo. Ateus niilistas que não têm valores alguns, contudo, não existem. Todos temos valores, niilistas ou não, ateus ou não. Mas essa confusão tem várias fontes. Por exemplo, o crente tem esperança que o injusto poderá viver bem nesta vida mas se danará no futuro post mortem. Esse discurso egípcio com milênios de existência tem base apenas na nossa triste sede de justiça, na nossa resignação e na nossa preguiça. Se o ateu não acredita sinceramente que haverá uma vida após a morte, na qual a justiça plena finalmente se estabelecerá, pedirá a justiça agora. 


O mesmo faz o niilista. Afinal, é aqui nós vivemos. E não vivemos solitariamente. Somos exemplares de uma espécie que vive em bando. E a regra número um do bando é a colaboração. Pode-se não acreditar na justiça após a morte, mas isso não impede um ateu ou um niilista de exercer o "aqui se faz, aqui se paga", não como uma lei supersticiosa da natureza, mas como exercício da justiça entre seres de bando, como somos nós, os homens.

Obviamente há niilistas hipócritas. Um hipócrita não é quem está convencido de que no mundo não há valores. Este apenas seria um realista. Um hipócrita sabe que há valores entre as relações humanas e se vale deles para seu próprio benefício. Ou seja, um hipócrita é um realista egoísta. Essa definição, contudo, ainda não está completa: nem todos os realistas egoístas são hipócritas. A diferença principal é que o hipócrita alardeia que acredita nos valores, mesmo não acreditando. Em suma, o hipócrita é um realista egoísta e mentiroso. Obviamente há niilistas que também são egoístas e mentirosos.

Mas há outros niilistas que, pelo contrário, sinceramente dizem não acreditar nos valores e, mesmo assim, são altruístas. Não há paradoxo algum nisso. Não acreditar nos valores é uma forma de humildade e não necessariamente um motivo para justificar a hipocrisia. Ser niilista não é ser amoral. Afinal de contas, não há nada mais terrível do que descontruir tudo e a si mesmo para chegar à condição do sincero niilismo. Quando falo isso, lembro-me de uma ilustração de um livro de Emil Cioran (1911-1995) que muito me impressionou: um homem descendo por um escorregador cuja base era parecida com a de um ralador de queijo. Esse homem não chegava até o fim do escorregador, pois fora destroçado pelo caminho e se resumia num monte de carne picada no meio do trajeto.

O niilista sincero sofre com a miserável condição humana e não é raro que tenha empatia com o outro que também sofre. Em vez de hipócrita, pode estender a mão ao outro, pode deixar de lado sua angústia para dar um segundo de alegria para alguém. O niilista valoriza o momento bom porque sabe que é difícil transitar por um bosque cheio de monstros ilusórios e cheio de fadas igualmente ilusórias como a vida. O humor do niilista às vezes é irônico, sua atitude amiúde é arrebatada: Nietzsche não tinha nada de niilista, pois era totalmente embriagado pela esperança. Niilistas de verdade não dão ouvido a fadas.



Esse niilista a que me refiro não é apático, muito menos é um suicida. Quer viver, mas sabe que esta vida tem limites. Por isso exige, cobra, chateia, porque, afinal, sabe que nenhum ser de outro planeta virá redimi-lo. O niilista usa o que está aí, não hipocritamente, mas em benefício dos outros, mais do que para seu próprio. Preocupa-se com o futuro em que já não mais estará na Terra, quando for povoada por outros miseráveis esperançosos. O verdadeiro niilista se indigna perante os fatos.

Se não há nada eterno - somente o provisório - e se não temos escolha senão viver nessa transitoriedade da vida, com suas limitações a que nos resignamos e contra as quais lutamos sem hipocrisia, sem sério prejuízo de ninguém, por que o niilista teria que aceitar que outros abusem dele ou abusem de outros mais fracos que ele? Não, o niilista pode não acreditar em nada porque sabe que não há nada, mas não tem escolha: é um ser de bando e o bando tem regras. O niilista se revolta.

Romper uma regra não é digno de quem quer viver em bando. Os ermitões verdadeiros é que rompem todas as regras: comem lesmas, andam nus, defecam em qualquer lugar. Cuidado! Podem até matar para comer a sua carne. Um ermitão é o limite da humanidade, pois está a um passo da loucura. Esse sim não tem regra. Não me venha com seu autoengano dizer-me que você é um ermitão. Se me lê, não é. 

As regras estão aí. Verbalizadas ou não. Quem as quebra, pode ter consciência pesada. Esses eu não julgo porque isso faz parte da humanidade. Mas julgo os que quebram e têm a consciência muito leve a ponto de dormir muito bem. Esses perderam a sua humanidade em algum momento da sua vida. Não são gente: são ermitões em seu mundo de mentiras. Não sabem viver em bando a não ser mentindo, roubando e matando. Na cara desses um verdadeiro niilista não se dignaria sequer a escarrar, tamanho o desprezo que lhe devota. Mas no quarto de acúmulos da justiça achará algo que lhe sirva, para que o hipócrita recupere sua consciência perdida e volte a ser gente, para viver entre nós.

É nesse momento talvez que o niilista se mostre paradoxal, porque tem alguma esperança de que esse miserável ermitão que afastou do bando reaprenda o valor dos valores: longe de seu mundo de mentiras, mas confinado numa solitária, na prisão da verdade.