No mundo atual, onde todos têm razão, o megafone das redes sociais dá voz às vicissitudes mais íntimas de cada um, conferindo-lhes ilusória eternidade. Desde que os pares se reuniram em grupos orkutianos, ainda no século passado, assinando declarações públicas acerca de seus gostos e ódios, desde que se inventaram os infames dedinhos e o mundo se converteu num neomaniqueísta like-dislike de opiniões, desde que essa silenciosa turba começou a emergir, não se fala mais em retorno aos tempos em que não éramos interenredados, de modo que não há outra solução hoje a não ser a de conviver ininterruptamente com o nosso oposto. Obviamente, conviver com quem pensa ao contrário de nós nunca foi fácil e os mais suscetíveis (ainda bem que poucos!) ainda preferem enforcar-se ou fazer uma carnificina. A esses não me dirijo. Arquem com as consequências de sua fraqueza psicológica de não conseguir conviver. A grande maioria das pessoas, contudo, preferimos viver mais um pouco, livres, ainda que azucrinados, até o fim de nossos dias, pela voz daqueles que nos são cognitivamente incompatíveis. Para esses, espero eu, a leitura desse texto oxalá seja útil.
Conviver com o oposto, obviamente, não é fácil: nunca o foi. Mas há basicamente duas situações de conflito. Quando o discurso oposto ao nosso advém de uma minoria comparo-o com aqueles alarmes de carros estacionados nas ruas que disparam, acionados por qualquer coisinha, sem que o proprietário do veículo esteja por perto nas próximas horas, para socorrer as circunjacências da sua consequente infernização ou então com aquele cãozinho provisoriamente abandonado, que resolve entristecer-se, emitindo infinitos e repetitivos ladridos e uivos, amplificados pelas paredes do condomínio, a enlouquecer todos os que, por infelicidade, estejam ali, diferentemente do sortudo dono (que diz amá-lo). O oposto minoritário é apenas um chato: uma hora cala-se, se não dermos ouvido a ele.
Mas atenção: há diferença entre as duas imagens, e não pequena: buzinas acionadas sozinhas não se desesperam. Um alarme chateia sem a menor intenção e não se cansa, no máximo, pára quando a bateria do carro termina. Um cão não só quer ser ouvido, mas também sofre e se extenua, ainda que sua exaustão ocorra bem depois do exaurimento da paciência de seus ouvintes. Ou seja, se a metáfora é boa, há opostos minoritários que são obstinados extraordinariamente frios e só terminam seu falatório per se; já outros, que gostam de chamar atenção à sua causa, contudo entristecem-se, cedem ao pessimismo e acabam por calar-se algo que complexados.
Já o oposto majoritário é diferente: se a maioria pensa diferente de nós, nós é que somos a buzina e o cão. Nós é que somos o problema. Se o mundo está alicerçado nas nossas convicções, é cômodo ter a certeza de que os chatos são eles, que não comungam de nossos pressupostos. Numa eventual situação contrária, parece seguro que nossas convicções fiquem no porão do anonimato em silêncio, afinal, ninguém quer ser punido por uma patrulha que pensa diferentemente de nós, ninguém quer ser exposto como daninho ou louco e, convenhamos, é impossível daí não concluir que desejamos que a situação se altere, a menos que tenhamos algum prazer na resignação, alguma essência fatalista, algum galardão comportamental de nada ver de errado na alteridade, alguma extremada acomodação ou uma infinita hipocrisia. O mais comum, contudo, é o pensamento seguinte: se questionar autoridades é válido por que não posso eu mesmo ser a autoridade?
Sabemos, civilizados que supomos ser, que a melhor reação não é a da violência, a da ofensa ou a da ironia, a mas a da própria racionalidade. Seria a razão que nos faz perceber como minoria sensível à contradição? Como evidenciar ao nosso oponente uma contradição dele que não o ofenda? Pior: para contradizermos algo não seriam necessárias premissas com as quais ambos estejamos de acordo? Isso não tem sido nada fácil: mesmo que as selecionemos, é preciso estarmos de acordo que essas premissas e suas conclusões (e não outras) devam ser preservadas para raciocínios subsequentes. Ora, sabemos que isso não foi fácil nem na época de Sócrates, quando havia poucas coisas sobre as quais opinar. Que dizer de agora, após tantas novidades quinhentistas, verdades setecentistas, antíteses e sínteses oitocentistas, inversões propositais novecentistas, sem falar dos direitos à voz atuais?
"Se um afirma que a gravidade não existe, como Jesus cairia da goiabeira?". De fato, os paradoxos atuais soam estranhos para quem não comunga de vários pressupostos e premissas elípticas. Por onde começaríamos para haver um diálogo minimamente honesto? Talvez pelo pressuposto de que ambos queiramos ter um diálogo. Queremos?
Suponhamos que não, que tanto eu quanto tu queiramos apenas impor nossas ideias. Pois bem, há quem alicerce seus argumentos em conhecimentos acumulados, supraindividuais, coletivos e formalmente sólidos; há quem aposte mais em argumentos improvisados, ditados pela inspiração, pela genialidade, os quais sobrepujariam, segundo muitos, todas as visões anteriores. Há ainda os que acatem argumentos perenes ditados de um mundo sobre-humano habitado por seres que se importam com sua criação, seja por amor, seja por tédio, seja por sadismo.
Obviamente eu acho que tenho razão no ponto debatido. Obviamente tu também te achas com razão. Não é isso já um acordo? Afinal, estamos pressupondo ambos que temos a mesma coisa! E se, portanto, já temos o que queremos, concluímos que ambos estamos satisfeitos. Não é isso já um acordo? Nossa conclusão se confunde com nossos pressupostos; são distintas mas conduzem ao mesmo bem. Nossa conclusão será (ninguém o negará) profundamente relativa àquilo que buscamos. Achamos a paz nesse relativismo. Mas, observará alguém, conclusões relativas são profundamente pirrônicas. Se quisermos ser pirrônicos, portanto, dispomos de um excelente desfecho. Só não me convence que haveria uma só moral da história, satisfatória para ambos os debatedores. Com quase certeza posso afirmar que não haverá e tu concordarás comigo. Mas se temos certeza de algo, não somos pirrônicos! Desfaz-se o acordo, voltamos ao debate. Parecíamos irrefutáveis, mas dois pirrônicos anulam seus pressupostos num debate. Voltemos ao ser humano de carne e osso: o ser idealizado da lógica não nos serve.
O pirronismo nunca deu bons frutos, como se pode ver: seria a causa disso a vontade de domínio, atávica aos seres humanos? Deixemos para outra hora essa questão. Bom, se quero convencer-te e tu, a mim, não sejamos hipócritas: lancemos a primeira afirmação e que o outro discorde com argumentos válidos. A Terra ou é esférica ou isso é um complô da Nasa para que não saibamos que é apenas uma cúpula boiando no nada ou nas costas de elefantes, que, por sua vez, estão nas costas de uma tartaruga. Tudo o que eu mesmo não enxergo, não toco, não saboreio, necessita de um modelo teórico? Mas as ilusões são o quê? Há algo que não seja explicado ou explicável por evidências sensoriais ou por conclusões de premissas? Provavelmente não, a menos que aquilo que chamam de fé seja o culto ao irracional, no entanto, julgo eu, que aquele que se vale de uma fé qualquer, a despeito da ausência de evidências sensoriais não ilusórias e de indecorrências de premissas, apontará sua crença para algo com uma autoridade, um texto, uma verdade da qual não arreda pé.
Uma revolução radical nos pressupostos não nos conduzirá a bons técnicos, que consertem nossos iPhones no futuro, ou que ponham no ar os YouTubes que propagam as novas ideias que supostamente destronaram as antigas: um pouco das velhas há de sobrar num mundo mais hipócrita do que o que se seguiu imediatamente após Hegel, relativistas, semicientistas e pós-modernos. Mas a coluna há de ficar ereta para que faça piruetas extravagantes a choldra questionadeira, com sua magna auto-estima, sem vergonha de sua voz esganiçada e de suas ideias até há pouco tempo apenas expostas, por entre uma nevoaça alcoólica, em reuniões familiares ou em mesinhas de bar.
Todos usamos quer o que o mundo nos dá (seja à nossa percepção, seja à nossa razão), quer o que textos nos dão, quer a convicção de uma traidora memória acerca de uma visão de infância: mais do que a necessidade de estar convicto daquilo que falamos, vimos falando ou acabamos de concluir, apresenta-se-nos como a coisa mais necessária de todas ter uma plateia. A obsessão por ter seguidores e o medo de não ficar falando sozinho é o único ponto que realmente caracteriza os dias de hoje. Hoje louco não é mais quem tem uma ideia excêntrica, mas quem fala sozinho. Louco é quem não é submetido ao like-dislike, o oxigênio do século XXI.
A diferença que nos causa espécie e reações nos tempos atuais está toda aí: a demência lamentável do nosso oponente de opiniões nunca mudou! Novo, contudo, é o fato de hoje cada loucura individual ter um séquito. É a falta de séquitos que nos incomoda mais hoje e não a loucura propriamente dita, pois, abandonada a razão, tornou-se a plateia mais valiosa, nos dias atuais, do que o maior dos diamantes. Perante tanta estupidez asseverada, consolemo-nos: talvez estejamos num novo período pré-socrático. E esse novo Sócrates um dia virá com poder e glória e nos boquiabrirá nos limites e nos píncaros da razão humana, diz o máximo otimista. Não leia isso como ironia, leitor: leia-o como sarcasmo, escárnio. É deboche, mesmo: sabe-o quem me lê assiduamente e está ciente do quanto sou cético acerca da alardeada razão humana ilimitada.
É a falta de séquito que nos incomoda hoje, mais do que a loucura propriamente dita. Quando, definitivamente, conseguirmos conviver com esses novos memes (no sentido original e dawkininano do termo), tudo voltará a ser a bobagem que sempre foi. Oxalá seja ano que vem.